Ceticismo bíblico, parte 3: Ester

ester.jpgA nossa série sobre os livros bíblicos que esposam uma visão de mundo relativamente próxima do que chamaríamos de ceticismo chega ao fim com uma comédia: Ester. Comédia? Precisamente, gentil leitor. O texto original hebraico de Ester é uma farsa burlesca, com piadas maliciosas, personagens exagerados e uma batalha épica do bem contra o mal que chega a lembrar as peças do brasileiríssimo Ariano Suassuna.
Com uma diferença importante: ao contrário do que vemos em “O Auto da Compadecida”, não existe deus ex machina em Ester. Aliás, o nome de Deus não aparece em nenhum ponto da obra (coisa que Ester compartilha com O Cântico dos Cânticos, poema erótico hebraico que hoje faz parte do cânone da Bíblia). Não há referências ao sobrenatural na obra, cuja autoria é anônima. Em momentos de crise, os personagens nem parecem saber rezar (embora jejuem, vistam-se de saco e se cubram de cinzas quando estão de luto).
Tudo indica que, como nossos outros livros bíblicos “céticos”, Ester é obra do período em que o Império Persa era senhor do Oriente Próximo. (Talvez a reconstrução profunda dos valores culturais israelitas nessa fase histórica explique o caráter sui generis de tais textos.) A ambientação é pseudohistórica, cheia de luxúria e fantasia: a corte do Grande Rei persa Ahasuero (provavelmente Xerxes) em Susa, na Mesopotâmia.
Ahasuero é o típico rei fanfarrão, promovendo banquetes suntuosos nos quais a ordem é encher a cara da população inteira de Susa. Em dado momento, já bebaço, o Grande Rei ordena que sua rainha, Vashti, apareça diante dos demais cortesãos “usando uma diadema real” (a interpretação dos antigos estudiosos rabínicos é que a frase quer dizer “usando a diadema e mais nada”, ou seja, peladona).
Natalie Portman avant la lettre
Vashti se recusa a pagar esse micaço e acaba simplesmente sendo retirada do posto de rainha pelo colérico Ahasuero. O qual, lógico, põe-se logo em busca de uma nova rainha. A escolhida acaba sendo a deslumbrante Ester, jovem órfã de pai e mãe que foi criada por seu parente Mordecai (ou Mardoqueu, como também se usa transliterar o nome). Detalhe: tanto Mordecai quanto Ester são judeus, membros da tribo de Benjamim cujos ancestrais foram parar na Mesopotâmia durante o exílio da Babilônia, embora não divulguem esse fato para o rei.
Tudo parece caminhar às mil maravilhas para a nossa Natalie Portman do Império Persa, se não fosse pelo fato de que Ahasuero resolveu promover um de seus cortesãos, Hamã, o agaguita (descendente de Agag, rei dos amalecitas, antigo tribo inimiga dos israelitas). Mordecai, também membro da corte, recusa-se a se curvar diante de Hamã.
E é aqui que a história ganha uma virada sombria — antissemítica, pra ser mais exato. Hamã propõe ao rei o extermínio de todos os judeus do império, uma vez que eles têm “leis diferentes das de todos os outros povos e não seguem as leis do rei”. De quebra, Hamã ainda prepara uma estaca da altura de um prédio de sete andares (o exagero ridículo é típico da narrativa) para empalar o odiado Mordecai. Ahasuero, depois de uma polpuda propina oferecida ao tesouro real por Hamã, consente que todos os judeus do império sejam executados num só dia.
Porrada
É claro que, após alguma hesitação, Ester revela sua origem judia ao rei, o malvado Hamã acaba tendo o que merece e os judeus não só escapam do massacre como matam 75 mil (!!!) de seus inimigos império afora. Final feliz, portanto. O aniversário da vingança israelita se torna o festival do Purim, espécie de carnaval judaico no qual, até hoje, o costume é “ficar tão bêbado que seja impossível distinguir entre ‘abençoado seja Mordecai’ e ‘maldito seja Hamã'”. Mas é interessante ponderar a mensagem que fica dessa historinha burlesca e sangrenta.
Em vez de “gritarem ao Senhor”, os judeus da Diáspora são instruídos a fortalecer suas redes de conexões políticas, aumentar sua coesão comunal, preparar-se de maneira prudente para o conflito, se for possível. É uma visão de mundo completamente secularizada, não muito diferente do sionismo socialista (e ateu) que guiou os fundadores do moderno Estado de Israel.
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Artefatos que importam: a máscara de Agamêmnon

agamemnon.JPG“Eu vi o rosto de Agamêmnon”, declarou o arqueólogo amador, ricaço e marqueteiro alemão Heinrich Schliemann ao desenterrar, em 1876 a magnífica máscara de ouro em Micenas, no Peloponeso (a península que compõe o sul da Grécia).
Mentira deslavada, para dizer o mínimo. O único elo entre o artefato dourado e o lendário rei ou “pastor do povo”, como o chama Homero na Ilíada, é a localidade de Micenas, uma das principais cidades do domínio de Agamêmnon na saga da guerra de Troia. Nos textos épicos gregos, o soberano é o principal arquiteto do ataque aos troianos, até porque foi seu irmão, o pobre Menelau, o principal ofendido da história toda ao levar um chifre homérico (não dava pra deixar essa passar) quando sua apetitosa esposa, Helena, foi seduzida por Páris, um dos príncipes de Troia.
Schliemann e sua trupe tinham escavado a localidade tradicionalmente atribuída a Troia e lá acharam ricos tesouros, logo atribuídos à cidade descrita por Homero. (Na verdade, a Troia de Schliemann parece ter ido para o saco séculos antes do ano 1200 a.C., data tradicional do fim da cidade homérica.) O próximo passo natural era escarafunchar o lado grego da história, coisa que Schliemann fez com sucesso. Na Idade do Bronze, Micenas era uma fortaleza poderosa, dominada por guerreiros que apreciavam o luxo.
De novo, o alemão estava errado quanto às datas — seu “Agamêmnon” viveu uns 300 anos antes do provável fim de Troia –, mas seus achados foram os primeiros a demonstrar a existência da civilização micênica. A escrita desse povo, a Linear B, foi decifrada, e ficou claro que esses sujeitos falavam uma forma primitiva de grego.
Eram, na verdade, “gregos antes dos gregos”, com parentesco no idioma e na religião mas com organização social completamente distinta, baseada em grandes palácios e burocracia de estilo oriental. Imagine que, em vez de inventarem a democracia e a filosofia, os gregos imitassem os faraós do Egito ou os reis da Babilônia, e você terá uma ideia do grau de esquisitice envolvida. Foi só o colapso da Idade do Bronze que impediu que a civilização micênica continuasse prosperando — aliás, excelente tema pra um futuro post.
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Fim da megafauna: sai um mistério, entra outro

megafauna.JPG
ResearchBlogging.orgO sumiço de dezenas de gêneros de grandes mamíferos americanos (e de TODOS os bichos com mais de uma tonelada) do nosso continente provavelmente é o maior dos mistérios do fim do Pleistoceno, a Era do Gelo. Uma pesquisa recente parecia ter dado um jeito no mistério — mas só parecia. O estudo deixa em aberto tantas perguntas quanto as que responde, ou até mais.
Que fezes, diria você. E, sim, fezes aqui é a palavra apropriada, porque a equipe capitaneada por Jacquelyn L. Gill, da Universidade de Wisconsin em Madison, conseguiu refinar a linha do tempo da megafauna da América do Norte — formada por mamutes, mastodontes, preguiças gigantes e outros bichões — usando um fungo especializado em crescer no cocô de grandes herbívoros.
Trata-se do Sporormiella, cuja presença e abundância tem uma excelente correlação com a presença de megafauna. Estudando sedimentos anteriormente, os cientistas já tinham se dado conta de que os esporos do fungo estavam por toda parte na América do Norte da Era do Gelo, tomam chá de sumiço com a chegada do Holoceno (a nossa era geológica, já tristemente quase sem megafauna nas Américas) e retornam quando os europeus reintroduzem grandes rebanhos de herbívoros avantajados, na era colonial.
Árvores e meteoritos
Ora, esporos do fungo, junto com pólen, carvão e outros indicadores ambientais, tendem a ficar depositados no leito de lagos de maneira regular, formando um registro temporal bem sequenciado do ambiente circundante. Gill e companhia usaram dados do lago Appleman, em Indiana (EUA), e de vários outros sítios dos EUA, para mostrar duas coisas.
O declínio populacional da bicharada graúda começou cedo, há pouco menos de 15 mil anos, e não há 13 mil, como se achava; e uma transformação ambiental intrigante — o surgimento de grandes matas que misturavam árvores de regiões temperadas e boreais no lugar de uma espécie de estepe — veio depois, e não antes, do começo do fim da megafauna.
De cara, isso desmonta três ideias: a de que a mudança na vegetação teria deixado os bichos sem comida, levando-os a sumir; a de que um suposto meteorito teria caído há 13 mil anos e alterado o ambiente, desencadeando a extinção; e a de que os caçadores de grandes mamíferos da cultura Clovis, que também aparecem nessa época, teriam rapidamente exterminado os monstrengos na base da lança.
OK, mas o que acabou com a megafauna, então? Realmente há a coincidência de uma fase quente com o início do declínio abrupto de população, mas fica difícil imaginar que a mudança climática levasse ao extermínio sem alterar o habitat. Uma possibilidade é a chegada mais antiga de humanos caçadores — de fato, eles aparecem em Monte Verde, no Chile, antes da cultura Clovis, o que significa que estavam na América do Norte muito antes ainda. Mas há pouquíssimos indícios deles, sugerindo uma população pequena e pouco especializada em caça. Será que poderiam mesmo ter feito tanto estrago e não deixar rastros?
A única conclusão firme é a de que a extinção da megafauna foi bem mais gradual do que se imaginava. Sinceramente, esse negócio está começando a ficar irritante.
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Gill, J., Williams, J., Jackson, S., Lininger, K., & Robinson, G. (2009). Pleistocene Megafaunal Collapse, Novel Plant Communities, and Enhanced Fire Regimes in North America Science, 326 (5956), 1100-1103 DOI: 10.1126/science.1179504
Johnson, C. (2009). Megafaunal Decline and Fall Science, 326 (5956), 1072-1073 DOI: 10.1126/science.1182770
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Responda à pergunta e ganhe livros no Carbono-14!

Com patrocínio das editoras Paulus e Edições Loyola, é com prazer que anuncio a primeira promoção aqui no Carbono-14. Os vencedores ganharão os livros Para Além da Bíblia, de Mario Liverani, e A tapeçaria da teologia cristã, de Gregory C. Higgins.
São duas obras um bocado interessantes, a primeira explorando o que realmente existe de histórico na saga do povo de Israel contada na Bíblia (resposta curta: pouco), a segunda explicando as principais tendências teológicas do cristianismo, e principalmente do catolicismo, na atualidade. Tanto religiosos quanto não-religiosos certamente terão muito material para ruminar com os livros.
E, para ganhar, basta responder à pergunta:
Jesus existiu? Por quê?
Em no máximo 2.000 caracteres de Word. A melhor argumentação nesse espaço sucinto leva, e será publicada aqui no blog na quarta-feira que vem, dia 2 de dezembro, quando se encerram as inscrições. Enviem por favor para o meu e-mail, reinaldojoselopes@hotmail.com.
Ah, e como vocês devem ter percebido, isso indica o começo de uma nova série aqui, sobre o Jesus histórico. Em breve.
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Além de Darwin: a primeira resenha

Daniel Lopes (não, não é parente), simpático companheiro do Amálgama, é a primeira pessoa a resenhar o meu livro Além de Darwin.
Confiram clicando aqui, está bem simpático.
E meus parabéns ao Bom Velhinho pelos 150 anos de “A Origem das Espécies”!
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Artefatos que importam: a inscrição de Behistun

behistun.jpg
“Por isto Ahuramazda deu-me auxílio, e todos os outros deuses que existem: por que não fui perverso, nem mentiroso, nem um tirano, nem eu nem ninguém de minha família. Governei de acordo com a justiça.”
Então tá, seu Dario I, o Grande (549 a.C.-486 a.C.). A afirmação pode ser verdade ou mentira, mas não se pode negar que o terceiro Grande Rei da Pérsia deixou para trás um monumento e tanto de seu poderio com a inscrição de Behistun, cravada na pedra da montanha de mesmo nome no oeste do atual Irã.
Gravada em babilônio, elamita (idioma do Elam, no sul do Iraque) e persa antigo, o texto acompanha um baixo-relevo em tamanho natural de Dario, pisoteando um inimigo caído (possivelmente o suposto “mago impostor” Gaumata; já explico) e recebendo outros rebeldes derrotados e escravizados.
Pegadinha do Smérdis
Coisa de conquistador, claro, mas a história que as inscrições e as imagens contam é sensacionalmente rocambolesca. Dario era membro da família real persa, mas apenas um parente distante de Ciro, que criou o império no século VI a.C. Após a morte de Cambises, filho de Ciro, o trono passou para outro filho do primeiro rei, Smérdis. (É, que nome de Smérdis, não?).
É aqui que vem o pulo-do-gato: Dario, na inscrição (inteirinha em primeira pessoa), alega que o verdadeiro Smérdis foi morto e substituído por um impostor, o mago (membro da classe sacerdotal persa; é daí que vêm os “reis magos” dos Evangelhos) Gaumata. Revoltado, Dario se uniu a outros conspiradores, eliminou o mago falsário e restaurou a verdadeira família real persa.
Ou assim diz ele. A inscrição bate quase exatamente com o que conta o historiador grego Heródoto, no século V a.C., sobre a história persa, o que mostra que Heródoto, de fato, é um guia razoavelmente preciso sobre a Pérsia antiga. Os especialistas de hoje, porém, duvidam dessa trama de novela com rei falso e o diabo a quatro. Muitos desconfiam que Dario matou o verdadeiro Smérdis e, só mais tarde, teria inventado a história do mago sósia.
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Cidades perdidas do Xingu

xingu.jpgUma edição recente da revista “Scientific American” traz a descrição mais didática e saborosa feita até agora sobre os achados do arqueólogo Michael J. Heckenberger, da Universidade da Flórida, no Xingu. Já faz algumas décadas que os pesquisadores estão mostrando uma complexidade social e econômica insuspeita na Amazônia antes de Cabral, mas o trabalho de Heckenberger tem um sabor todo próprio porque ele mostra como essa complexidade pôde gerar uma população densa e, ao mesmo tempo, não produzir uma civilização urbana propriamente dita.
Em vez de metrópoles como a Tenochtitlán dos astecas ou a Cuzco inca, a civilização do Xingu produziu o que mais parece uma rede altamente interligada de condominíos fechados, daqueles que usam a expressão “lotes com muito verde” na propaganda.
Heckenberger e companhia descobriram que as antigas vilas do Xingu se organizavam de maneira hierárquica, com grandes centros populacionais e ceremoniais que podiam abrigar uns 2.000 habitantes, sendo dez vezes maiores do que as atuais aldeias indígenas da área, complementados por vilas menores, tudo isso conectado por uma rede de estradas cuja largura ia de dez a 40 metros.

Muralhas de madeira

Esses centros eram cercados por altas paliçadas e fossos defensivos com perímetro de alguns quilômetros. Os fossos podiam ter cerca de 2 metros de profundidade e dez metros de largura. Imagens de satélite indicam que muitas das áreas hoje cobertas por floresta na região são, na verdade, mata secundária, com composição de espécies modificada pelo uso humano intensivo. Por meio de um sistema de rotação de culturas, os xinguanos pré-século XVI parecem ter obtido boas colheitas de mandioca, pequi e sapê para a construção de malocas.
Os rios da região também parecem ter sido modificados pela ação humana, com coisas como a criação de diques para a pesca em grande escala. Ao todo, a região pode ter abrigado até 50 mil pessoas em seu auge pré-cabralino, calcula Heckenberger. É um tipo alternativo de desenvolvimento urbano, que pode ter ido para o espaço com a diminuição da população ligado às doenças trazidas pelos europeus.
Outro detalhe genial das pesquisas é a proximidade dos arqueólogos com a população da tribo cuicuro, moradora da região, cujos membros chegaram a assinar as pesquisas em revistas científicas de renome e contribuíram com o que sabiam sobre a história oral de seus ancestrais para a interpretação dos achados arqueológicos.
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O fim da civilização nazca – versão do diretor

arvore.jpgÉ bizarro se dar conta de que árvores do tamanho da que você vê na fotografia ao lado crescem num dos desertos mais secos do planeta. A planta é um dos poucos sobreviventes da mata seca de huarangos do litoral do sul do Peru, local onde floresceu, no começo da Era Cristã, a misteriosa civilização nazca — sim, aquela das linhas visíveis do alto, que os mais afoitos costumam chamar de indicações para descida de ETs.
Estudos recentes indicam, contudo, que a causa do desaparecimento dos nazcas foi bem mundana: devastação ambiental, que teria fragilizado o sistema de canais que usavam para cultivar a região desértica. A derrubada dos huarangos teria erodido o solo em demasia e dificultado a captação de água.
Escrevi sobre isso para a Folha há pouco mais de uma semana, mas o espaço não foi suficiente para que eu conseguisse colocar na reportagem algumas ponderações interessantíssimas do arqueólogo responsável pela pesquisa, David Beresford-Jones, da Universidade de Cambridge. Eis o que ele respondeu à seguinte pergunta: o que levou os nazcas a detonarem seu próprio meio de vida?
Mediterrâneo
“Gosto da perspectiva trazida por Karl Butzer, dada por seu trabalho no Mediterrâneo. Ele observa, em primeiro lugar, que ‘os agrossistemas evoluem por meio de tentativa e erro; a agricultura primitiva era experimental por natureza, e as tecnoestratégias iniciais eram exploradoras e frequentemente efêmeras’. De fato, isso descreve bastante bem o registro arqueológico que vemos para o baixo vale do Ica [região do Peru estudada pela equipe] durante o período do Horizonte Primitivo Chavín (em torno de 750 a.C.).
Em segundo lugar, Butzer propõe que ‘a experiência cumulativa deveria selecionar estratégias conservacionistas’. Diamond [Jared Diamond, autor de ‘Colapso’] também observa: ‘É verdade que as sociedades pequenas, estabelecidas há muito tempo e igualitárias tendem a evoluir práticas conservacionistas’. Isso descrevem bem o período Nazca Antigo (do ano 1 ao 400 d.C.), cujo cânone iconográfico é extremamente conservador e está imbuído de temas do mundo ‘natural’ (coloco o termo entre aspas porque eles também pintam o mundo ‘agrícola’).
Finalmente, Butzer observa que, no caso do Mediterrâneo, a expansão e a intensificação da produção agrícola estão ligadas ao desenvolvimento de centros urbanos, e ’em dado momento a demanda urbana e as populações rurais elevadas podem colocar o ecossistema sobre estresse, desencadeando períodos de degradação’. A expansão para novas zonas ecológicas também o leva a inferir que ‘a experiência ambiental anterior não pode ser transplantada sem dano incial’ e que ‘a instabilidade política e a insegurança rural reduzem os incentivos para o gerenciamento conservacionista dos recursos’. E Diamond lembra que ‘é mais provável que danos aconteçam quando as pessoas colonizam de repente um ambiente pouco familiar’ e ‘também é provável em estados centralizados, que concentram a riqueza nas mãos de governantes que estão distanciados de seu ambiente’.
Fratura
O período Nazca Antigo, conservador, acaba se fraturando em vários estilos no período Nazca Tardio (de 400 a 600 d.C.). Isso também coincide com a aurora do Horizonte Médio, baseado no enorme centro urbano de Wari, perto de Ayacucho, nos altiplanos do sul [do Peru]. Esse foi inequivocamente um período de grande mudança social na pré-história da região andina, e há evidências muito boas de que ele também representa a primeira formação de sociedades urbanas chamadas de ‘nível estatal’ na sierra sulina, que depois se expandiu e impôs seu controle sobre uma enorme área do Peru moderno, incluindo a costa sulina. É esse período que coincide com as grandes mudanças ambientais no baixo vale do Ica, e que portanto ecoa as inferências de Butzer a partir do Mediterrâneo.
Resta uma inferência final a fazer sobre os contextos exatos nos quais se pode prever efeitos significativos da ação humana sobre o ambiente: o óbvio, ou seja, a observação de que eles são mais prováveis em ambientes vulneráveis. Muitos dos outros casos arqueológicos de dano causado pelo homem na época pré-hispânica ocorreram em áreas de clima seco. E em nenhum lugar isso se aplica com mais força do que na costa do Peru.
Enquanto a agroecologia mista do baixo vale do Ica era sustentada em parte pela mata de huarango, com sebes densas e árvores deixadas de pé em meio a seus pequenos campos cultivados, as bacias do vale podem ter parecido ideais para a conversão à monocultura de algodão e de coca à sombra de árvores frutíferas.
A decisão de impor esse tipo de conversão agrícola pode ter sido feita por gente estranha a essa região, ou mesmo originária de áreas remotas, talvez como parte de uma política imposta pelo Estado do Horizonte Médio, com a intenção de servir mercados urbanos distantes. Portanto, seria algo contrário às práticas tradicionais dos habitantes do baixo vale do Ica, e feito por ignorância das características biofísicas prevalentes no local.”
Medo
Hmmm. OK. Mercados urbanos. Gente estranha ao ambiente. Ganância. Tá. Acho que não preciso explicitar as implicações para a situação atual do Brasil e do mundo. Quem tiver ouvidos para ouvir, que ouça.
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Ceticismo bíblico, parte 2: Jó

jó.jpgDemorei tanto para continuar esta série aqui no blog que talvez vocês tenham até se esquecido do primeiro capítulo. (Para quem quiser refrescar a memória, eis o post sobre o Eclesiastes.) Grosso modo, minha intenção é demonstrar como a tradição bíblica não é monolítica: alguns textos fascinantes do Antigo Testamento apresentam uma veia questionadora poderosa, que lança dúvidas sobre alguns dos pressupostos mais caros à antiga religião israelita. Dessas obras, o livro de Jó provavelmente é a mais bela e desafiadora.
O livro de Jó é uma exploração desesperada (e às vezes desesperadora) da natureza do Mal em forma poética. Ou, para tomar emprestado o título de uma obra moderna sobre o mesmo tema, a pergunta central do livro é “por que coisas ruins acontecem com pessoas boas”.
Em certo sentido, a mera pergunta já é radical para a forma “ortodoxa” da antiga religião de Israel, ou do Levante antigo como um todo. Era generalizada a crença num sistema de retribuição moral simples, na base do um-para-um, no qual Deus ou os deuses recompensavam os bons e puniam os culpados. Ponto final.
No máximo, admitia-se que os descendentes dos justos (ou dos pecadores) poderiam ser “colocados na mesma conta” que os ancestrais, por assim dizer, o que se explica pela visão altamente coletiva das responsabilidades em sociedades tribais antigas. Além do mais, isso era visto como indício da benevolência divina: Deus “espalhava” sua benção por muitas gerações, o que comprovava sua generosidade, ou “diluía” sua raiva entre pais, filhos e netos, o que indicava sua leniência (afinal, mesmo os culpados não levavam na cabeça todo o peso da punição).
Arbitrariedade
E se alguém tão justo e correto quanto é possível ser humanamente passar por sofrimentos indescritíveis? Essa é a pergunta que o livro de Jó coloca. Como no caso de tantos livros bíblicos, não sabemos quem escreveu o texto hebraico que temos hoje, nem quando ele foi composto. Afinidades conceituais como obras proféticas tardias (como a presença da figura chamada de ha-satan, “o Adversário” — que pelo visto não é Satã ou o Capeta tal como o conhecemos, como explicarei melhor a seguir) sugerem uma versão final no período da dominação persa na Palestina, quem sabe entre 500 a.C. e 400 a.C.
Seja como for, há sinais de que o autor anônimo reaproveitou personagens e motivos muito antigos para criar sua obra filosófica. “Jó” é o nome de uma figura tradicionalmente conhecida por sua sabedoria e piedade, citada pelo profeta Ezequiel (século VI a.C.). O prólogo narrativo do livro, em prosa, tenta dar um clima arcaico, tipo “era uma vez”, à história, retratando Jó como uma espécie de sósia do patriarca Abraão: um magnata nômade, dono de uma imensa fortuna em ovelhas e camelos, vivendo na terra de Uz (nome poético para Edom, região do sul da Transjordânia).
Jó, portanto, não é um israelita, mas adora o verdadeiro Deus (muitas vezes chamado pelo epíteto arcaico de “Shaddai” no texto) e é, acima de tudo, extremamente ético, caridoso e religioso. Costuma oferecer sacrifícios a Deus em nome de seus filhos e filhas, tentando antecipar qualquer pecado que eles possam ter cometido sem que o pai soubesse. Não é de estranhar, portanto, que Deus o cubra de bençãos, dando-lhe todo tipo de riquezas e muita saúde.
E é aqui que a porca torce o rabo. Deus recebe regularmente em sua corte divina os relatórios dos “filhos de Deus” ou “seres divinos” (figuras equivalentes a anjos) sobre o estado das coisas aqui na Terra. E entre esses seres divinos está ha-satan, “o Adversário” — uma figura que atua como uma espécie de promotor público, ou chefe do FBI celestial. Deus elogia Jó para o Adversário e este responde que Jó só faz o bem porque é cumulado de vantagens pela bondade divina. Deus, então, permite que o Adversário retire de Jó tudo o que ele tem – primeiro os bens e a família e, num segundo ciclo de “aposta” entre ha-satan e o Senhor, também a saúde, deixando Jó coberto de chagas purulentas.
Poesia no meio
O engraçado é que poderíamos ter saltado diretamente desse prólogo em prosa para o epílogo, também em prosa, no qual Jó recebe de volta de Deus, em dobro, tudo o que havia perdido. A mensagem, nesse caso, seria simplesmente a de que Deus às vezes nos testa para saber se realmente praticamos o bem de forma desinteressada, mas sempre acabará nos recompensando se fizermos tudo direitinho.
O que estraga essa moral da história banal é a inserção, entre esses dois textos em prosa, de dezenas de capítulos formados por diálogos poéticos rebuscados e cheios de paixão. Esses diálogos correspondem aos debates entre o pobre Jó, arranhando suas feridas e desejando a morte, e três amigos que vêm visitá-lo e inicialmente querem consolar o coitado, Eliphaz, Zophar e Bildad. (Mais tarde aparece um quarto amigo, Elihu.) A conversa é encerrada com a aparição do próprio Deus, que também fala, de maneira exaltada e até violenta.
O ponto central desses diálogos é que o tempo todo os amigos de Jó defendem a visão tradicional sobre pecado, punição e sofrimento — dizendo “Jó, você e/ou seus filhos devem ter pisado na bola, por isso eles morreram e você está aí todo detonado” –, enquanto Jó continua afirmando que não fez nada para merecer tudo aquilo. Mais importante ainda, ele bate na tecla de que Deus é que está sendo injusto, de que Deus deixa que certas pessoas pratiquem o mal sem punição enquanto os justos sofrem. E, ao menos nesse caso, nós, como leitores, sabemos que Jó está certo, porque acompanhemos toda a aposta entre o Senhor e o Adversário no prólogo.
E quando Deus entra em cena? Será que explica tudo, finalmente? Nada disso. Numa extensa fala sobre as forças da Natureza e sobre o imenso poder necessário para domá-las exercido durante a criação do mundo, Deus apenas diz que nenhum ser humano chega perto dessa potência e, por isso, não tem direito de exigir explicações sobre como o Universo funciona. Mas o mais maluco vem agora. Depois desse discurso, Deus diz que está enraivecido contra os amigos de Jó e exige que eles façam — por meio de Jó — um sacrifício de expiação, “porque nenhum de vocês falou a verdade sobre mim, como fez meu servo Jó”. Como é que é??? Sim, é isso mesmo que Deus diz.
O texto, portanto, não tem medo de deixar pontas soltas e coisas sem explicação. É temerário tentar extrair uma moral da história de uma obra tão complexa e cheia de nuances poéticas, mas talvez o centro do que o livro de Jó quer dizer seja uma mensagem que mesmo um ateu não deveria desprezar. Sim, o Universo talvez não faça sentido; sim, talvez não haja justiça neste e em nenhum outro mundo; mas isso não desobriga os seres humanos de tentar fazer o que é certo. E a própria incerteza sobre a recompensa de fazer o que é certo é que torna a escolha correta algo com sentido.
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E não percam, em breve (sabe-se lá quando), o último capítulo da nossa saga cético-bíblica, com o livro de Ester!
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