Devolvendo a visão aos cegos, Mendel-style!

ResearchBlogging.orgA evolução dos peixes-cegos me fascinou desde o primeiro ano de faculdade. A história é a seguinte: sabe-se que populações de peixes de caverna ao redor de todo o mundo apresentam fenótipos (características morfológicas) similares que incluem redução ou ausência de aparato visual (A.K.A. eles são cegos) e perda da pigmentação da pele. Tais alterações não são uma simples consequência da ausência de luz nesses ambientes, como no caso do “bronzeado de escritório”. Esses animais são incapazes de produzir olhos e coloração “selvagem” (a cor vista em populações de superfície) mesmo na presença de luz, e tais ausências são transmitidas através das gerações. Ou seja, elas são genéticas.

Tal fenômeno – o de diversas populações de organismos apresentarem um fenótipo similar, geneticamente codificado, de forma independente uns dos outros – é chamado de “convergência”, e normalmente está associado ao processo de seleção natural. A idéia é simples: os organismos apresentam as mesmas características porque os ambientes no qual eles estão privilegiam tais características, e a seleção natural se encarrega em fixar tais alterações, produzindo o que chamamos de “convergência adaptativa”.

Porém, o xis da questão aqui é: como é que tais populações apresentam exatamente as mesmas mutações, nos mesmos genes, de forma a gerar tal convergência? Parece um absurdo propor que algo assim tenha surgido por processos aleatórios e, ao meus olhos de recém ingressado no curso de biologia, parecia uma grande dificuldade para a noção de uma evolução não-guiada materialista. Nesse ponto, então, discordo com a colocação do Giuliano (ver post anterior) de que a ideia de um designer inteligente operando “uma sequência correspondente de mutações que resultaria na redução do aparato visual” é ridícula. Na verdade, ela é bastante plausível, se imaginarmos que tais populações são, de fato, independentes. No mínimo, isso diminuiria em muito a plausibilidade de uma evolução puramente materialista como nós a entendemos. Porém as coisas não são exatamente tão simples assim, como pode ser visto no exemplo dos Tetras.

Astyanax mexicanus, ou o Tetra-cego, é um peixe muito interessante. Ele é natural do nordeste do México, e está distribuído em uma variedade de cavernas na região, assim como também apresentam populações na superfície. As populações de cavernas são extremamente modificadas, apresentando diferentes graus de redução de olhos (até completa ausência), enquanto as populações da superfície lembram peixes comuns.

Tetras da superfície (A) e de diferentes populações de cavernas (B-F).

O mais interessante dessa história toda é o fato de que todos esses peixes são da mesma espécie, o que significa que eles podem ser cruzados uns com os outros, possibilitando a realização de experimentos clássicos de genética. E de fato, muitos pesquisadores realizaram diversos experimentos, cruzando populações de caverna com populações da superfície, para ver o fenótipo, especificamente o tamanho dos olhos, das primeiras linhagens de cruzamento (chamadas de F1). Via de regra, quando uma população cega era cruzada com uma população de superfície, a linhagem F1 apresentava um tamanho de olho intermediário entre elas.

A primeira linhagem de cruzamento (F1) entre populações de caverna cegas e da
superfície geram indivíduos com olhos de tamanho intermediário

Até aqui nada de realmente excitante. Porém a diversão começa quando se começou a cruzar indivíduos cegos de cavernas diferentes entre si, especificamente de uma população cavernícula em especial, da caverna Molino, que eram peixes de caverna que apresentavam um olho apenas ligeiramente reduzidos. Diferente do que acontecia com o cruzamento com as populações da superfície, as F1 entre as populações de caverna e as de Molino não apresentavam olhos intermediários, mas sim olhos MAIORES QUE OS DE AMBAS POPULAÇÕES DE CAVERNAS. Não apenas eram maiores, como eram comparáveis aos das populações de superfície.

Tamanho do olho das populações de caverna de Piedras e Curva
e das F1 (primeira geração de filhos entre as populações) e F2 (segunda geração) 
entre essas populações e Molino. “B” indica “backcrosses”, cruzamentos para as 
populações originais.
Ou seja, ao cruzar populações com olhos reduzidos, é possível produzir um indivíduo com um olho maior que a de ambas. Como isso é possível? A explicação é bem simples, e remete basicamente à genética mendeliana.

Suponhamos que o tamanho de olhos sejam controlados por 4 genes dominantes (ou seja, a presença de apenas um alelo dominante já acarreta no efeito total no tamanho dos olhos). Lembrando que peixes são organismos diplóides (apresentam duas cópias de alelos para cada gene), e que alelos dominantes são grafados com letras maiúsculas e alelos recessivos são grafados com letras minúsculas. Consideramos ainda que o efeito de cada alelo dominante é de 0,5 mm no tamanho dos olhos, e que o genótipo de uma população de superfície é AABBCCDD, o de qualquer de peixes de caverna seria algo do tipo AAbbccDD, e que a população de Molino apresenta o genótipo AABBCCdd, então temos o seguinte:

Superfície-       AABBCCDD =2,0 mm
Caverna (C)-    AAbbccDD    =1,0 mm
Molino (M)-     AABBCCdd  =1,5 mm
F1 (CxM)-       AABbCcDd   =2,0 mm

A principal sacada disso é que, apesar dos peixes apresentarem convergência na sua morfologia, diferentes cavernas não passaram pelas mesmas mutações para atingir sua morfologia atual. Diferentes populações passaram por diferentes históricos de mutação, em diferentes genes, para apresentar a mesma morfologia.

Mas no que isso influencia a ideia de evolução teísta?

Bem, para que o Designer tivesse criado ambas populações de peixes cegos através dos processos naturais, ele teria feito isso através de mutações diferentes em diferentes populações sem o menor motivo aparente, visto que o mesmo regime de mutações seria eficiente para atingir o mesmo objetivo. Ou seja, o Deus interventor deveria intervir em uma população de uma forma e em outra população de um forma diferente, sem nenhum motivo aparente. Sobraria para o evolucionista teísta aceitar um deus caprichoso, ou simplesmente apelar para Seus “misteriosos caminhos”, ou alguma bobagem similar.

Claro, a maior parte dos evolucionistas teístas não são bobos. Muitos deles se afiliaram a essa ideia na tentativa de conciliação entre uma teologia específica e a teoria evolutiva, coisas que costumam ser prima facie contraditórias. Muitos deles também se preocupam com honestidade e coerência, então qualquer solução para o dilema do evolucionismo teísta não vai ser simples assim.

Da forma que vejo, uma boa solução para a questão do evolucionismo teísta seria propor um deus interventor que produziria uma evolução que não poderia ser empiricamente distinguível de uma evolução puramente materialista. Como fazer isso?

Vamos então ao último post.

WILKENS, H., & STRECKER, U. (2003). Convergent evolution of the cavefish Astyanax (Characidae, Teleostei): genetic evidence from reduced eye-size and pigmentation Biological Journal of the Linnean Society, 80 (4), 545-554 DOI: 10.1111/j.1095-8312.2003.00230.x

Wilkens, H. (2010). Genes, modules and the evolution of cave fish Heredity, 105 (5), 413-422 DOI: 10.1038/hdy.2009.184

Jeffery, W. (2003). To See or Not to See: Evolution of Eye Degeneration in Mexican Blind Cavefish Integrative and Comparative Biology, 43 (4), 531-541 DOI: 10.1093/icb/43.4.531

Peixes cegos, Elliott Sober e “A Farsa da Evolução Teísta”

Quem me conhece sabe que considero a noção de “Evolução Teísta” uma grandessissima bobagem.

