Sangue novo na Lapa do Santo

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Uma das notícias mais legais da arqueologia brasileira dos últimos tempos é que há uma equipe nova trabalhando na Lapa do Santo, um belíssimo anfiteatro natural de calcário na região de Lagoa Santa (MG).
Em 2002, tive o privilégio de visitar a lapa e vários outros abrigos calcários da região na companhia do bioantropólogo Walter Neves, da USP, e sua trupe. Agora, um ex-aluno do Walter, André Strauss, do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva, na Alemanha, voltou a trabalhar no sítio.
O sedimento de lá está coalhado de sepultamentos do povo de Luzia, os paleoíndios de Lagoa Santa, gente que tinha uma morfologia craniana inusitada, mais parecida com a de aborígines australianos e africanos do que com a de indígenas modernos. A idade dos sepultamentos gira em torno de 9.000 anos a 8.000 anos antes do presente. Tipo este aqui, ó:
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Abaixo, um pouquinho do contexto desses sepultamentos em reportagem que fiz para a Folha tempos atrás. Boa sorte para os novos desbravadores da Lapa do Santo!
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Brasileiros pré-históricos faziam “arte” com mortos
Escavações em MG revelam pinturas, cortes e mistura de ossos de pessoas
Regras lógicas parecem ter guiado rituais em gruta da região de Belo Horizonte, entre 8.800 e 8.200 anos atrás
REINALDO JOSÉ LOPES
EDITOR DE CIÊNCIA
Na hora de lidar com a morte, criatividade é o que não faltava à misteriosa gente que vivia no coração de Minas Gerais há quase 9.000 anos. Os sepultamentos ali parecem ter sido obras de arte, cuja principal matéria-prima era o corpo humano.
Cortados com instrumentos de pedra, os ossos de diversos mortos podiam ser reunidos dentro do crânio de outra pessoa. Em outros casos, o uso de tinta ou fogo dava uma aparência diferente ao cadáver. E, às vezes, dentes de um indivíduo eram arrancados para adornar os restos mortais de outro.
O inventário dessas estranhas práticas está sendo feito pelo arqueólogo André Strauss, cujo mestrado na USP versou sobre o tema. “Embora a região seja escavada desde o século 19, com centenas de esqueletos encontrados, todo mundo achava que os sepultamentos ali eram muito simples, muito sem graça”, diz ele.
DE OLHO NO CRÂNIO
Até então, lembra Strauss, o principal interesse dos cientistas era o formato do crânio dos chamados paleoíndios, como são conhecidos os povos que habitavam as Américas no período.
A região central de Minas é famosa por ter abrigado uma gente cujas feições lembravam os atuais africanos e aborígines da Austrália, bem diferente do tipo físico dos índios atuais. É lá que foi achada a célebre Luzia, mulher mais antiga do continente, com mais de 11 mil anos.
Ao longo desta década, uma equipe da USP liderada pelo bioantropólogo Walter Neves (que orientou o mestrado de Strauss) e pelo arqueólogo Renato Kipnis voltou à região e fez uma exploração detalhada da gruta conhecida como Lapa do Santo. O resultado: 26 sepultamentos que enterram a ideia de que os funerais ali padeciam de falta de imaginação.
“É muito difícil saber o que se passava na cabeça das pessoas. Mas dá para perceber, por exemplo, regras lógicas na maneira como esses ossos eram cortados”, diz Strauss, que hoje faz seu doutorado no Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva (Alemanha).
Há, por exemplo, uma estranha simetria: nos enterros “compostos”, quando o crânio é de um adulto, o resto do esqueleto é de crianças, enquanto ossos de pessoas maduras acompanham crânios infantis. Uma mandíbula perfurada parece não ter sido um mero colar: ossos foram arrumados em cima dela, como se fosse uma cesta.
“Muita gente me pergunta se não há uma ligação disso tudo com canibalismo. Mas um dos sinais de antropofagia é quando os ossos humanos encontrados num sítio [arqueológico] são tratados da mesma maneira que os ossos de animais, e isso a gente não vê”, pondera ele.
Outra possibilidade, a de sacrifício humano e posterior ritual com os mortos, também não parece muito provável, argumenta Strauss. Não há sinais de violência -fraturas na cabeça, por exemplo- entre os mortos da gruta. Os ossos parecem ter sido manipulados (e descarnados) logo depois da morte.
É tentador pensar na Lapa do Santo como uma Cidade dos Mortos, um local onde as tribos da região se reuniam para celebrar a ida de seus membros para o além.
Porém, diz o arqueólogo, coleções antigas de esqueletos de outros sítios também andam revelando marcas de corte, agora que foram reanalisadas. “Antes não se prestava atenção a isso.”
A pesquisa recebeu apoio financeiro da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo).
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Guia arqueologicamente incorreto da história do Brasil: a réplica

