A ética paleolítica de “Avatar”

avatar.jpg A trama é batida, os heróis e vilões são unidimensionais e maniqueístas — e, mesmo assim, “Avatar” me fisgou. Totalmente, na verdade. Não sei se estou só tentando racionalizar a resposta emocional ao filme, que me fez chorar mais de uma vez, mas a impressão que eu tenho é que James Cameron pode ter errado no varejo, mas acertou em cheio no atacado. E um dos grandes, profundos acertos (o outro é o assombro da biodiversidade pandoriana) atende por um nome cunhado pelo especialista em mitologia Joseph Campbell (1904-1987): a ética paleolítica.
O mais adequado talvez seja dizer “a ética e a religiosidade paleolítica”, porque a dimensão espiritual é inseparável da moral nesse conceito. Resumindo numa frase de efeito: nós (OK, OK, ao menos eu, que sou católico) agradecemos a Deus pelo bife no prato; os povos que seguem — ou seguiam, na imensa maioria dos casos — a ética paleolítica agradecem AO ANIMAL por “se deixar” ser comido.
É exatamente essa cena que vemos quando Neytiri (Zoe Saldana) ensina o humano-transformado-em-Na’vi Jake Sully (Sam Worthington) a caçar. É claro que, na caçada ritualizada, existe algo de feitiço apotropaico — palavrinha afrescalhada que significa “afastar o mal”. A ideia é, em parte, apaziguar o espírito da presa para que ela não se vingue do caçador. Mas não é só isso.
A ética paleolítica, a única que a nossa espécie conheceu até o advento da agricultura 10 mil anos atrás, é típica de povos que dependem profundamente do conhecimento e da interação íntimos com outras espécies para sobreviver. Não que seja uma fórmula mágica: povos caçadores-coletores NÃO são bons selvagens, e são perfeitamente capazes de cometer hecatombes ecológicas, como o fim da megafauna (os grandes mamíferos da Era do Gelo) na Austrália e nas Américas sugere.
Mesmo assim, quando a relação entre a terra e a gente que segue (seguia?) a ética paleolítica se estabelece no longo prazo, algo que pode ser chamado de equilíbrio com alguma justiça acaba emergindo. E não se trata de um modo de vida nasty, brutish and short (“nojento, brutal e curto”), como se costumava dizer. Perto dos camponeses pobres do planeta até os começos do século XX, que perfaziam a imensa maioria da população “civilizada”, os caçadores-coletores eram mais saudáveis de corpo e, ouso dizer, de mente.
Voltando a mais uma cena do filme, para terminar: não pude conter um frêmito de emoção quando vi o corpo de um Na’vi, em posição fetal, ser coberto de flores numa cova rasa. Num inverno, anos atrás, eu estava lado a lado com os arqueólogos que trouxeram de volta à luz do dia um “brasileiro” de 8.000 anos na mesmíssima posição, à sombra de um paredão rochoso de Minas. Faz diferença poder chamar a terra de mãe, pensei.
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