O último herói vitoriano
AS QUARTAS-FEIRAS do gelado segundo semestre de 2003 eram dia de acordar cedo. Eu deixava minha filha no ponto de ônibus e atravessava Cambridge, invariavelmente atrasado e invariavelmente animado, para escutar um homem de bigode, colete bege e gravata falar sobre ossos de animais extintos. Era dia das aulas de paleontologia de vertebrados de Farish Jenkins Jr., o último naturalista vitoriano, morto no fim de semana retrasado aos 72 anos.
O quadro-negro invariavelmente trazia algum dinossauro ou cinodonte desenhado a giz nos mínimos detalhes. Cada curva do molar trobosfênico, cada vértebra fundida dos saurísquios, cada ossinho da mandíbula dos répteis em sua transformação no que são hoje nossos ossos do ouvido. Passei meses imaginando como Farish conseguia executar desenhos anatômicos à perfeição no olho. Alguém me segredou que o professor madrugava no museu — e contava com o auxílio secreto de um retroprojetor. Tudo antes de os alunos chegarem, momento em que Farish já tinha café e donuts prontos para a classe de alunos de pós (nem todos superinteressados nos processod do tornozelo do Deinonichus). Um mestre do espetáculo.
Obviamente eu não tinha formação alguma em paleobiologia, em biologia ou em qualquer outra coisa. Jenkins me aceitou como ouvinte mesmo assim. Adorava jornalistas, e tinha um carinho especial pelos nerds do MIT que se interessavam por ciência. “Vocês não são 171 de forma alguma! São gente séria e esforçada.” Não vou discutir com um professor de Harvard.
Quando não estava fascinando seus alunos ou xingando o então reitor Larry Summers, a quem só se referia como “bully”, Farish vivia la vida loca. Nos verões, alugava um helicóptero e partia com colaboradores e o curador de vertebrados do museu, Chuck Schaff, para algum fim de mundo do Ártico, onde o grupo acampava por um mês ou mais em total isolamento, atrás de fósseis interessantes. O grupo precisava andar armado e montar turnos de vigia 24 horas por dia, por causa de ursos polares. Uma vez, exausto, Chuck atirou numa ameaçadora forma branca que se aproximava das barracas. Felizmente errou — era uma lebre.
Em uma dessas expedições polares, na ilha de Ellesmere, no Canadá, Farish e seu ex-aluno Neil Shubin, e o aluno de Shubin Ted Daeschler, encontraram seu fóssil mais interessante: um peixe do Período Devoniano que traz o primeiro sinal daquilo que vieram a se tornar as patas dos tetrápodes (como nós). O grupo batizou o bichinho de Tiktaalik, uma palavra inuíte. Tive o prazer de apertar a mão do Tiktaalik em 2009, no laboratório de Shubin na Universidade de Chicago. Foi quando soube que Farish adoecera e já não viajaria ao Ártico com o grupo naquele verão. Shubin estava transtornado.
Voltei a ter notícias de meu ex-professor em 2010, por obra e graça de Rafael Garcia, que visitou seu laboratório e me mandou uma foto. Trocamos e-mails. Farish parecia ter envelhecido 30 anos, mas mantinha a fleuma. Minha última lembrança dele é dessa jovialidade, mesmo — agora sei — terminalmente doente.
Farish Jenkins era, ele mesmo, um fóssil, um espécime único, holótipo sem parátipo. Era um polímata, que lecinava anatomia humana além de paleontologia. Um naturalista à moda antiga no meio de um mundo dominado por biólogos moleculares. Como Charles Darwin, gostava de fazer experimentos malucos para observar fenômenos (gostava de colocar animais para correr em esteiras para entender como fósseis se movimentariam). Nas horas vagas, cultivava maçãs numa fazenda em New Hampshire, onde fabricava com a mulher a melhor cidra do mundo, que ele mesmo engarrafava e rotulava. O espumante era obrigatório em brindes de final de semestre, em plena sala de aula e em plena luz do dia, para horror dos caretas americanos. Farish Jenkins Jr. não tinha paciência para caretices.
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