And so it begins. Meu amigo Leandro Narloch leu a crítica sobre seu livro, o best-seller “Guia politicamente incorreto da história do Brasil”, aqui mesmo no Carbono-14, e replicou no texto abaixo, que tenho o prazer de reproduzir aqui. O debate está ficando interessante. Já aviso ao Narloch que vem tréplica por aí 😉 Leiam abaixo a resposta dele.
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Quando o Reinaldo José Lopes me contou que preparava uma crítica metendo o cacete no capítulo do Guia sobre os índios, eu tremi. O cara é um dos melhores repórteres de ciência do Brasil – domina de supercordas a seleção natural, tem um texto alegre e livre de clichês de ciência, o que é bem raro nessa área. A crítica que ele postou semana passada tem observações interessantes, mas, para meu alívio, não é tão devastadora quanto ele prometeu. Abaixo acato alguns pontos e ataco outros.
O Reinaldo me acusa principalmente de ter feito uma “mistureba de períodos e situações coloniais”, omitindo o fato de os portugueses, depois de bem instalados no Brasil, promoverem caçadas, guerras e escravizarem os índios. Isso é injusto. Três ou quatro vezes o capítulo deixa claro que houve caçadas, escravidão indígena e extermínio deliberado de índios por europeus. Passei longe de negar isso tudo. Por que não dei detalhes? Porque o livro não é um guia neutro sobre a história do Brasil: é um guia politicamente incorreto. Como diz o título e a apresentação, trata-se de uma obra parcial, que mostra só um lado. Se eu me dedicasse a chutar cachorro morto e repetir o que as pessoas já sabem, trairia o projeto e teria talvez duas dúzias de leitores.
Revelar esse outro lado não é só um exercício de polêmica. A maior novidade da história do Brasil hoje é mostrar que nem sempre os indivíduos se enquadram em grandes esquemas sociológicos ou modelos de dominação. Mesmo diante de um número menor de possibilidades, os índios faziam escolhas diversas, como qualquer ser racional. Os índios coloniais, mesmo sem ser maioria (não digo no livro que são maioria, como o Reinaldo sugere) mostram que é preciso contar uma história com pessoas, não com robôs movidos por interesses de classe.
Ainda que a proposta seja mostrar só o outro lado, o Reinaldo está certo quando me acusa de omitir que, de acordo com o Retrato Molecular do Brasil, 0% dos brasileiros que se consideram brancos tem Cromossomo Y indígena, ou seja: índios homens não deixaram descendentes entre os brancos do Brasil. Se eu cito os dados da pesquisa, então deveria mostrá-la inteira – prometo acrescentar isso na próxima edição. Com devidas ressalvas. O estudo analisou o DNA de brasileiros que se consideram brancos. Não os mestiços, os negros, os caiçaras, os mamelucos ou os índios urbanos da Amazônia (região com 20 milhões de habitantes). Entre brancos, o mais esperado seria encontrar uma genética… branca, e não indígena. Por isso foi uma surpresa perceber que 30% dos brancos brasileiros vêm de linhagens maternas ameríndias. Apesar dessa limitação do estudo, o Reinaldo se baseia nele para dizer que “os homens indígenas, de repente, pararam de se reproduzir”. Eis aí o que ele chama de maquiar e botar minissaia na evidência.
Mas a pergunta continua: por que os índios deixaram tão menos descendentes que as índias? É aí que a crítica do Reinaldo desce uns dez degraus de qualidade e chega a um trecho constrangedor:
Será que os portugueses eram tão mais gostosos (ui!) que os índios que as índias magicamente resolveram ter filhos só com europeus assim que Cabral pôs os pés aqui? É claro que não. Aconteceu o que acontece com todas as populações conquistadas desde que o mundo é mundo, das sagas bíblicas às guerras de Alexandre: os homens são mortos e as mulheres, emprenhadas.
É sintomático falar de Alexandre para explicar por que os índios homens deixaram tão poucos descendentes. Para a escravidão negra, um exemplo equivalente seria o Remador de Ben-Hur: os escravos acorrentados, obrigados a remar enquanto levam um carrasco maldoso grita: “Reeeemem”! Estamos acostumados a pensar o passado brasileiro a partir desses modelos clássicos, mas deveríamos nos esforçar para deixá-los de lado. A nova história do Brasil mostra justamente que os modelos clássicos não nos servem. Como costuma perguntar o historiador João Fragoso, como é que se pode explicar, pelos modelos clássicos de escravidão, que uma parte dos escravos de um engenho ganhasse armas do próprio senhor para proteger a fazenda?
É simplista e obsoleto olhar a história do Brasil como as guerras e conquistas clássicas. É melhor deixá-las aos filmes de Hollywood ou para o Cecil B. deMille.
A história sexual entre europeus e índias deixa isso evidente. No modo de pensar de muitas tribos, alianças militares só existiam se fossem acompanhas de alianças de sangue: só parentes eram aliados políticos. Do mesmo modo, o casamento não era uma instituição privada, baseada no amor e na intimidade do casal, mas parte da estrutura social da tribo. “O casamento entre os guaranis determinava, ao mesmo tempo, todas as relações que no Ocidente se conhecem como econômicas e todas as relações chamadas sociais”, diz o Jorge Caldeira no livro Mulheres a Caminho do Prata. Em São Paulo, em Pernambuco, no Paraguai, índios só se aliavam depois que suas filhas casassem com os europeus. Um exemplo de europeu que por influência indígena teve várias esposas índias é Jerônimo de Albuquerque, cunhado de Duarte Coelho, o primeiro donatário de Pernambuco. Os dois precisavam do trabalho dos índios para mover os engenhos. Como os nativos preferiam derrubar pau-brasil, os portugueses tiveram que conquistar o apoio das tribos por meio de casamentos. Jerônimo de Albuquerque teve tantos filhos com índias que ganhou o nome de “Adão Pernambucano”.
Vejam como esse caso vai além das batalhas gregas e da lógica “os homens são mortos e as mulheres, emprenhadas”. Vejam como a história perde se nos limitarmos a aqueles modelos simplórios. É isso que eu tentei dizer no livro – e não negar caçadas e extermínios.

Outra crítica é sobre o Domingos Jorge Velho, bandeirante paulista que destruiu o Quilombo de Palmares. O Reinaldo se baseia nos estudos do filólogo Heitor Megale para mostrar que, ao contrário do que defendo no livro, o bandeirante falava, sim, português. Eu não conhecia essas pesquisas, agradeço o Reinaldo pela dica. Mas peraí. O estudo do Heitor Megale é sobre a língua escrita no século 17, não a língua falada. Está baseada em documentos de cartório e cartas oficiais. Em mensagens assim, é óbvio que os textos não seriam em tupi-guarani. Certamente se usava o português, e um português formal, puxado para trás. Numa época em que poucos sabiam escrever e raros tinham naturalidade com a escrita, era muito comum esbanjar eruditismo nos textos. Escrever em tupi-guarani? Jamais.
Ok, talvez o Jorge Velho falasse algum português, mas de que qualidade? O bispo de Olinda, que encontrou Jorge Velho no fim do século 17, diz que ele usava um tradutor: “Este homem é um dos maiores selvagens com que tenho topado: quando se avistou comigo trouxe consigo língua, porque nem falar sabe nem se diferencia do mais bárbaro tapuia; […] lhe assistem sete índias concubinas”. Deve haver muita opinião nesse testemunho, mas é apressado descartá-lo como “preconceito de classe”, como diz o Reinaldo (o que, aliás, é um tipo de comentário meio velho, comum no Brasil uns 60 anos atrás, quando se criticava o Stálin). Eu não descartaria tão rapidamente o depoimento do bispo, já que encaixa no que se sabe hoje sobre estilo de vida de São Paulo nos séculos 16 e 17. Será que o “língua” servia para traduzir dois tipos de português? Difícil acreditar nisso. No século 17, entre tupis, jês, franceses, holandeses, espanhóis, angolanos, falar outro português deveria ser o menor dos problemas.

O Reinaldo termina o texto dizendo que “há picaretas suficientes na história do Brasil pra tese do livro ficar em pé, sem mudança nenhuma, caso esse capítulo não existisse”. Não sei sobre quem ele está falando. A nossa história está sendo muito bem contada nos últimos dez, vinte anos. O Guia está baseado em trabalhos de pesquisadores excelentes: Francisco Doratioto, Manolo Florentino, Alberto da Costa e Silva, Guiomar de Grammont, Maria Regina Celestino de Almeida, Elio Gaspari. Se o Reinaldo prefere fechar os olhos à nova história do Brasil e ficar com os manifestos de esquerda que predominavam até os 80, tudo bem. É uma decisão pessoal.

Guia arqueologicamente incorreto da história do Brasil

narloch.jpgAnda bombando há tempos nas listas dos mais vendidos o livro “Guia politicamente incorreto da história do Brasil”, de autoria do curitibano Leandro Narloch, amigo e colega de longa data. O Narloch já encomendou e editou textos meus, por exemplo, nas revistas “Superinteressante” e “Aventuras na História”. O que me põe numa posição incômoda: após ler o livro e encontrar algumas escorregadas grandes sobre os temas que eu trato aqui no Carbono-14, corro tanto o risco de perder o amigo quanto, quem sabe, alguns futuros frilas se me dispuser a criticar o conteúdo da maneira devida.
Bem, antes de fazer este post, comuniquei ao Narloch a minha intenção, de maneira a não pegá-lo desprevenido. Aproveito agora para convidá-lo a um post convidado aqui no blog caso queira contra-argumentar sobre o que escrevi aqui. De qualquer maneira, o comichão após ler o livro se tornou forte demais, porque acho perigoso os leitores comprarem certas afirmações do texto pelo seu valor de face. Vira desinformação. E não me senti à vontade para cruzar os braços.
O livro
Para quem não sabe, o “Guia” é dividido em capítulos temáticos — “Negros”, “Escritores”, “Samba”, “Comunistas” e muito mais — cujo objetivo declarado é desmontar os heróis de papel que a historiografia tradicional criou. A ideia é demolir os mitos históricos que não se sustentam e construir uma história do Brasil “sem mocinhos”.
Meu problema é justamente com o primeiro capítulo, “Índios”, no qual as informações trazidas pela arqueologia e disciplinas conexas mostram que o quadro traçado pelo Narloch é enviesado, quando não factualmente errado. Vamos por partes, como diria Jack.
“As tribos não apoiavam os colonos por alguma obediência cega. Seus líderes, que também participavam das bandeiras e das batalhas, estavam interessados na parceria para derrotar outras tribos.”
A frase faz parte da argumentação de que boa parte da destruição de tribos indígenas teria se dado pelas mãos de outros índios. Os portugueses, bem menos numerosos, teriam precisado oferecer vantagens para seus aliados indígenas, numa colaboração mais ou menos igual.
OK, não há como discutir a intensão participação indígena nas bandeiras, digamos. O problema é a mistureba de períodos e situações coloniais, como se tudo fosse a mesma coisa. Mesmo no início, as tribos só quiseram ajuda portuguesa porque estavam cientes da desproporção de poderio tecnológico entre os europeus e elas.
No entanto, conforme os núcleos coloniais foram se fortalecendo e ficando mais numerosos, a ajuda se tornou dispensável — tanto que os tupiniquins de São Paulo, antigos aliados, foram esmagados quanto ameaçaram se rebelar. E as tropas de choque indígenas das bandeiras do século XVII eram formadas largamente por indivíduos que eram tão escravos quanto os índios que eles iam capturar.
“O melhor exemplo é Domingos Jorge Velho, bandeirante paulista que destruiu o Quilombo dos Palmares. Filho de um europeu com uma índia, ele não falava português. Assim como quase todos naquela época, expressava-se na língua geral tupi-guarani.”
Errado. O grupo de Heitor Megale, filólogo da USP, estuda há anos o português falado no Brasil durante o século XVII, em especial os registros deixados por bandeirantes, e mostrou que Jorge Velho não só falava como escrevia (mal, vá lá) português. Deixou rabiscos de próprio punho. A lenda de que ele não arranhava a nossa língua foi propagada por um bispo do Nordeste que difamou Jorge Velho por puro preconceito de classe (tipo “isso aí que esse sujeito fala nem chega a ser português!).
“O interessante é que esses nobres senhores não eram descendentes de nenhum poderoso fidalgo português. O homem que criou a dinastia dos Souza de Niterói chamava-se Arariboia. Era o cacique dos índios temiminós, que ajudaram os portugueses a expulsar franceses e tupinambás do Rio de Janeiro.”
Aqui, o Narloch argumenta que a maioria dos índios não foi exterminada, mas se integrou pacificamente e de livre vontade, inclusive em cargos de mando, na população colonial. Ele cita inclusive dados interessantes sobre índios pintores, músicos, pedreiros e de outras profissões listados em censos de São Paulo, Rio e Minas nos séculos XVII e XVIII.
É significativo, no entanto, que ele não consiga citar nenhum outro caso de “dinastia fidalga” indígena além da família de Arariboia. Alguns mestiços, é verdade, também chegaram lá. Mas é difícil contestar o fato de que a imensa maioria dos indígenas “se integrou” à sociedade colonial como escravos ou camponeses e trabalhadores pobres. Qual a vantagem material que existe nisso em relação à vida tribal? Zero — voltaremos a isso mais tarde.
Além disso, no caso do litoral, essas tribos, há mais de um século, estavam aldeadas — reunidas em vilas comandadas por jesuítas e outros religiosos –, em avançado processo de conversão religiosa e transformação cultural, além de reduzidas em número por epidemias e guerras. Não admira que elas tenham se integrado com facilidade: a “cola” cultural e religiosa das sociedades indígenas já tinha ido para o saco havia muito.

“Pesquisas de ancestralidade genômica, que medem o quanto europeu, africano ou indígena um indivíduo é, sugerem que os brasileiros são em média 8% indígenas. (…) É pouco sangue indígena, mas não tanto pensando numa população de 190 milhões de habitantes. Se pudéssemos organizar esses genes em indivíduos cem por centro brancos, negros ou ameríndios, 8% dos brasileiros daria 15,2 milhões de pessoas, ou mais de quatro vezes a população indígena de 1500.”

Essa matemática não cola, a começar pelo fato de que, mesmo com esses indígenas “Frankenstein”, formados pela reunião arbitrária de DNA de corpos separados num só corpo, o crescimento “populacional” indígena teria sido inferior à metade do crescimento populacional do resto dos brasileiros nos últimos 500 anos (que foi da ordem de dez vezes).
Faltou se perguntar: por que só 8%? Não é porque o número inicial fosse baixo — ele era, afinal, o mais alto de todos. É preciso considerar outra possibilidade: reprodução diferencial positiva dos não-índios. Ou seja: ao menos certa parcela da população indígena tinha menos chances de se reproduzir – beeem menos. A resposta está no parágrafo seguinte, embora o Narloch não tenha conseguido vê-la.

“O número fica ainda maior se considerarmos como descendente de índios toda pessoa que tem o menor toque de sangue nativo. Em 2000, um estudo da Universidade Federal de Minas Gerais causou espanto ao mostrar que 33% dos brasileiros que se consideram brancos têm DNA mitocondrial vindo de mães índias. (…) Esses números sugerem que muitos índios largaram as aldeias e passaram a se considerar brasileiros.”

O termo “DNA mitocondrial” é a chave, senhoras e senhores. Como bem nota o livro, ele só é transmitido pela linhagem materna. O equivalente masculino dele é o cromossomo Y, só passado de pai para filho (do sexo masculino). Por simetria, seria interessante ter os dados do Y, omitidos pelo Narloch, mas presentes no estudo de Sérgio Danilo Pena que ele cita. Sabe quantos brasileiros considerados brancos carregam um Y “de índio” nessa amostragem? Nenhum. Vou repetir: zero.
Essa assimetria é típica de populações conquistadas, gente. Pra não deixar dúvida: CONQUISTADAS. Será que os portugueses eram tão mais gostosos (ui!) que os índios que as índias magicamente resolveram ter filhos só com europeus assim que Cabral pôs os pés aqui? É claro que não. Aconteceu o que acontece com todas as populações conquistadas desde que o mundo é mundo, das sagas bíblicas às guerras de Alexandre: os homens são mortos e as mulheres, emprenhadas.
Deixa eu reforçar, porque é importante: esse é um dado básico de biologia molecular e de comportamento humano (eu diria até primata). É assim que as coisas funcionam. Outros fatores talvez tenham contribuído — seleção natural contra doenças europeias às quais os mestiços eram resistentes e os índios “puros” não, vantagens dos portugueses na hora de obter parceiras para relações polígamas, relativa falta de mulheres europeias etc. — mas dificilmente eles explicam a maior parte do fato arrasador de que os homens indígenas, de repente, pararam de se reproduzir.
Parafraseando certo profeta do Design Inteligente, trata-se de um fato, fato, FATO incontestável, não passível de ser manipulado via documentos adulterados ou historiografias com peso ideológico duvidoso. Está no DNA dos brasileiros pra quem souber interpretar: “integração pacífica” quer dizer pegue a mulherada e descarte os homens.
Já deu
Eu poderia abordar outros detalhes. Outra grande escorregada é assumir que os animais domésticos e a tecnologia europeia aumentaram instantaneamente o nível de vida dos índios (animais e implementos eram caros, e a expectativa de um camponês de Portugal era rigorosamente idêntica à de um índio tupinambá). Mas acho que o texto já ficou cansativo.
É normal, e humano, maquiar a evidência um pouquinho pra defender sua hipótese predileta. Deus sabe que eu e a torcida do Corinthians já fizemos isso não poucas vezes. Mas, nesse capítulo indígena, o Narloch não só maquiou a evidência como botou meia arrastão e minissaia nela e ainda levou a coitada para rodar bolsinha no Putusp. Não dá.
E o pior é que nem precisava. Há picaretas suficientes na história do Brasil pra tese do livro ficar em pé, sem mudança nenhuma, caso esse capítulo não existisse. A vontade de derrubar mitos saiu do controle. E há a frase final:

“Da mesma forma, quem hoje se considera índio poderia deixar de culpar os outros por seus problemas.”

É, o pessoal que quer construir Belo Monte e as usinas do Tapajós vai adorar ouvir isso. Os índios não são santos. Mas 90% dos problemas deles vêm de um único fato: eles são populações conquistadas.
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Encouraçados fofuchos: longer, bigger and uncut

Termina o mistério dos encouraçados fofuchos, como sabe quem leu a “Folha” de hoje. Mas, como o jornal impresso é (cada vez mais) cruel com o espaço disponível, eis abaixo a versão “do diretor”, sem cortes, da reportagem sobre uma nova espécie de parente gigante e extinto dos tatus achada em terras potiguares. Ah, e Takata, NÃO é um gliptodonte 😉 Espero que gostem!
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Chamar o Pachyarmatherium brasiliense de supertatu não passa de licença poética, por mais que o bicho pareça se encaixar na descrição. Na verdade, a criatura de 100 kg é um parente relativamente distante dos tatus atuais. A espécie, recém-descoberta por paleontólogos em meio ao material arquivado num museu de Natal (RN), traz novas pistas sobre como era a fauna de gigantes do Brasil pré-histórico.
“O material foi coletado nos anos 1960 e levado para o Museu Câmara Cascudo. Parte ficou na área de exposições, parte no acervo técnico, mas ninguém se interessou por trabalhar com aquilo durante muito tempo”, contou à Folha Kleberson Porpino, da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Porpino assina a descrição da nova espécie de “supertatu” junto com Lílian Bergqvist, da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), e Juan Fernicola, do Museu Argentino de Ciências Naturais Bernardino Rivadavia.
Em artigo na revista científica “Journal of Vertebrate Paleontology”, o trio se debruça sobre fragmentos relativamente escassos do bicho, como pedaços da carapaça, vértebras e ossos dos membros, para tentar reconstruir o P. brasiliense. Embora o gênero Pachyarmatherium já fosse conhecido a partir de fósseis da Flórida, detalhes do casco do bicho brasileiro indicam que se trata mesmo de uma espécie “nova”.
Lego
E são justamente as unidades que formam a carapaça, os chamados osteodermas (“ossos dérmicos”, explica Porpino), que ajudam a dar uma pista sobre o comportamento e o “álbum de família” da espécie.
Por um lado, os animais de hoje, como o tatu-galinha, possuem osteodermas diferenciados em certas regiões de sua couraça, formando as chamadas bandas de articulação, que dão flexibilidade à armadura. O exemplo extremo disso é o tatu-bola, cujo truque de se dobrar sobre si mesmo é famoso.
Já os chamados gliptodontes (mais avantajados entre os parentes extintos dos tatus, podendo alcançar o tamanho de um Fusca) não possuem essas bandas de articulação, o que dá a esses bichos a aparência de um pequeno tanque de guerra.
O P. brasiliense, diz Porpino, provavelmente estava entre esses dois extremos. “Não chegava a ser uma faixa flexível, mas havia uma região com algum grau de articulação, mais parecida com uma dobradiça”, afirma o paleontólogo. Embora não chegasse perto do tamanho monstruoso de alguns gliptodontes, a espécie do Rio Grande do Norte claramente era mais avantajada do que o maior tatu vivo hoje, o tatu-canastra (Priodontes maximus), cujos maiores exemplares nem chegam aos 50 kg.
Se o trio conseguiu entender a biomecânica da armadura do bicho, coisas como seus hábitos alimentares ou locomoção são mais misteriosos por pura falta de dados. O crânio (com os dentes, claro) não foi preservado. “Os gliptodontes aparentemente eram herbívoros [muitos tatus atuais são basicamente comedores de insetos]. No caso do P. brasiliense é difícil afirmar alguma coisa. Do mesmo modo, ele parece ter sido um animal fossorial [de hábitos cavadores], mas não dá para ter certeza”, afirma Porpino.
Sumiço
Da mesma maneira, a falta de uma datação precisa do material das cavernas onde o bicho foi achado, em Baraúna (RN), impede que se aponte a idade da criatura. Mas os fósseis associados com ele parecem sugerir o finzinho do Pleistoceno (a Era do Gelo), entre 40 mil e 10 mil anos atrás.
A fauna nordestina incluía então criaturas muito maiores, como preguiças do tamanho de elefantes africanos, o dente-de-sabre Smilodon populator e até primos extintos dos próprios elefantes, os mastodontes. No Brasil, são escassas as pistas que poderiam explicar o sumiço dessa fauna de gigantes, embora bichos parecidos na América do Norte tenham sido alvo de caça por parte dos primeiros seres humanos que invadiram o continente, vindos da Ásia.
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E mais, uma vez, meu profundo obrigado à bela paleoarte de Felipe Alves Elias, que recriou o bichão!
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Encouraçados fofuchos

bicharoco.jpg
O bicho da esquerda, em vida (e lá se vão mais de 10 mil anos), pesava 100 kg. O de cá, um tatu-canastra (Priodontes maximus) moderno, normalmente um bicho portentoso, vira fichinha perto dele. Explico o elo entre a dupla em reportagem na Folha desta segunda. Não percam!
E, enquanto isso, apreciem o trabalho primoroso do paleoartista e paleontólogo Felipe Alves Elias, que recriou o bicho extinto a nosso pedido.
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Cidades perdidas do Xingu

xingu.jpgUma edição recente da revista “Scientific American” traz a descrição mais didática e saborosa feita até agora sobre os achados do arqueólogo Michael J. Heckenberger, da Universidade da Flórida, no Xingu. Já faz algumas décadas que os pesquisadores estão mostrando uma complexidade social e econômica insuspeita na Amazônia antes de Cabral, mas o trabalho de Heckenberger tem um sabor todo próprio porque ele mostra como essa complexidade pôde gerar uma população densa e, ao mesmo tempo, não produzir uma civilização urbana propriamente dita.
Em vez de metrópoles como a Tenochtitlán dos astecas ou a Cuzco inca, a civilização do Xingu produziu o que mais parece uma rede altamente interligada de condominíos fechados, daqueles que usam a expressão “lotes com muito verde” na propaganda.
Heckenberger e companhia descobriram que as antigas vilas do Xingu se organizavam de maneira hierárquica, com grandes centros populacionais e ceremoniais que podiam abrigar uns 2.000 habitantes, sendo dez vezes maiores do que as atuais aldeias indígenas da área, complementados por vilas menores, tudo isso conectado por uma rede de estradas cuja largura ia de dez a 40 metros.