A alcunha “evolução teísta” foi popularizado pela Eugene Scott (uma agnóstica até onde sei) da NCSE, uma instituição voltada para a defesa de ciência, especificamente evolução e aquecimento global, por serem ideias as científicas mais politicamente atacadas por motivos ideológicos e religiosos. Em seu artigo, Eugene coloca que evolução teísta seria:

“(…) a posição teológica na qual Deus cria através das leis da natureza”

o que estaria em claro contraste com a evolução ateia (sic) ou puramente materialista, que não contaria com nenhuma intervenção divina. Agora, como essa noção de compatibilização entre evolução e teísmo é possível não foi abordado por Scott. Seu único objetivo é fazer com que o máximo de pessoas aceitem em entendam evolução, mesmo que isso se dê através de aceitação de alguma noção idiossincrática. E eu não tenho nenhum problema com isso: é um motivo nobre, defendido também por instituições religiosas como o Biologos do Dr. Francis Collins. O meu problema começa quando eu vejo os argumentos que defendem essa compatibilidade, e noto que eles são completas bobagens. Por exemplo, o teólogo e bioquímico Alister McGrath, ao discutir a posição de Santo Agostinho sobre o Gênesis, afirma que

“Para Agostinho, Deus trouxe tudo à existência, em um único momento de criação. No entanto, a ordem criada não é estática. Deus dotou-a com a capacidade de se desenvolver. Agostinho usa a imagem de uma semente adormecida para ajudar seus leitores compreender este ponto. Deus cria sementes, que irão crescer e se desenvolver no tempo certo. Usando uma linguagem mais técnica, Agostinho pede a seus leitores para pensar na ordem criada como contendo causalidades divinamente embutidas que surgem ou evoluem em um estágio posterior.”

Como isso é uma posição sobre “evolução” (fala sobre origem do universo) e teísmo (tá mais para deísmo), me foge completamente! Agora, meu desprezo mais profundo por essa concepção vem da premissa implícita de que existe alguma distinção entre a teoria evolutiva moderna, como aceita por um materialista, e a teoria evolutiva como aceita por um teísta. Porque se existe, um dos dois está errado. E adivinha qual é a teoria aceita pela comunidade científica e quantas vezes ela se vale de um deus teísta?

Giuliano Thomazini Casagrande

Talvez motivado por um similar desprezo, Giuliano Thomazini Casagrande, do blog “Materialismo-Filosofia”, publicou um fantástico post intitulado “A Farsa da Evolução Teísta”, no qual ele ataca de forma voraz a idéia. Sugiro a leitura. O Giuliano tem uma erudição impressionante e uma língua ferina que não poupa ninguém:

O exemplo da produção de variedades domésticas é bastante esclarecedor. As mutações aleatórias fornecem aos criadores de plantas e de animais a matéria bruta para a elaboração de uma imensa variedade de novas linhagens. O método utilizado – de forma consciente ou inconsciente – pelos criadores é a seleção cumulativa, durante sucessivas gerações, de ligeiros desvios anatômicos ou comportamentais de natureza hereditária. Ora, as mutações que surgem aleatoriamente nada têm de milagrosas: um focinho um pouco mais curto, uma pelagem mais densa, um temperamento mais dócil, flores mais vistosas etc. A prática dos cruzamentos seletivos, ao longo de séculos ou de milênios, permitiu aos criadores, por exemplo, a transformação do lobo (Canis lupus) em centenas de raças caninas tão diferentes quanto o chihuahua, o são-bernardo e o buldogue. Quanto à maioria das plantas domesticadas, um leigo não faz ideia das diferenças que as separam de suas ancestrais selvagens. Em poucos séculos, os horticultores obtiveram, por exemplo, variedades como o repolho doméstico, o brócolis, a couve-flor e a couve-de-bruxelas a partir de um único ancestral, o repolho selvagem (Brassica oleracea); e somente um idiota diria que essas variedades foram produzidas por Deus.

Darwin observou que, em estado natural, as pressões ambientais desempenham o papel dos criadores humanos. No notório caso das Ilhas Galápagos, prosperaram as mutações aleatórias que conferiam aos tentilhões (migrados do continente sul-americano) um incremento adaptativo a condições de vida distintas: bicos de diversos tamanhos e formatos, úteis para as dietas mais variadas.

De modo análogo, peixes não relacionados de diferentes regiões do globo são isolados em cavernas e apresentam as mesmas respostas adaptativas (evolução convergente): uma progressiva atrofia do aparato visual, por exemplo. O cenário proposto pelos acomodacionistas é ridículo. A cada vez que uma população de peixes fosse isolada num ambiente trevoso, um designer inteligente operaria uma sequência correspondente de mutações que resultaria na redução do aparato visual. Com a mesma razão um teólogo poderia afirmar que Deus está por trás de um fenômeno como a deriva continental. Na Antiguidade, relâmpagos e trovões eram atribuídos a Zeus, e terremotos, à fúria de Posídon. Isso faz pensar que o discurso “sofisticado” de um Plantinga não passa de superstição ancestral apresentada sob a cobertura de ouropel de um jargão acadêmico embolado.

ouch!

Mas, claro, nenhum evolucionista teísta de fato liga para espécies insulares, ou para raças de cachorro, repolhos ou peixes cegos. O que importa somos nós -seres bípedes, de telencefalo desenvolvido- e como nos encaixamos no plano divino, qualquer que seja ele. Mas para alcançar o status da evolução materialista, a evolução teísta tem que tratar também desses fenômenos. E quando fazemos isso, evidenciamos a futilidade da empreitada.

Agora, eu acho que o Giuliano deu pouca atenção para o que eu considero talvez o melhor argumento “evolucionista teísta” que, não coincidentemente, é o que parece estar menos presente na cabeça dos advogados dessa ideia. Queria também explorar um pouco mais o exemplo sobre peixes cegos, um assunto que considero fascinante.

Visto que isso ficaria longo demais para um único post eu dividi o assunto em 2 posts a serem colocados a seguir, um tratando sobre peixes de cavernas e outro sobre as visões de Elliott Sober sobre essa questão. Ambos podem ser tomados como posts independentes sobre esses assuntos.

1o Post: Devolvendo a visão aos cegos, Mendel-style!

2o Post: O melhor argumento para o “Evolucionismo Teista”

Aquecimento Global: e que tal essas evidências, Dr. Felicio?

No final do ano passado aconteceu um debate no Jornal da USP (primeiro artigo e replica) sobre aquecimento global. A dança seguiu como de costume: defensores do Aquecimento Global Antropogênico (AGA) falando que os negacionistas não contribuem em nada para a ciência (o que é verdade) e os céticos do AGA (e eu uso o termo “céticos” de forma ampla aqui) acusando os defensores do AGA de não oferecerem provas o suficiente para comprovar o aquecimento.

A discussão teve presença inevitável do nosso amigo Dr. Ricardo Felício, notório cria… oups… “cético”, no artigo de réplica. Depois do meu escrutínio anterior do seu discurso delirante, eu elevei o Dr. Felício ao título de “Saco de Batatas com orelhas”. Ele não tem nada para contribuir, e eu não tenho a menor vontade de voltar a abordar seus argumentos. Entretanto, esse artigo de réplica foi assinado primariamente por um Dr. Kenitiro Suguio. Agora, mais de um paleontólogo colega meu afirmou que o Dr. Suguio é uma referencia na sua área (presumidamente algo a ver com sedimentologia do quaternário) e, diferente do Dr. Felício, parece merecer algum respeito acadêmico. Ok, então ao texto vamos!

A primeira coisa que me saltou aos olhos foi a total ausência de qualquer negação do aquecimento global. Sério, no duro. Vá lá e veja por si mesmo. Em momento algum o Dr. Suguio e companhia negam que existe aquecimento, se limitando a afirmar que

(…) não há qualquer evidência observada no mundo real que permita qualificar como anômalas as variações dos parâmetros climáticos (por exemplo, temperaturas atmosféricas e oceânicas) ou influenciados pelo clima (por exemplo, nível do mar)

O que é uma posição, digamos, muito mais cientificamente conservadora do que negar a existência do aquecimento global. Claro, a afirmação de que os padrões atuais de alteração climática não são anômalos são um tanto… ousada, mas passível de debate. Acho que já abordei isso de forma exaustiva (e você também pode checar os posts no GeneReporter sobre o assunto), então não vou entrar nesse mérito. Mas o que impressiona mesmo é ver o Dr. Felício assinando um texto desses. Afinal, é ele o mesmo que negava explicitamente que a temperatura sequer está aumentando! Não sei, mas algo aqui me cheira muito similar a o que alguns famosos criacionistas fazem ao defender o Design Inteligente como uma versão mais “intelectualmente aceitável” do que sair dizendo que Noé colocou um bando de animais em um bote e fez o pior Big Brother da história. Talvez… quem pode saber?

Digressões a parte, o texto de forma geral gira em torno de um argumento central:

(…) em lugar de evidências físicas, os proponentes do AGA se limitam a oferecer projeções de modelos matemáticos da dinâmica climática e uma exagerada importância atribuída às concentrações atmosféricas de dióxido de carbono (CO2)

Mesmo? É isso tudo que os defensores do AGA fazem? Porque eu sei que os dados climáticos estão por ai, assim como informação sobre emissão de poluentes, e não seria nada impossível simplesmente ver se tais variáveis estão correlacionadas ao longo do tempo. E se tem uma das coisas que eu aprendi na área acadêmica é: toda vez que você tem uma boa idéia, alguém já fez antes e melhor que você.

Teria por acaso alguém que tentou investigar a influencia das emissões na temperatura, e de quebra abordando as principais críticas dos céticos, como coleta de dados mal feita e utilização de metodologias falhas? Então sem mais delongas, com vocês, Dr. Richard A. Muller.

De cético a crente



Dr. Richard A. Muller é um físico da Universidade da California, Berkeley. Em 2004, Muller entrou na dança do Aquecimento global, do lado dos céticos. Aparentemente Muller havia visto a crítica de McIntyre e McKitrick (sobre a qual falei no meu post anterior) e tinha achado as colocações deles válidas:

McIntyre e McKitrick obtiveram uma paste do programa que Mann [famoso autor do gráfico hockey stick) usou, e eles acharam alguns problemas sérios. Não apenas o programa não usa o PCA convencional [uma técnica estatística], mas ele se realiza a normalização dos dados de forma que só pode ser descrita como equivocada. (…) Essa forma inapropriada de normalização tende a enfatizar os dados que tem a forma de hokey stick, e suprime todos os dados contrários. Para demonstrar esse efeito, McIntyre e McKitrick produziram dados que, em média, não tinha padrão. (…) Quando McIntyre e McKitrick deram esses dados para o protocolo de Mann, ele produziu um gráfico de hockey stick. (…) Essa descoberta me atingiu como uma bomba, e eu suspeito que está tendo o mesmo efeito em muitos outros. De repente o hokey stick, o garoto-propaganda ddo aquecimento global é, na verdade, um artefato de matemática ruim. Como isso poderia acontecer?

(tradução porca e ênfase minhas)

Mas Muller, diferente dos céticos padrão, não simplesmente sentou em um canto escrevendo posts zangados na internet (sim, eu sei… hipócrita), e resolveu colocar a mão na massa: arrecadou fundos e fundou o BEST – Berkeley Earth Surface Temperature – com o objetivo principal de arrecadar dados que eles consideram confiáveis sobre o clima, de uma perspectiva inicialmente cética.

E Muller enfrentou muita critica nesse ponto: dizer que não confia na capacidade de coleta de dados dos outros e que irá fazer tudo do zero é mandar o dedo médio para uma comunidade científica inteira (comunidade que ele, como físico, não fazia parte). Mas… e daí? Os climatologistas podem se sentir o quanto ofendidos eles acharem certo. Isso não muda o fato de que verificação independente é um dos pilares centrais da ciência. Muller estava certo de agir sob seu ceticismo, que é algo que não pode ser dito da maioria dos céticos do AGA.

Então, Muller lançou o BEST para resolver tudo, desde a coleta, sumarização, elaboração de novas metodologias e analise dos dados. E o que ele achou?

Estimativas da temperatura anual (esquerda) e por decada (direita) atuais e até 3 séculos atrás. Estimativas do BEST em preto, intervalos de confiança em cinza. Estimativas de outros estudos em outras cores.
Em primeiro lugar, nota-se que as estimativas do BEST correspondem muito com as geradas por outros estudos, para o período que eles coincidem, corroborando assim os estudos anteriores. Adicionalmente, eles conseguiram ampliar a janela temporal, estendendo as estimativas até o ano de 1750.
Tudo é bastante impressionante, principalmente porque, com uma janela de dados dessa magnitude, Muller e colegas resolveram testar diversas hipóteses, incluindo a influencia da emissão de poluentes na temperatura média, mas também dos ciclos solares e de eventos vulcânicos, duas criticas comuns dos céticos. Os resultados eu acho falam por si só:
Em vermelho, temperatura média esperada em decorrência da influência das emissões de CO2 e emissões vulcânicas (que são as quedas mais abruptas de temperatura, antes de 1850). Emissões de radiação solar não influenciaram significativamente as estimativas.
Resumindo: o aumento de temperatura parece estar principalmente ligado à emissão de CO2, irradiação solar não parece influenciar os padrões atuais e eventos vulcânicos tem uma influencia no clima, mas não explicam nenhuma tendencia atual. Dr. Muller foi bastante não-ambíguo em relação a esses resultados:

Eu conclui que o aquecimento global é real e as estimativas anteriores estavam corretas. Agora eu estou indo um passo além: Humanos são quase que inteiramente a causa.

Claro, a analise não é desprovida de falhas: em primeiro lugar os autores não puderam diferenciar a influencia do CO2 da influencia de outros gases, basicamente porque o aumento nas taxas de emissão estão muito correlacionadas entre si. Em segundo lugar, a analise é muito simplista, então eu não descartaria a possibilidade de uma influencia moderada de radiação solar. Mas é válido notar que os autores sabem dessas limitações e decidiram usar uma analise simples (uma análise de regressão simples) exatamente para limitar qualquer crítica metodológica.

E, de qualquer forma, o BEST disponibiliza todos os dados em seu site. Ou seja, qualquer um pode baixa-los, e analisá-los por si mesmo. Então, Dr. Richard A. Muller, por ser um verdadeiro cético com compromisso com a metodologia científica e transparencia acadêmica: cookie points para você. Pontos extras por me fazer poder afirmar confortavelmente que a AGA parece ser a melhor explicação para os dados que temos, e que devemos aceita-la para elaboração de políticas publicas.

Não me entendam mal: meu lado ambientalista anda bastante pessimista, até mesmo no que tange a conservação das espécies. O máximo que quero agora é que consigamos a maior quantidade de informações sobre a biologia das espécies atuais antes que a paleontologia se torne o principal ramo da biologia. Então eu realmente não ligo para o que vai ser feito com essa informação sobre o aquecimento. Seria ótimo que isso fosse utilizado para regulamentar a emissão de gases e para melhorar nossa qualidade de vida, mas não tenho esperanças nisso.

Então… aparentemente sobra a pergunta para Dr. Felicio, Dr. Conti e Dr. Suguio: que tal essas evidências físicas do Aquecimento Global Antropogênico?

Referência
Robert Rohde, Richard A. Muller, Robert Jacobsen, Elizabeth Muller, Saul Perlmutter, Arthur Rosenfeld, Jonathan Wurtele, Donald Groom, & Charlotte Wickham (2012). A New Estimate of the Average Earth Surface Land Temperature Spanning 1753 to 2011 Geoinformatics & Geostatistics: An Overview, 1 (1) : 10.4172/gigs.1000101

Seleção natural não é uma tautologia

Ann Coulter, o sonho molhado de todo conservador Norte-Americano.
É a da direita, eu suponho…

Um dos argumentos que considero mais irritante utilizado por detratores da síntese evolutiva moderna é que a a seleção natural seria uma tautologia. Tal argumento foi colocado pela “pensadora” conservadora norte-americana Ann Coulter em seu livro “Godless: The Church of Liberalism” da seguinte forma:

A segunda parte da “teoria” de Darwin é geralmente nada mais do que um argumento circular: Através do processo de seleção natural, o mais “apto” sobrevive. Quem é o mais “apto”? O que sobrevive! Oras, veja – acontece toda vez! A “sobrevivência do mais apto” seria uma piada, se não fosse parte de um sistema de crença de um culto fanático infestando a Comunidade Científica. A beleza de ter uma teoria cientifica que é uma tautologia, é que ela não pode ser testada.

É interessante notar que quem se vale desse argumento, não nega a existência da seleção natural, pelo contrário: afirma a sua existência como uma verdade inescapável. Quanto falamos de uma tautologia, estamos falando de uma proposição, a qual assume a seguinte forma:

A apresenta as propriedades de A

Por trás da circularidade e obviedade da preposição, está o fato de que uma tautologia é uma verdade necessária. Afirmar que “A não apresenta as propriedades de A” significaria dizer que existe alguma propriedade de A que não é propriedade de A, ou que A não apresenta todas as propriedades de A, sendo que ambas são absurdos lógicos. Em nenhum caso tal afirmação (ou qualquer outra tautologia) pode ser falsa sem simplesmente fazer uma contradição que fere as leis da lógica (o que as tornam logicamente necessárias). Então, nesse ponto, Coulter está correta: uma tautologia não pode ser falseada, pois ela é uma necessidade lógica. Mas seria a teoria da seleção natural uma tautologia de fato?

“Sobrevivência do mais apto”

Uma das primeiras coisas que devemos notar é que “sobrevivência do mais apto” não é exatamente uma das descrições mais adequadas da Seleção Natural. Mas em primeiro lugar, temos que deixar bem claro um conceito que é comumente confundido, que é o de “aptidão”, “aptidão darwiniana” ou “fitness” em inglês.

A aptidão, em biologia evolutiva, é definida como a contribuição média de um genótipo para o pool gênico da geração seguinte. Por exemplo, se tenho uma bactéria (haplóide) com um dado genótipo que apresenta fitness=1.47, então a presença do genótipo na geração seguinte será 47% maior do que na geração anterior. Se o fitness=0.91, então aquele gene terá uma presença 9% menor na geração seguinte e por ai vai.

Note que em nenhum momento precisamos falar de sobrevivência. Afinal, o que seria “sobrevivência” no caso de bactérias que simplesmente se dividem? Faz algum sentido falar que a bactéria da esquerda é a que “sobreviveu”, e não a da direita?

Uma historia de amor melhor que Titanic

O ponto é que um organismo não precisa morrer para ter um fitness baixo. Um organismo pode muito bem ter uma baixa fecundidade, sem nunca precisar “deixar de sobreviver” ou, como no caso das bactérias, sobrevivência é irrelevante visto que todos organismos originais deixam de existir após a reprodução. Outro exemplo são algumas espécies de salmão e polvos, que morrem após o acasalamento, louva-deuses e aranhas que consomem os seus machos, ou ainda algumas espécies de ácaros que explodem ao dar luz aos filhotes. Aptidão não tem a ver com sobrevivência.

– Tira esse hectocótilo daí, João!
Esse papo de sexo vai acabar nos matando…

Então, fica bem claro que “sobrevivência do mais apto” não é uma tautologia, pelo simples fato de que “sobrevivência” não é estritamente igual (apesar de poder influenciar) “aptidão”.

Isso tudo é apenas para demonstrar que o argumento original utilizado está errado. Porém os mais rápidos vão notar que isso não refuta a proposição de que “seleção natural é uma tautologia”: apesar do argumento dos detratores/criacionistas estar equivocado, ainda poderíamos transformar a proposição original em algo próximo a o que seleção natural realmente significa, produzindo assim uma tautologia. Mas como seria isso?
Aptidão como taxa
Se “sobrevivência do mais apto” está equivocado, então como poderíamos frasear a ideia original da melhor maneira possível?

Sobrevivência do melhor sobrevivênte“?

É claramente uma tautologia, uma verdade trivial, mas não parece ser exatamente o que temos em mente quando pensamos em “seleção natural”. Poderíamos pensar em algo na linha de

Capacidade superior de contribuir para o pool gênico da geração seguinte do genótipo (ou fenótipo) mais apto

Bom, essa parece mais próxima da ideia original, mas ela dificilmente é uma tautologia. O motivo é muito simples: ela é falsa. Isso pode ser ilustrado facilmente com uma analogia: a adaptação é uma taxa de variação da frequência de alelos, assim como aceleração é a taxa de variação da velocidade. Se fossemos formular uma proposição análoga para aceleração, teríamos algo similar à

A maior velocidade do que mais acelera

Isso é falso pelo simples motivo de que o que mais acelera pode ser o mais devagar, enquanto o mais rápido pode acelerar menos, mas manter uma velocidade superior pelo simples fato de inicialmente já apresentar uma velocidade superior.
O gráfico abaixo ilustra isso para uma população de organismos haplóides que apresentam dois genótipos, sendo que A2 apresenta uma aptidão duas vezes maior do que A1. q’ é a frequência genotípica após a seleção e q1 é a frequência genotípica de A1 antes da seleção (sendo que a frequência de A2 fica definida como 1-q1).
Assim, fica fácil verificar que, mesmo A2 tendo uma aptidão duas vezes maior, ele não consegue ser o maior contribuidor para o pool gênico na geração seguinte quando sua frequência inicial é muito baixa (ou quando a frequência de A1 é muito alta, no canto direito do gráfico). Moral da historia: aptidão sozinha não determina sucesso evolutivo na geração seguinte.

Um detrator mais perseverante pode argumentar que, se dermos tempo o suficiente (em outras palavras, um numero muito grande de eventos de seleção ou gerações), o genótipo mais apto irá se fixar, não importando sua frequência original, e ele estaria certo ao dizer isso. Mas note que a premissa “dado muito tempo” precisa ser introduzida para que torne a afirmação verdadeira. Essa premissa pode tanto ser ou não verdadeira (da mesma forma que carros e trens não aceleram indefinidamente), o que torna a proposição condicional, não uma verdade necessária e, logo, a proposição não é uma tautologia.

Mas isso tudo gera um impasse. Todas as proposições – tanto as originais, tanto as que tentam se aproximar do significado verdadeiro dos termos no contexto da síntese evolutiva – se mostraram falsas. Seria possível elaborar uma proposição que seja precisa (represente a ideia da seleção natural) e que seja colocada de forma lógica?

Seleção natural como silogismo

Em primeiro lugar, devemos entender como seleção natural ocorre. Não, não estou falando apenas daquele velho e batido exemplo do passarinho comendo os besouros que são mais chamativos, mudando assim a composição da população:

-Na verdade eu enxergo todos os besouros, mas meu médico disse que uma refeição colorida é uma refeição divertida

Esse é um ótimo exemplo para mostrar como seleção natural pode levar à evolução de um fenotipo de forma direcional (existem mais besouros marrons no final do que no começo), mas existem sistemas mais complexos de seleção que não levam a uma mudança nesse sentido. O exemplo mais claro é o da interação da anemia falciforme e malaria, no qual são mantidos indivíduos com genótipo não-letal da anemia na população. Não há mudança, mas há seleção.
Então, como poderíamos definir seleção natural? Na introdução do Origem das Espécies, Darwin resume brevemente como seria o mecanismo:

Como nascem muitos mais indivíduos de cada espécie, que não podem subsistir; como, por conseqüência, a luta pela existência se renova a cada instante, segue-se que todo o ser que varia, ainda que pouco, de maneira a tornarse-lhe aproveitável tal variação, tem maior probabilidade de sobreviver, este ser é também objeto de uma seleção natural. Em virtude do princípio tão poderoso da hereditariedade, toda a variedade objeto da seleção tenderá a propagar a sua nova forma modificada.

Nesse resumo, ele coloca os 3 principais componentes necessários para que ocorra seleção natural (que eu gentilmente sublinhei, para seu conforto): variação em uma caracteristica, diferenças de aptidão (ele fala de sobrevivencia, mas sabemos que isso não é a única variável) ligadas a variação nessa característica, e hereditariedade dessa característica.

Note que, se uma população apresenta variação em uma característica, mas essa não apresenta nenhuma ligação com aptidão, então a “seleção” de organismos é completamente aleatória em relação a aquele caractere (não sendo seleção natural). Agora, se o caractere é ligado com aptidão, mas não é herdado, então mesmo que organismos com uma dada característica seja selecionada, ele não vai passar tal característica para a geração seguinte. Esses componentes são necessários (todos precisam estar presentes) e suficientes (nenhum outro componente precisa estar presente) para que ocorra seleção natural, apesar de outros fatores influenciarem a dinâmica de seleção.

Sendo assim, podemos definir seleção da seguinte forma:

[P1.] Existe variação entre indivíduos para uma dada característica;
[P2.] Tal variação está ligada entre progenitores e prole através de uma relação de herança, e que seja parcialmente independente dos efeitos ambientais;
[P3.] Existe uma correlação dessa característica com a habilidade reprodutiva, fertilidade, fecundidade e/ou sobrevivência (ou seja, diferenças em aptidão);

Se tais condições são satisfeitas para uma dada população natural, então:

[C1.] Diferenças na frequência das características ligadas à aptidão na geração subsequente vai ser serão diferente daquela vista nas populações parentais.

(Modificado de Lewontin, 1970, 1982; e Endler, 1986)

Se as premissas são corretas, então a conclusão segue logicamente. Isso torna a seleção natural, expressa dessa forma, um silogismo, ou uma conclusão dependente das premissas estabelecidas, e não uma tautologia.

Note que para testar cientificamente (no caso, falsear) a hipótese de que uma população está sob seleção natural, um pesquisador pode testar qualquer uma dessas proposições. Afinal, se C1 é falso, então obviamente a população não está sob seleção, mas isso não implica necessariamente que a população está sendo selecionada: uma mudança ambiental pode estar influenciando aspectos dessas características diretamente nos indivíduos, como pele morena em quem toma muito sol. Se os filhos tomam mais sol, eles terão a pele mais escura, sem que isso seja seleção natural. Por esse motivo, é necessário averiguar o quão herdável é uma característica (P2) e se a variação (P1) está ligada a aptidão (P3). De forma geral, é isso que os estudantes de seleção natural fazem, e é a síntese evolutiva moderna que proporciona o arcabouço matemático que nos permite gerar previsões teóricas de como um caractere deve se comportar sob o efeito de seleção (dado que ele apresenta algum tipo de herança mendeliana).

Então… da próxima vez que alguém dizer que evolução é uma tautologia, você pode dizer: “Não, não é. É um silogismo Quod erat demonstrandum, bitches!”.

Referencias

Lewontin, R. (1970). The Units of Selection Annual Review of Ecology and Systematics, 1 (1), 1-18 DOI: 10.1146/annurev.es.01.110170.000245

Porque você acha que seu chefe é idiota



via diogro


Já teve a sensação de ser mais competente que seu chefe? É uma sensação incrivelmente comum, porém completamente contra-intuitiva. Afinal, espera-se que que um chefe tenha atingido seu posto na hierarquia de uma empresa após demonstrar competência, e por trazer benefícios à instituição. Como poderia alguém que foi considerado tão competente por outrem ser aos seus olhos tão estúpido, ou, mais especificamente, menos competente que você? Afinal, se você é mais competente que seu chefe, você não deveria estar no cargo de chefia?


Esse sentimento foi imortalizado nos quadrinhos Dilbert, no personagem do Chefe: um individuo ignorante, incompetente e totalmente alienado da realidade da empresa (e, em alguns casos, do mundo)




-Nós precisamos de mais programadores
-Use  métodos ágeis de programação
-Programação ágil não significa apenas que famos fazer mais trabalho com menos pessoas
-Então me ache alguma palavra que signifique* isso e me pergunte novamente.

*[haeck]: Ha, notaram o que eu fiz? De novo a coisa toda de significado.

Para investigar essa questão, Plushino e colegas recorreram a uma solução criativa: eles retomaram um princípio proposto pelo psicólogo canadense Laurence J. Peter nos fins dos anos 60. Segundo Peter: 

‘Cada novo membro em uma organização hierárquica sobe na hierarquia até que ele/ela atinja seu nível de máxima incompetência’


Ou seja, segundo este princípio, quanto mais alto um individuo avança na escala hierárquica de uma empresa, mais incompetente ele se torna, até atingir o ponto mais alto, onde sua incompetencia será igualmente maior.


Representação esquemática de uma organização hierárquica. Quanto mais escuro o individuo, maior o seu nivel de competência. À esquerda temos os valores médios de competência para cada nivel, que vai aumentando na medida que subimos na hierarquia. Esse exemplo representa nossa ideia intuitiva de progresso hierárquico, onde o melhor individuo de uma camada inferior é escolhido para compor a camada superior, e assim sucessivamente. De Plushino et al.


Os autores colocam no resumo:


Apesar de não aparentar razoável, esse principio agiria realisticamente em qualquer organização onde o mecanismo de promoção recompensa o melhor membro e onde a competência no nível atual não depende da competência que ele possuía em níveis anteriores, usualmente porque a tarefa nos diferentes níveis são muito diferentes umas das outras.


Ou seja, um padeiro, por melhor que ele seja em fazer pães, não precisa saber muito sobre administrar uma padaria. Ou seja, promover o melhor padeiro para administrador pode não ser a melhor jogada.


Para investigar a possível influência do Princípio de Peter em uma organização hierárquica, os pesquisadores produziram um modelo bem simplificado, no qual eles simulavam os diversos individuos da hierarquia como apresentando apenas duas características: competencia global e idade. A seguir, eles distribuíram os individuos nas diversas hierarquias, e iniciaram as rodadas da simulação. Cada rodada consistia na avaliação da competencia global do indivíduo e sua subsequente demissão ou promoção, sendo que individos acima de 60 anos se aposentavam. Eles também testaram dois diferentes cenários: no primeiro, chamado de “Hipótese de Peter”, os indivíduos, quando movidos para uma hierarquia superior, ganhavam um novo valor de competencia (pois, afinal, administrar tem pouco a ver com fazer pães). No segundo cenário, chamado de “Hipótese do Senso-Comum“, os individuos mantinham sua competencia quando subiam na hierarquia. Adicionalmente, os pesquisadores investigaram a influencia de 3 diferentes estratégias de promoção nesses dois cenários diferentes: a primeira é quando o melhor funcionário é promovido para a hierarquia superior (“The Best“), a segunda é quando o pior é promovido (“The Worst“) e a terceira os funcionários são promovidos aleatoriamente (“random“). Eles então mediram a eficiência global da organização, para ver o efeito das hipóteses e das estratégias de promoção em uma organização.


Os resultados são bem curiosos:


De Plushino et al.

As linhas representam a evolução da competencia global da instituição nas diferentes hipóteses: em vermelho vemos a Hipótese de Peter e em preto temos a Hipótese do Senso Comum. As diferentes linhas de uma mesma cor representam as diferentes estratégias de promoção.

Ou seja, segundo essa simulação, se uma organização na qual o Princípio de Peter não atua (Senso Comum) a promoção de individuos competentes leva a um aumento global na performance da instituição, enquanto promover o pior indivíduo piora a performance da instituição. Promoções aleatórias são intermediárias, como esperado. Agora, em uma organização onde o Princípio de Peter atua, o resultado é oposto: promover os indivíduos melhores piora mais a performance de uma instituição do que promover os piores individuos de uma instituição sem o Princípio. A solução que aparentemente melhora a produtividade média da instituição é a promoção dos indivíduos piores. Novamente, a promoção aleatória apresenta valores intermediários de competencia global.


A partir disso, os autores concluem:


Nosso estudo computacional do Princípio de Peter aplicado a uma organização prototípica com uma hierarquia piramidal mostra que a estratégia de promover os melhores membros, no cado da Hipótese de Peter induz um rápido decréscimo de eficiencia.


Eles ainda adicionam que a estratégia de promoção mais segura para a organização, seria a promoção aleatória, que no pior dos casos, não implicaria em um decréscimo da eficiencia global de uma organização.


Agora, eu não faço a menor ideia de o quanto o Princípio de Peter é empiricamente verificado. Me parece complicado conseguir medir “competência” de forma objetiva, principalmente quando estamos comparando entre ocupações muito diferentes (como presumidamente elas precisam ser para o princípio de Peter ser válido). 


Mas, supondo que seja verdade, o que isso faz com as nossas noções de “meritocracia”, até mesmo no contexto acadêmico? O quanto a eficiencia de um estudante é determinante para o seu sucesso universitário ou profissional? O quanto nossas avaliações de mérito acadêmico refletem de fato o que se espera da pessoa, a partir do momento que ela ganha a “promoção” (passa no vestibular, conclui a graduação, etc)? Isso explicaria talvez o fato de que alguns cotistas apresentam desempenho acadêmico melhor ou igual aos não-cotistas, mesmo tendo notas mais baixas no vestibular?


Referência

Pluchino, A., Rapisarda, A., & Garofalo, C. (2010). The Peter principle revisited: A computational study Physica A: Statistical Mechanics and its Applications, 389 (3), 467-472 DOI: 10.1016/j.physa.2009.09.045

A irrelevância terminológica do Homossexualismo



A alguns dias atrás, a primeira página da Folha de São Paulo me chamou muita atenção, por conter a chamada para um editorial de Helio Schwartsman, no qual ele defende os homossexuais e ataca o Pastor Silas Malafaia. Schartsman coloca que o Pr. Malafaia tem a liberdade de colocar a opinião que quiser como pastor, mas quando emite seu parecer como psicologo, tem o dever moral de se ater às evidencias (o que sugere, ao meu ver, que suas opiniões como pastor não seguem nenhuma dessas linhas):

A coisa muda um pouco de figura quando o indivíduo fala na condição de psicólogo ou membro de outra categoria profissional que se apoie, ainda que imperfeitamente, numa ciência. Do mesmo modo que um médico não pode sair por aí dizendo que cura doenças incuráveis, um psicólogo não pode proclamar que possui terapias efetivas contra o que seu ramo de saber nem sequer considera moléstia. Não se pode bater de frente e em público contra os consensos da disciplina. Diversas disposições do Conselho Federal de Psicologia proíbem seus profissionais de “patologizar” o homossexualismo.


Porém, como é vidente, Schartsman usa o termo “homossexualismo” e não “homossexualidade”, o que costuma causar desconforto nos membros do movimento gay. E tanto foi que ele emitiu um novo editorial onde ele defende o uso do termo e rebate as críticas:


Ao contrário do que dizem alguns militantes, simplesmente não é verdade que “-ismo” seja um sufixo que denota patologia. Quem estudou um pouquinho de grego sabe que o elemento “-ismós” (que deu origem ao nosso “-ismo”) pode ser usado para compor palavras abstratas de qualquer categoria: magnetismo, batismo, ciclismo, realismo, dadaísmo, otimismo, relativismo, galicismo, teísmo, cristianismo, anarquismo, aforismo e jornalismo. Pensando bem, esta última talvez encerre algo de mórbido, mas não recomendo que, para purificar a atividade, se adote “jornalidade”.



De fato, a crítica ao uso do termo “homossexualismo”, por esse denotar doença é um tanto descabida, ainda mais que o termo foi usado explicitamente para rebater essa associação absurda.

Isso não significa que outros motivos melhores para negar o termo não tenham sido feitos. Um exemplo é argumentar que homossexualismo não possui o análogo para heterossexualidade, que seria “heterossexualismo”. É um ótimo ponto, mas irrelevante para mim. Meu interesse é debater ideias e conceitos, e não terminologia. Utilizar um termo de maneira incorreta, para mim, significa usar um termo que não reflete o conceito que quero transmitir, e essa não parece ser a briga entre -ismoX-dade.

Por motivo similar, não encho o saco da Sociedade Racionalista porque não sigo o racionalismo, ou da Liga Humanista Secular porque o humanismo é antropocentrista. Sei o que esses grupos querem dizer por “Racionalismo” e “Humanismo” e isso me basta para uma comunicação eficiente de significados.

Em momento algum, antes de ser chamado a atenção sobre esse ponto, usei o termo “homossexualismo” para denotar uma “doença” ou condição que requer cura. A troca do termo para mim foi apenas uma transferencia de significado: nada novo foi aprendido ou revelado, exceto o fato de que pessoas podem se ofender pelo uso do termo que eu originalmente usava, o que me bastou.

Essa ideia de que palavras carregam em si conceitos inalienaveis é “politicamente correta” (no sentido que já utilizei antes) demais para o meu gosto. Mas de forma análoga, não acho que a defesa do uso do termo “homossexualismo” como sendo válida faz sentido. Nessa categoria encaixamos indivíduos como o Pr. Silas Malafaia, que me parece usar o termo para denotar exatamente uma doença (o que é mais do que evidente a partir do seu discurso); e provavelmente para irritar pessoas, como estratégia retórica. O que pode ser chamado, tecnicamente, de “dar uma de cretino”.

Isso tudo não significa que não existem motivos para rejeitar o uso do termo “homossexualismo”. Em uma sociedade plenamente racional, imagino, pessoas reconhecem as limitações linguísticas deles mesmos e dos outros, e batalham para quebrar “barreiras semânticas” para engajar conceitos de forma eficiente.

Porém a falha desse raciocínio é obvia: não vivemos em uma sociedade plenamente racional. Pessoas confundem termos por conceitos, e normalmente recaem no que é chamado de “falácia da equivocação”: usar um termo que pode apresentar dois ou mais significados, intercambiando-os de forma inapropriada. O exemplo mais clássico e desprezível (também usado pelo Pr. Malafaia) é se referir a Teoria da Evolução como “apenas uma teoria” (ver aqui o porque isso está errado). Assim sendo, usar o termo “homossexualidade” ao invés do termo “homossexualismo” pode evitar equívocos de comunicação, como os críticos de Schartsman que, aparentemente incapazes de ler, o criticaram por defender uma posição que ele explicitamente rejeitou.

Então, pelo bem da comunicação, use “homossexualidade”. Não seja preguiçoso.

Ciência é que nem salsicha


Rigor metodológico sempre foi um dos principais méritos da Ciência. A delimitação e exposição honesta da metodologia de um trabalho científico é o que permite que outros pesquisadores e estudantes repliquem seus achados de forma a valida-los ou refutar suas conclusões.

Bem, isso na teoria.

Na prática, ciência é muito parecida com qualquer outro trabalho: muitas vezes temos que cumprir protocolos e resolver problemas em condições sub-ótimas, em contextos alucinados, em meio a problemas pessoais e profissionais. Ou seja, é uma zona.

Motivado por esse contexto caótico, ontem estourou um hashtag #OverlyHonestMethods no twitter, que seria melhor traduzida como “Métodos Honestos Demais” (“Métodos” faz referência à parte de um artigo científico onde está delimitado o protocolo experimental que foi seguido). Milhares de cientistas e estudantes manifestaram de forma bem humorada situações da parte humana do cotidiano acadêmico.

Eu obviamente me deleitei (e ainda estou me deleitando) com essa HT (que, segundo o Igor Santos, “é como a galera legal cita hashtag a partir de agora”). O Bernardo Esteves da Piauí fez uma compilação e tradução de algumas, mas para os que entendem ingles sugiro visitar aqui e aqui para listas bem maiores e melhores. Mas como os twits não param, aconselho seguir a HT. A diversão é garantida.

Agora, como sou levemente egomaníaco, abaixo vou compilar traduções dos meus twits. Talvez não sejam os melhores (os biólogos moleculares parecem ficar com metade da diversão), mas eles refletem muito do que é a minha vida acadêmica. Obviamente existem hipérboles e sátiras, mas algumas passagens são bastante literais. Deixo para vocês descobrirem quais são quais.

(twits originais estão no link entre parênteses)

“O tempo de duração das gravações variou entre 30-50min. Esse era normalmente o quanto durava minha soneca pós-almoço.” (link

“Nós desenvolvemos uma nova métrica para excluir todos os parâmetros que precisariam ser medidos através de trabalho de campo árduo” (link

“Nós apenas correlacionamos a porra toda e então achamos algumas racionalizações engenhosas na literatura”  (link

“Código está disponível através de pedido, porque nós conseguimos programar em C, mas não temos a menor ideia de como construir uma página da internet”  (link

“Todos os nossos resultados foram não-significantes no nível de alfa=0.05, então nós começamos a aprender estatística bayesiana”  (link

“Nós diminuímos a variância residual em nossa regressão linear aumentando o tamanho dos pontos”  (link

“Por sorte, a curva de acumulo de espécies estabilizou quando um morcego raivoso mordeu minha mão” (link

“As redes de neblina foram abertas das 8pm até 11pm porque a siesta durou um pouco mais naquele dia” (link)  

“O revisor sugeriu um teste de normalidade para o uso de estatísticas não-paramétricas, mas SÉRIO cara, os caracteres tem apenas 2 malditos estados!” (link

“Nós transcendemos a epistemologia Popperiana porque nos demos conta de que nosso trabalho era infalseável”  (link)

A Veja falou de papeis de gênero, confundiu com orientação sexual e (quase) ninguém notou

Já deve fazer mais de um mês que tivemos aquele lindo editorial “Parada Gay, cabra e espinafre” do José Roberto Guzzo na Veja sobre homossexualidade que causou tanta revolta e discussão. O editorial foi desconstruído de quase todas as formas possíveis, sendo que a melhor, de longe, foi a produzida pelo deputado Jean Wyllys.
O que poucos notaram, entretanto, é que na semana seguinte desse fiasco a mesma revista produziu uma matéria intitulada “Educados no sexo neutro”. A matéria é tão repulsiva que sugiro um bom anti-ácido antes da sua leitura (ela pode ser lida na integra aqui). Estranhamente, apesar do assunto e enfoque serem afins do da matéria do Guzzo, quase ninguém notou sua existência na época, com exceção talvez da Jaqueline Jesus, uma psicologa que escreveu um post bastante explicativo (e referenciado) sobre o assunto.
A tese central da matéria está explicada na sua chamada:

“Uma corrente pedagógica defende a tese de que meninos e meninas devem ser criados de forma igual. O perigo é confundi-los acerca de sua sexualidade” 

A matéria segue explicando que:

“Segundo esse ponto de vista, não se deve influenciar a criança a adotar comportamentos que sempre foram vistos como típicos de seu sexo. A educação de gênero neutro abriga um objetivo nobre que, para ser alcançado, exige práticas arriscadas. A ideia dos que advogam essa corrente pedagógica é eliminar de uma vez por todas os velhos padrões que põem a mulher como dona de casa e o homem como o macho provedor, a mulher como o ser delicado que atende às vontades masculinas e cuida da prole. A liberdade de escolha para inverter os papéis tradicionais, para quem segue essa corrente, é um exemplo positivo na educação dos filhos.”

Mas como isso pode influenciar negativamente a sexualidade das crianças não é explicado. A matéria, entretanto, dá dois exemplos. O primeiro é referente a filha do casal Angelina Jolie e Brad Pitt:

Shiloh Jolie Pitt- Uma criança que aparentemente não é
mais linda e sexualmente confusa ¬¬
“Eles dizem criar sua filha Shiloh, hoje com 6 anos, dentro das normas da educação de gênero neutro. Angelina já foi vista comprando roupas de menino para Shiloh. Permite que a menina use gravata, sapatos masculinos e cortes de cabelo idem. A atriz costuma se desentender com a sogra, que insiste em presentear a neta com roupas femininas e fantasias de princesa. O resultado é que o lindo bebê que aparecia no colo de Angelina em seu primeiro ano de vida hoje surge nas fotos com a aparência masculinizada.”
Tirando a total repulsa que qualquer ser humano decente deveria sentir depois de ler essa frase, fica a pergunta: como esse exemplo corrobora a afirmação de que educar crianças nessa linha pedagógica “confunde sua sexualidade”? A menina tem 6 anos! Que tipo de sexualidade uma criança dessa idade deveria ter? É isso que os jornalistas da Veja estão advogando agora? Sexualidade em crianças pré-púberes?
O segundo exemplo é mais repulsivo ainda:

“Até hoje a ciência não descobriu se a homossexualidade é inata ou adquirida no meio social, mas já se tem certeza de que toda criança nasce com predisposição a desenvolver características psicológicas do sexo a que pertence. A literatura médica está repleta de casos em que os pais tentaram dar outra orientação sexual aos filhos, com resultados lamentáveis. O caso recente mais conhecido é o do canadense David Reimer. Em 1966, antes de completar 1 ano, Reimer teve o pênis extirpado numa cirurgia de circuncisão desastrada. Seus pais cruzaram os Estados Unidos para consultar o psicólogo Jolin Money, na época considerado uma autoridade em diferenças entre os gêneros. Money aconselhou uma cirurgia de mudança de sexo, com a construção de uma vagina artificial seguida de um bombardeio de hormônios femininos. Na ocasião, Money tentava comprovar a teoria de que não eram as características físicas que determinavam o sexo, e sim a educação dada pela família. Os pais concordaram com a cirurgia e Reimer, rebatizado de Brenda, foi criado como uma menina. Logo se constatou o fracasso da empreitada. Aos 2 anos, Reimer rasgava seus vestidos com raiva. Recusava-se a brincar com bonecas. Mais tarde, na escola, sofria bullying por causa de seus trejeitos masculinos. Seus pais só lhe contaram sobre a cirurgia de mudança de sexo aos 14 anos. Em 2004, aos 38 anos, Reimer se matou.”

Agora, o caso do David Reimer é bastante conhecido e a matéria deixa de fora detalhes bastante convenientes sobre a história. Primeiramente, David tinha um irmão gêmeo Bryan, que não sofreu o mesmo infortúnio que ele. Apesar disso, o Dr. Money forçava os gêmeos a encenarem relações sexuais quando crianças. David afirmou lembrar ter que ficar “de quatro”, com seu irmão por trás dele, forçando sua genitália contra sua bunda. Em outras ocasiões, ele tinha que ficar de barriga para cima, com as pernas abertas, enquanto seu irmão emulava penetrações. Como se não bastasse isso, Bryan desenvolveu esquizofrenia e foi encontrado morto dois anos antes do suicídio de David, em decorrência de uma overdose de antidepressivos. Alguem em sã consciência pode acreditar que isso é um bom exemplo de uma “tese de que meninos e meninas devem ser criados de forma igual“?
David Reimer – atormentado por seu psicologo durante a vida e depois
da morte por idiotas preconceituosos.

A matéria é um festival de lugares-comuns e bobagens heteronormativas. Confundem sexualidade com papel de sexo, sugerem que respeitar a identidade de gênero de crianças é “forçar” algo sobre elas e dão um péssimo exemplo de jornalismo. É uma matéria construída quase que exclusivamente para vender homofobia travestida de preocupação parental. E você pode convencer um pai de qualquer coisa, se ele acredita que o futuro do seu filho está em perigo.

A jornalista que escreveu essa matéria deveria se envergonhar.

Porque existem tão poucos evolucionistas negros?

Recentemente me deparei com o canal do youtube “Evolution: This View of Life” (A.K.A. EvolutionTVOL) comandado pelo David Sloan Wilson (que também tem um blog no ScienceBlogs). Aparentemente o canal consiste de entrevistas com pesquisadores da área de biologia evolutiva e exibe um formato muito interessante. A entrevista que mais chamou atenção foi a intitulada “O mito da Raça, diferenças raciais em saúde e porque temos tão poucos evolucionistas negros“, com o biólogo evolutivo Joseph L. Graves.

Greves trabalha em uma área da biologia evolutiva muito interessante, tentando responder porque organismos envelhecem. Fora isso, ele também apresenta um interesse muito grande na interface de questões raciais e biologia evolutiva. Durante a entrevista Graves esclarece o porque ele acredita que raças humanas são um mito (basicamente porque temos pouquíssima divergência genética entre grupos) e explica brevemente sobre as causas evolutivas de problemas de saúde ligadas a adaptações alimentares de nossos antepassados (basicamente que quanto mais próxima é sua alimentação da dos seus antepassados, melhor para você).

Joseph L. Graves, primeiro PhD em biologia evolutiva
Negro dos Estados Unidos

Mas o que me chamou muita atenção foi a última questão, brevemente respondida no fim da entrevista, que é: Porque existem tão poucos biólogos evolutivos negros? De fato, em toda minha vida acadêmica só me recordo de ter conhecido um biólogo evolutivo negro (um pesquisador de Harvard, que não me recordo o nome). Graves, que foi o primeiro norte-americano negro a receber o PhD na área, estima que não existam mais do que 10 biólogos evolutivos negros nos EUA, e que biologia evolutiva é, de fato, a área acadêmica na qual os negros são menos representados.

Mas então, qual é a resposta para a questão? Bem, religião. Segundo Graves (que é religioso, por sinal), a comunidade negra norte-americana adotou o cristianismo de uma forma muito mais intensa e fervorosa do que os brancos. Especificamente, que eles adotaram uma perspectiva literalista e fundamentalista da bíblia, o que claramente contradiz os achados da biologia evolutiva.

Graves não deixa muito claro se essa é sua opinião ou se ele tem algum tipo de evidencia para corroborar esse cenário. Ele cita sua experiência pessoal lecionando para alunos negros, e o reconhecimento que eles rejeitam diversos achados da ciência por estes confrontarem com sua fé. Isso é de fato consistente com algumas evidencias sobre a influencia da religião no conhecimento científico (aqui e aqui), então me parece um cenário razoável. Graves ainda coloca que enquanto não reconhecermos essa fonte de conflito não poderemos resolver essa e outras questões relacionadas de forma satisfatória.

Eu confesso que essa talvez seja a minha maior bronca com os que afirmam que ciência e religião são compatíveis: na sua vontade de provar o seu ponto, eles convenientemente ignoram os casos onde o conflito é evidente. Ao argumentar sobre o que é possível, eles deixam de lado o que de fato é realidade. Afinal, sabemos que teológos são muito bons em inventar cenários que tornam a Biblia compatíveis com qualquer coisa, até com física quantica! Mas para cada tese teológica maluca existem centenas de milhares de crentes que acreditam na literalidade do Gênesis.

Então, onde deveríamos estar focalizando nossa atenção?

Ateus literalistas bíblicos

Critica biblica sempre foi uma passagem importante do arsenal retórico dos ateus. Isaac Asimov disse

“Quando lida apropriadamente, a Biblia é a força mais potente para ateísmo jamais concebida”

Eu não conheço nenhuma estatística, mas acredito que isso seja verdade para um grande numero de pessoas. Ao menos, foi o que funcionou para mim. Me recordo claramente de ler com entusiasmo as primeras passagens do Gênesis, apenas para me deparar com uma representação gráfica de como o mundo deveria ser:

Representação do Universo segundo o Genesis

Duas coisas me vieram a cabeça: inicialmente pensei em como a descrição da cosmologia Bíblica era pobre em comparação com outras cosmologias gregas e até cosmologias ficcionais (na época estava lendo a saga de Dragonlance). A outra foi o quão inverossímil era essa representação: eu sabia que a Terra não era plana, que não existia nenhum firmamento, que a Terra girava entorno do Sol e não o contrário, que depois do céu tinha o espaço, que o centro da terra tinha magma e não o submundo de Sheol, etc. Talvez o mais absurdo fosse a representação das comportas do Céu, as que presumidamente se abriram durante o diluvio. Eu podia ver os parafusos das dobradiças. Que deus usaria parafusos?!

Mas enfim, quase ninguém pensa que o mundo é assim. Até criacionistas são esclarecidos o suficiente para saber que não vivemos em um mundo descrito dessa forma, e inclusive inventam histórias bastante… criativas para explicar o porque disso estar descrito assim na Bíblia (a teoria do dossel é de fato a mais divertida). Religiosos moderados vão obviamente dizer que essas passagens não devem ser tomadas literalmente, mas interpretadas segundo alguma linha que tornam a Bíblia compatível com o que nós sabemos da realidade, inclusive evolução.

Crônicas de Nárnia: Cosmologia
fortemente influenciada por
mensagens cristãs.

Eu não tenho um problema com isso, na verdade. Tratando a Bíblia como um livro qualquer, não existe nenhum motivo para imaginar que as narrativas do Gênesis devam ser tomadas literalmente. São textos fortemente carregados de conteúdo poético e, aparantemente, copiados de diversas fontes distintas para construir uma narrativa com a intenção de passar uma mensagem. Não acredito que o Gênesis tenha sido construído para dizer como o mundo é e como ele foi criado, mas mais para dizer como o que existe e o que todos entendiam como a realidade era obra da intenção divina (com umas e outras mensagens subliminares escondidas). Nada diferente do que cristãos fazem hoje em dia.

Porém me parece que alguns ateus não aceitam isso de forma tão simples. Muitos deles parecem exigir que a única interpretação bíblica válida é a literalista (e, sim, literalismo é uma linha de interpretação), e que essa interpretação é a intenção dos autores (presumidamente o Deus bíblico, no caso). Porém, como uma prima minha me ensinou recentemente, você tira de um livro o que suas limitações permitem que você tire. Não há necessidade alguma de que a intenção do autor guie a sua capacidade de assimilação de uma obra literária ou filosófica. Eu não sou obrigado a virar religioso apenas porque li “Crônicas de Nárnia”, apesar de existir um componente fortemente religioso nas ideias de C. S. Lewis (que era, por sinal, um apologeta cristão). E sim, muitas linhas de crítica literária rejeitam a ideia de intenção autoral como sendo relevante.

Vida de Pi e Contato: livros falam de religião,
mas não demandam que o leitor chegue a uma
unica conclusão


O significado de muitas obras (não apenas literárias, mas artísticas) emergem da interação da obra com o observador. Obviamente a obra é influenciada fortemente pelas ideologias e ideias do autor, porém isso não restringe a interação com o receptor da obra. Adicionalmente, nem sempre o que o autor pensa sobre o assunto determina a conclusão do leitor. Podemos ver isso claramente em filmes/livros como Contato e A vida de Pi. Nenhuma conclusão sobre teísmo/ateísmo é obvia nem necessária a partir desses textos, porém ambas são possíveis. A intenção dos autores não podem ser de passar uma mensagem ou outra, pois não podemos ser ateus e teístas ao mesmo tempo, mas sim de fazer pensar sobre um assunto, no caso religião.

Eu entendo a resistencia em aceitar interpretações não-literais da Bíblia por parte de muitos ateus, pois já senti ela. Afinal, interpretação literal da Bíblia foi o que me expulsou do cristianismo, e eu adoraria acreditar que eu estava sendo lógico e racional quando isso aconteceu. Mas isso é uma ilusão: eu tinha 12 anos, o quão racional essa escolha pode ter sido? Fora isso, acredito que parte da resistência de se admitir a possibilidade de interpretações não-literais venha da ideia de que isso abre a porta para que qualquer interpretação seja feita. Mas isso também não é verdade: a interpretação de que o Gênesis dá a sequência do surgimento evolutivo das espécies na Terra é claramente equivocada, assim a de que Adão e Eva foram os primeiros Homo sapiens. Ou seja, é possível estabelecer que algumas interpretações são falsas e outras não.

Até onde vejo, exigir que religiosos moderados aceitem o literalismo como “única posição intelectualmente honesta”, apenas para criticar essa posição é tentar encaixar uma pessoa em um estereótipo que seja fácil de ser atacado. Não é apenas uma falácia, como é preconceito. Então… vamos parar com isso, que tal?

Sério.