Artefatos que importam: a taça de Nestor
Não basta ser uma das inscrições mais antigas (datada de algum momento do século VIII a.C.) usando o alfabeto grego: é preciso ter estilo, saca? Poesia. E erotismo. Erotismo sempre é bom. Na tela:
“Sou a taça de Nestor, da qual é bom beber
Quem quer que beber desta taça, imediatamente
será tomado pelo desejo de Afrodite, a de bela coroa”
Veja bem, Afrodite não era a Cristiane Torloni (uma bela coroa), ela só USAVA uma bela coroa.
Esclarecido esse ponto importantíssimo, e falando sério agora, a tradução acima é conjectural — a taça de cerâmica, oriunda da ilha de Ischia, perto de Nápoles, está com alguns caquinhos faltando. Como você pode conferir na transcrição do texto abaixo, os gregos dessa época e lugar ainda escreviam da direita para a esquerda — ainda a influência do alfabeto fenício original.
Especulações sobre o significado dos versos não faltam. Há quem diga que o autor quis fazer uma alusão a Nestor, lendário rei e conselheiro dos poemas de Homero, contrastando a riqueza do sujeito com a simplicidade da taça.
Também já foi apontado que os versos teriam sido escritos durante um banquete, em meio às brincadeiras eróticas entre homens que eram comuns na cultura grega. Mais tarde, a taça foi usada como oferenda no túmulo de um menino.
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A Ilíada em infográficos!
Sen-sa-cio-nal é o único adjetivo que me vem à cabeça ao ver a Ilíada em infográficos, cuidadosamente e criativamente bolada pelo escritor argentino Martín Cristal. Ele dissecou visualmente, à la Playmobil, canto por canto do clássico homérico. Um aperitivo é o Catálogo das Naus, abaixo.
Vale muito a pena visitar o índice. O mais divertido é a contagem de corpos por guerreiro grego e troiano no finalzinho. Aconselho o leitor de primeira viagem do poema a aproveitar esse roteiro. Boa pancadaria helênica pra vocês.
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Quando Zeus encontra Buda
Você deve estar se perguntando o que esse sujeito ao lado está fazendo com um nanoescalpo de elefante na cabeça. Sim, nanoescalpo, afinal nenhum elefante adulto de verdade tem uma cabecinha desse tamanho, sem falar nas presas. (Talvez um elefante com microcefalia?) No matter: conheça Demétrio I, rei que fundou o reino dos gregos na Índia (o atual Paquistão) na virada dos séculos III a.C. para II a.C.
Se você achava que nada mais maluco podia acontecer do que as vitórias de Alexandre no rio Indo, saiba que, depois de um refluxo do poder helênico na área, aventureiros gregos se converteram ao budismo e criaram ali um pequeno mas respeitado império, que durou até o começo da Era Cristã. Há até indícios de que a arte helenística influenciou a maneira como Buda passou a ser retratado nas estátuas indianas.
Os dizeres da moeda proclamam: “Demetriu Aniketu” ou “de Demétrio, o Invencível”. O apelido surgiu depois da morte do sujeito, mas é verdade que ele nunca foi derrotado em batalha.
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Resenha: “História Ilustrada Grécia Antiga”
Histórias ilustradas de qualquer coisa invariavelmente me lembram aquele prazer ingênuo do leitor-criança, de descobrir pela primeira vez um assunto legal e passear por ele com ligeireza, sem se dar conta de que a beleza das ilustrações normalmente mascara a falta de profundidade do texto. Fico feliz em poder dizer que esse NÃO é o caso do volume sobre a Grécia Antiga da coleção História Ilustrada, da Ediouro.
A primeira pista auspiciosa de que, no presente caso, as ilustrações não são apenas máscara para a superficialidade do conteúdo vem do fato de que a obra é organizada e coescrita por Paul Cartledge, historiador da Universidade de Cambridge que eu já conhecia de outros carnavais. Cartledge, especializado na história de Esparta, é um dos mais respeitados estudiosos do mundo grego antigo na atualidade. E, pelo visto, reuniu um timaço.
É claro que a obra faz amplo uso de recursos visuais — infelizmente, tudo em preto e branco, o que é compreensível do ponto de vista de custos. A iconografia de quase todas as épocas, do período micênico ao helenístico, é uma mão na roda para trazer o universo helênico de volta à vida. Mas o que realmente faz a diferença numa obra introdutória é contexto, e nesse ponto o livro é soberbo.
Os autores, por exemplo, empregam de maneira cirúrgica os documentos originais da Grécia Antiga, com excertos dos principais poetas, dramaturgos, historiadores e políticos (entre outros) da Hélade, capazes de ilustrar com precisão o que era a sociedade grega antiga. (Quem rouba a cena, claro, são os personagens das comédias de Aristófanes quando o tema é o universo da sexualidade helênica. A diversão é garantida.)
Mais importante ainda, conseguem amarrar um bocado bem os fatores mais básicos da civilização grega, como a agricultura mediterrânea de subsistência e a política das cidades-Estado, com as grandes tendências culturais e os principais personagens, de Homero a Alexandre. Nesse ponto, aliás, pequenos verbetes com o básico do básico da biografia desses figurões são um excelente guia para o leitor que costuma se perder com nomes e datas.
Resumindo: se você quer entender o povo que, ao lado do judeu, ajudou a criar o Ocidente, eis um excelente lugar para começar.
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As joias perdidas de Troia
Maluco pela história e lenda de Troia como sou, fiquei maravilhado ao ler a reportagem do “Philadelphia Inquirer” sobre um trabalho de detetive envolvendo joias que podem ter vindo da cidadela cantada por Homero.
Ocorre que, nos anos 1960, a Universidade da Pensilvânia gastou 10 mil doletas para comprar 24 belos ornamentos de ouro. As joias eram, segundo o negociante de arte que as ofereceu para venda, oriundas de Troia, sabe-se lá de que jeito — afinal, o grande tesouro troiano desenterrado no século XIX pelo alemão Heinrich Schliemann estava desaparecido nessa época.
O negociante não tinha um certificado de procedência que prestasse para os artefatos, mas eles eram tão bonitos, e de estilo tão semelhante aos objetos troianos conhecidos, que o museu acabou pagando para ver. Na pior das hipóteses, tratar-se-iam de objetos da Mesopotâmia, uma vez que havia semelhanças entre as obras e joias encontradas antes no atual Iraque.
Rabudo
Agora, Ernst Pernicka, químico e especialista alemão em metalurgia, conseguiu permissão para obter amostras do ouro misterioso. E, golpe de sorte daqueles indispensáveis para quem quer fazer história no trabalho arqueológico, ele reparou que haviam pedacinhos de terra ainda grudados nas joias.
Resultado das análises químicas: a presença de outros metais amalgamados ao ouro, como prata, platina e paládio, bate com a proporção conhecida dos pedaços do tesouro de Troia que ainda estão na Alemanha (o resto foi saqueado pelos russos durante a Segunda Guerra Mundial, e ainda está na Rússia). E a composição da terra nos objetos também confere com a do solo na planície da Trôade, como é conhecida a região de Troia, hoje na Turquia.
Ou seja, parece que estamos, no mínimo, diante de joias feitas com ouro de aluvião (aquele que é peneirado em rios) que veio das vizinhanças da cidade. É claro que, teoricamente, ele poderia ter sido moldado muito longe de lá — na própria Mesopotâmia, claro –, mas isso me soa improvável.
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Artefatos que importam: a máscara de Agamêmnon
“Eu vi o rosto de Agamêmnon”, declarou o arqueólogo amador, ricaço e marqueteiro alemão Heinrich Schliemann ao desenterrar, em 1876 a magnífica máscara de ouro em Micenas, no Peloponeso (a península que compõe o sul da Grécia).
Mentira deslavada, para dizer o mínimo. O único elo entre o artefato dourado e o lendário rei ou “pastor do povo”, como o chama Homero na Ilíada, é a localidade de Micenas, uma das principais cidades do domínio de Agamêmnon na saga da guerra de Troia. Nos textos épicos gregos, o soberano é o principal arquiteto do ataque aos troianos, até porque foi seu irmão, o pobre Menelau, o principal ofendido da história toda ao levar um chifre homérico (não dava pra deixar essa passar) quando sua apetitosa esposa, Helena, foi seduzida por Páris, um dos príncipes de Troia.
Schliemann e sua trupe tinham escavado a localidade tradicionalmente atribuída a Troia e lá acharam ricos tesouros, logo atribuídos à cidade descrita por Homero. (Na verdade, a Troia de Schliemann parece ter ido para o saco séculos antes do ano 1200 a.C., data tradicional do fim da cidade homérica.) O próximo passo natural era escarafunchar o lado grego da história, coisa que Schliemann fez com sucesso. Na Idade do Bronze, Micenas era uma fortaleza poderosa, dominada por guerreiros que apreciavam o luxo.
De novo, o alemão estava errado quanto às datas — seu “Agamêmnon” viveu uns 300 anos antes do provável fim de Troia –, mas seus achados foram os primeiros a demonstrar a existência da civilização micênica. A escrita desse povo, a Linear B, foi decifrada, e ficou claro que esses sujeitos falavam uma forma primitiva de grego.
Eram, na verdade, “gregos antes dos gregos”, com parentesco no idioma e na religião mas com organização social completamente distinta, baseada em grandes palácios e burocracia de estilo oriental. Imagine que, em vez de inventarem a democracia e a filosofia, os gregos imitassem os faraós do Egito ou os reis da Babilônia, e você terá uma ideia do grau de esquisitice envolvida. Foi só o colapso da Idade do Bronze que impediu que a civilização micênica continuasse prosperando — aliás, excelente tema pra um futuro post.
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Artefatos que importam: a Coluna-Serpente
A mistura de concisão e redundância da linguagem antiga é irresistível, pungente como só o passado consegue ser: tôide tôn pôlemon epolemêon, ou “por estes a guerra foi guerreada”, se você quiser a tradução mais literal possível. A inscrição está na Coluna-Serpente, que ainda hoje, detonada por quase 2.500 anos de agressões, pode ser vista no Hipódromo de Constantinopla — aliás, Istambul. A Coluna-Serpente é uma das poucas lembranças materiais da vitória gloriosa, e totalmente inesperada, de um punhado de pôleis (cidades-Estado) gregas sobre o Império Persa em 479 a.C.
O que vem depois da frase que eu citei acima é uma lista dessas 31 pôleis, a qual, no geral, é compatível com a que aparece na obra do historiador grego Heródoto, embora haja algumas divergências. Talvez você esteja se perguntando porque esse artefato de bronze é chamado de Coluna-Serpente. É muito simples, Comissário: originalmente, o topo da coluna era encimado por três cabeças de réptil, as quais, por sua vez, serviam de apoio para um caldeirão de ouro.
O conjunto foi dedicado (isto é, ofertado) ao templo do deus Apolo em Delfos, o grande santuário “nacional” dos gregos, como sinal de gratidão pela vitória contra os persas. Nada mais natural do que oferecer uma serpente a Apolo, uma vez que o principal mito associado ao deus fala de sua vitória contra a serpente Píton na própria Delfos, evento que teria levado à fundação do santuário. A ironia é que, na época da invasão persa na Grécia, os sacerdotes do lugar adotaram discretamente uma linha colaboracionista de ação — estratégia rapidamente esquecida quando os gregos venceram.
Quando Constantinopla foi fundada no século IV da nossa era, o monumento foi levado para adornar o hipódromo da nova metrópole, onde está até hoje. Até o fim do século XVI as cabeças de serpente ainda faziam parte do objeto, como se pode ver nesta gravura da época otomana, abaixo. UPDATE, a pedidos dos leitores: embora não se saiba exatamente como as cabeças dos répteis caíram, pedaços de algumas delas foram recuperados e estão hoje num museu de Istambul. Clique aqui para ver uma delas.
Um último detalhe que me é um bocado caro: originalmente, a inscrição na Coluna-Serpente fazia referência não às cidades gregas, mas unicamente ao comandante-em-chefe da batalha decisiva contra os persas, o regente espartano Pausânias. Ao saber da insolência (Pausânias mandou gravar versos em seu louvor sem o conhecimento de sua pôlis), as autoridades de Esparta mandaram apagar a inscrição e substituí-la pela que conhecemos. Apesar de suas muitas falhas, os gregos tinham consciência de que os grandes feitos da história são forjados a muitas mãos.
Rohan e Gondor
“Sveinn e Ulfr ergueram esta pedra em memória de Halfdan e em memória de Gunnar, seus irmãos. Eles encontraram seu fim no Oriente.” Bem-vindos à história sangrenta e romântica da Guarda Varangiana, os vikings que viraram os guerreiros mais fiéis do Império Bizantino. