Por uma arqueologia menos antropocêntrica

ResearchBlogging.orgQuando, nos idos de 2003, uma pesquisa revelou que chimpanzés também deixavam para trás sua própria versão de registro arqueológico, ninguém imaginava que a descoberta fosse gerar uma nova área de pesquisa multidisciplinar, a arqueologia de primatas (ou, sendo mais amplo, a arqueologia animal). Um artigo de revisão interessantíssimo, recentemente publicado, esmiuçou as potencialidades desse novo campo, e eu abordei o tema na minha penúltima coluna para o G1. Confiram o texto na íntegra abaixo.
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macacoprego.jpgQue atire a primeira pedra quem não começou a se interessar por arqueologia, ao menos em parte, por causa do indefectível Henry “Indiana” Jones Jr. (Mulheres! Chicotes! Glamour! Corações fumegantes palpitando fora do corpo!) Aí o sujeito logo descobre que esse mundo de luxúria e fantasia ocupa um limbo entre o “muito raro” e o “inexistente”. Não foi por falta de aviso. O próprio Indy já advertia que 90% do trabalho arqueológico é feito na biblioteca. Tudo bem, é a vida. Mas ficar vendo macaco-prego quebrar coquinho? Aí já é demais.
Ou melhor, pode até ser demais, mas cuidadosas observações do comportamento de macacos-pregos (e de outros primatas, e até de outros animais) podem ser justamente a fronteira final da arqueologia, uma ferramenta ímpar para entender com quantas pedras se faz uma espécie tecnológica e construtora de civilizações como a nossa. Uma argumentação fascinante em favor dessa ideia está numa edição recente da revista científica britânica “Nature”. O artigo, capitaneado por Michael Haslam, do Centro Leverhulme para Estudos Evolutivos Humanos da Universidade de Cambridge, propõe nada menos que a fundação de um novo campo de estudos, a arqueologia de primatas – e, de forma mais genérica, a arqueologia animal.
Acredite, Haslam e companhia não estão delirando. É verdade que macacos e outros bichos não constroem pirâmides nem sacrificam outros bichos ao Deus Sol (ao menos pelo que a gente sabe), mas inúmeros animais satisfazem a condição fundamental dos estudos arqueológicos – eles produzem cultura material. Ou, em linguagem menos empolada: animais também usam ferramentas, às vezes fabricadas por eles próprios, com relativo grau de sofisticação.
A lista desses comportamentos se tornou tão vasta que nem vale a pena tentar colocar aqui uma versão exaustiva dela. Uma amostra representativa inclui bichos tão diferentes quanto chimpanzés, macacos-pregos, macacos-resos, golfinhos, lontras-do-mar, araras e várias espécies de corvos e assemelhados. Grande parte, se não a totalidade desses casos, encaixa-se nas definições tradicionais de cultura humana: são comportamentos aprendidos num contexto social, que variam entre as diferentes populações de cada espécie e parecem formar “tradições”. Mas é claro que a produção de cultura material satisfaz apenas uma das condições para o estudo arqueológico de um fenômeno. A outra é o fenômeno em questão ser detectável no passado – de preferência no passado distante.
Do tempo das pirâmides
Se você apostou contra essa última possibilidade, perdeu feio. Colegas de Haslam, como Julio Mercader, da Universidade de Calgary, no Canadá, passaram os últimos anos estudando em detalhes a história do uso de ferramentas entre os chimpanzés do Parque Nacional Taï, na Costa do Marfim. Os bichos de lá desenvolveram uma tradição de usar “bigornas” e “martelos” de pedra para quebrar coquinhos, extraindo a valiosa gordura da polpa e suplementando sua alimentação. Essa atividade cria marcas características nos martelos e bigornas, bem como um acúmulo constante de restos de coquinhos.
Ora, usando esses indícios modernos, Mercader e companhia conseguem farejar instâncias mais antigas de quebra-nozes na floresta. Isso permitiu que eles datassem certos sítios de quebra de coquinhos, os quais remontam a pelo menos 4.300 anos atrás – mais ou menos a época em que os egípcios estavam colocando suas pirâmides de pé. A “civilização” dos quebradores de cocos no Parque Nacional Taï é, portanto, milenar.
Ainda não temos datas comparáveis para os macacos-pregos (Cebus libidinosus – isso é que é nome científico) que habitam a Caatinga e o Cerrado, mas o comportamento dos bichos, conforme documentado por uma série de pesquisadores brasileiros e estrangeiros, é incrivelmente parecido com o dos chimpanzés. Até o tamanho das pedras que eles utilizam como “martelo” para quebrar coquinhos é similar, apesar do tamanho diminuto dos bichos quando comparado ao de seus primos distantes africanos. Estudos de longo prazo detectaram o transporte de pedras por longas distâncias até “bigornas” apropriadas (que podem também ser raízes de árvores, além de pedras maiores). De quebra, os macacos tupiniquins também são mestres em utilizar pedras para escavar tubérculos suculentos.
Além da idade da pedra
Entender esses comportamentos e a antiguidade deles tem uma série de implicações importantes para a pré-história do próprio homem. Primeiro, pode muito bem ser que esses dados nos ajudem a detectar os mais antigos rastros do uso de ferramentas entre ancestrais da humanidade.
A questão é que, embora a linhagem humana tenha se separado da que desembocou nos chimpanzés há cerca de 6 milhões de anos, as primeiras ferramentas indiscutíveis – lascas e “núcleos” de pedra com bordas cortantes, bastante rudimentares – só aparecem no registro arqueológico há uns 2,5 milhões de anos. Pior: não sabemos quem as produziu, embora o melhor chute possível aponte para o Homo habilis. Acredita-se que elas eram usadas para carnear as carcaças que os hominídeos roubavam de predadores maiores ou, bem mais raramente, obtinham por seus próprios meios.
No entanto, se os sítios de quebra produzidos pelos chimpanzés e macacos-pregos forem um bom modelo do que um usuário de ferramentas realmente primitivo deixava para trás, pode ser que a gente esteja procurando nos lugares errados, e que talvez o uso de instrumentos de pedra na nossa linhagem remonte a época bem mais recuadas do que imaginávamos. Se for possível detectar análogos antigos dos primatas quebradores de nozes atuais, esse mistério será elucidado.
Um ponto ainda mais importante é que a arqueologia de primatas pode acabar com a nossa tara por pedras. Instrumentos de pedra são importantes, lógico, porque são imperecíveis, mas as ferramentas mais sofisticadas produzidas por outros bichos em geral são feitas com matéria vegetal. Os chimpanzés do Congo oferecem um exemplo um bocado interessante. Para capturar cupins, eles primeiro pegam um galho, retiram todas as folhas dele e depois desbastam a ponta do dito cujo, de maneira a criar algo como as cerdas de uma escova. Para obter mel, os primatas se valem de uma combinação de ferramentas: um “pilão” para quebrar a colmeia, um galho mais delicado para abrir espaço na abertura inicial, como alavanca, e finalmente uma “colher” para recolher a guloseima.
Tudo isso pode significar que a mais antiga das “Idades da Pedra” talvez estivesse mais para “Idade do Galhinho”, e ajuda a traçar um retrato completamente diferente da cultura material dos nossos ancestrais mais remotos, com foco bem menor numa quebra interminável de pedra, pedra e mais pedra.
Inevitável?
Finalmente, a questão mais interessante e especulativa de todas: como a tecnologia se fixa numa espécie. Até pouco tempo atrás, o fato de que tanto os chimpanzés quanto nós utilizam instrumentos parecia indicar que o nosso ancestral comum também era um bicho (moderadamente, ou quiçá toscamente) tecnológico.
Mas pense de novo: e os macacos-pregos? E os resos? Esses primatas estão tão distantes de nós (com separação evolutiva há cerca de 40 milhões, no caso dos primeiros) que o mais provável é que o uso de ferramentas seja um clássico caso de evolução convergente de um comportamento, ou seja, de uma característica que apareceu de forma independente, por razões diferentes, nas várias espécies.
Isso levanta uma questão intrigante: a de que a capacidade tecnológica, ao longo da nossa linhagem, pode ter aparecido e desaparecido inúmeras vezes antes de se fixar. A arqueologia animal, portanto, talvez seja uma faca de dois gumes. Sim, ela usa outras espécies como espelho para ajudar no entendimento da nossa própria trajetória tecnológica. Mas também mostra que produzir ferramentas não é garantia nenhuma de sucesso evolutivo – do contrário, a tecnologia seria mais central na vida de muito mais espécies planeta afora. Eis aí um fato que deveria fazer o bicho homem calçar as sandálias da humildade, só pra variar.
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Haslam, M., Hernandez-Aguilar, A., Ling, V., Carvalho, S., de la Torre, I., DeStefano, A., Du, A., Hardy, B., Harris, J., Marchant, L., Matsuzawa, T., McGrew, W., Mercader, J., Mora, R., Petraglia, M., Roche, H., Visalberghi, E., & Warren, R. (2009). Primate archaeology Nature, 460 (7253), 339-344 DOI: 10.1038/nature08188

Caiu, caiu Angband, a Grande

“Thus an end was made of the power of Angband in the North, and the evil realm was brought to naught; and out of the deep prisons a multitude of slaves came forth beyond all hope into the light of day, and they looked upon a world that was changed.”
(The Silmarillion, J.R.R. Tolkien)
Quem tem ouvidos para ouvir, que ouça.
*Em homenagem ao Renan, que provavelmente sabe o que eu estou sentindo (ao menos seguindo a pista da referência tolkieniana), e em honra a um novo começo. Voltei para casa. E para cá também.

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