Muralhas de madeira

Esses centros eram cercados por altas paliçadas e fossos defensivos com perímetro de alguns quilômetros. Os fossos podiam ter cerca de 2 metros de profundidade e dez metros de largura. Imagens de satélite indicam que muitas das áreas hoje cobertas por floresta na região são, na verdade, mata secundária, com composição de espécies modificada pelo uso humano intensivo. Por meio de um sistema de rotação de culturas, os xinguanos pré-século XVI parecem ter obtido boas colheitas de mandioca, pequi e sapê para a construção de malocas.
Os rios da região também parecem ter sido modificados pela ação humana, com coisas como a criação de diques para a pesca em grande escala. Ao todo, a região pode ter abrigado até 50 mil pessoas em seu auge pré-cabralino, calcula Heckenberger. É um tipo alternativo de desenvolvimento urbano, que pode ter ido para o espaço com a diminuição da população ligado às doenças trazidas pelos europeus.
Outro detalhe genial das pesquisas é a proximidade dos arqueólogos com a população da tribo cuicuro, moradora da região, cujos membros chegaram a assinar as pesquisas em revistas científicas de renome e contribuíram com o que sabiam sobre a história oral de seus ancestrais para a interpretação dos achados arqueológicos.
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O fim da civilização nazca – versão do diretor

arvore.jpgÉ bizarro se dar conta de que árvores do tamanho da que você vê na fotografia ao lado crescem num dos desertos mais secos do planeta. A planta é um dos poucos sobreviventes da mata seca de huarangos do litoral do sul do Peru, local onde floresceu, no começo da Era Cristã, a misteriosa civilização nazca — sim, aquela das linhas visíveis do alto, que os mais afoitos costumam chamar de indicações para descida de ETs.
Estudos recentes indicam, contudo, que a causa do desaparecimento dos nazcas foi bem mundana: devastação ambiental, que teria fragilizado o sistema de canais que usavam para cultivar a região desértica. A derrubada dos huarangos teria erodido o solo em demasia e dificultado a captação de água.
Escrevi sobre isso para a Folha há pouco mais de uma semana, mas o espaço não foi suficiente para que eu conseguisse colocar na reportagem algumas ponderações interessantíssimas do arqueólogo responsável pela pesquisa, David Beresford-Jones, da Universidade de Cambridge. Eis o que ele respondeu à seguinte pergunta: o que levou os nazcas a detonarem seu próprio meio de vida?
Mediterrâneo
“Gosto da perspectiva trazida por Karl Butzer, dada por seu trabalho no Mediterrâneo. Ele observa, em primeiro lugar, que ‘os agrossistemas evoluem por meio de tentativa e erro; a agricultura primitiva era experimental por natureza, e as tecnoestratégias iniciais eram exploradoras e frequentemente efêmeras’. De fato, isso descreve bastante bem o registro arqueológico que vemos para o baixo vale do Ica [região do Peru estudada pela equipe] durante o período do Horizonte Primitivo Chavín (em torno de 750 a.C.).
Em segundo lugar, Butzer propõe que ‘a experiência cumulativa deveria selecionar estratégias conservacionistas’. Diamond [Jared Diamond, autor de ‘Colapso’] também observa: ‘É verdade que as sociedades pequenas, estabelecidas há muito tempo e igualitárias tendem a evoluir práticas conservacionistas’. Isso descrevem bem o período Nazca Antigo (do ano 1 ao 400 d.C.), cujo cânone iconográfico é extremamente conservador e está imbuído de temas do mundo ‘natural’ (coloco o termo entre aspas porque eles também pintam o mundo ‘agrícola’).
Finalmente, Butzer observa que, no caso do Mediterrâneo, a expansão e a intensificação da produção agrícola estão ligadas ao desenvolvimento de centros urbanos, e ’em dado momento a demanda urbana e as populações rurais elevadas podem colocar o ecossistema sobre estresse, desencadeando períodos de degradação’. A expansão para novas zonas ecológicas também o leva a inferir que ‘a experiência ambiental anterior não pode ser transplantada sem dano incial’ e que ‘a instabilidade política e a insegurança rural reduzem os incentivos para o gerenciamento conservacionista dos recursos’. E Diamond lembra que ‘é mais provável que danos aconteçam quando as pessoas colonizam de repente um ambiente pouco familiar’ e ‘também é provável em estados centralizados, que concentram a riqueza nas mãos de governantes que estão distanciados de seu ambiente’.
Fratura
O período Nazca Antigo, conservador, acaba se fraturando em vários estilos no período Nazca Tardio (de 400 a 600 d.C.). Isso também coincide com a aurora do Horizonte Médio, baseado no enorme centro urbano de Wari, perto de Ayacucho, nos altiplanos do sul [do Peru]. Esse foi inequivocamente um período de grande mudança social na pré-história da região andina, e há evidências muito boas de que ele também representa a primeira formação de sociedades urbanas chamadas de ‘nível estatal’ na sierra sulina, que depois se expandiu e impôs seu controle sobre uma enorme área do Peru moderno, incluindo a costa sulina. É esse período que coincide com as grandes mudanças ambientais no baixo vale do Ica, e que portanto ecoa as inferências de Butzer a partir do Mediterrâneo.
Resta uma inferência final a fazer sobre os contextos exatos nos quais se pode prever efeitos significativos da ação humana sobre o ambiente: o óbvio, ou seja, a observação de que eles são mais prováveis em ambientes vulneráveis. Muitos dos outros casos arqueológicos de dano causado pelo homem na época pré-hispânica ocorreram em áreas de clima seco. E em nenhum lugar isso se aplica com mais força do que na costa do Peru.
Enquanto a agroecologia mista do baixo vale do Ica era sustentada em parte pela mata de huarango, com sebes densas e árvores deixadas de pé em meio a seus pequenos campos cultivados, as bacias do vale podem ter parecido ideais para a conversão à monocultura de algodão e de coca à sombra de árvores frutíferas.
A decisão de impor esse tipo de conversão agrícola pode ter sido feita por gente estranha a essa região, ou mesmo originária de áreas remotas, talvez como parte de uma política imposta pelo Estado do Horizonte Médio, com a intenção de servir mercados urbanos distantes. Portanto, seria algo contrário às práticas tradicionais dos habitantes do baixo vale do Ica, e feito por ignorância das características biofísicas prevalentes no local.”
Medo
Hmmm. OK. Mercados urbanos. Gente estranha ao ambiente. Ganância. Tá. Acho que não preciso explicitar as implicações para a situação atual do Brasil e do mundo. Quem tiver ouvidos para ouvir, que ouça.
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Poluição inca

ResearchBlogging.orgcoroa.jpgDepois que os espanhóis chegaram, Huancavelica, na região central do Peru, ganhou o apelido de mina de la muerte. Mas bem que ela merecia ter o mesmo nome nas muitas línguas indígenas faladas nos Andes antes do Descobrimento. O motivo? Huancavelica, como mostra um estudo recente na revista científica “PNAS”, foi uma fonte considerável de poluição por mercúrio ao longo de milênios de pré-história andina.
Os dados foram levantados pela equipe cujo líder é Colin Cooke, da Universidade de Alberta, no Canadá. Que Huancavelica tinha ajudado a poluir os Andes a partir do domínio espanhol todo mundo já sabia, principalmente porque o mercúrio era o principal meio para se minerar prata durante a era colonial — o metal líquido era amalgado ao minério de prata. Não se imaginava, contudo, que as civilizações pré-colombianas da região também tivessem produzido tanta poluição.
Está tudo nos lagos
Foi o que Cooke e companhiam descobriram ao examinar sedimentos depositados no fundo de lagos da região. As camadas desses sedimentos formam um registro bastante completo do que andava acontecendo na superfície vizinha, e elas podem ser datadas por meio de isótopos radioativos, entre eles o famigerado carbono-14.
O que essas fatias de sedimentos lacustres revelam é, primeiro, um longo período de acúmulo lento, contínuo e estável de mercúrio no fundo dos lagos. A partir de 1400 a.C., a proporção de mercúrio começa a crescer, até atingir dez vezes o nível original do elemento em torno de 600 a.C. Após quase 2.000 anos de oscilações nesse patamar, com retornos ao padrão original e algumas fases de aumento da proporção de mercúrio, a coisa dispara novamente por volta do ano 1400 da nossa era, com registros de níveis do metal entre 55 e 30 vezes o esperado pela deposição natural de minérios.
Não parece muito difícil entender o porquê desses aumentos de poluição. Os dois grandes picos poluidores, de 600 a.C. e 1400-1500 d.C., batem com o apogeu dos impérios Chavín e Inca, respectivamente — dois dos principais Estados pré-históricos a dominar vastas áreas dos Andes.
Simplesmente um luxo
Ambos os impérios tinham em comum o gosto por adornar seus artefatos de ouro (como a coroa Chavín vista acima) com o vermelhão, corante vermelho (duh!) que é a forma pulverizada do cinabre, ou sulfeto de mercúrio (HgS). O vermelhão também era empregado como pintura corporal nos Andes pré-históricos.
Ou seja: ao contrário do que se viu na era colonial, as antigas civilizações andinas tinham como principal motor de sua atividade mineradora e poluidora a obtenção de bens de prestígio, ou seja, de ferramentas de ostentação social para a nobreza. Taí mais uma prova de que os seres humanos do século XXI não inventaram o conceito de fazer coisas estúpidas com o ambiente só para aparecer.
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Cooke, C., Balcom, P., Biester, H., & Wolfe, A. (2009). Over three millennia of mercury pollution in the Peruvian Andes Proceedings of the National Academy of Sciences, 106 (22), 8830-8834 DOI: 10.1073/pnas.0900517106

Orgulho do tio

O Brasil ganha hoje uma nova revista de divulgação científica, a Unesp Ciência, patrocinada pela universidade homônima. Escrevi uma reportagem para o primeiro número, mas não é sobre isso que quero falar, não. Escrevo apenas para ressaltar o PRIMOROSO texto da nossa colega Scibling Luciana Christante, do Efeito Adverso, sobre o trabalho da arqueóloga Ruth Künzli. É uma das visões mais gostosas de ler sobre o dia-a-dia da arqueologia que já apareceram nos últimos tempos. Parabéns, Lu! E leiam — afinal, é de grátis 😉

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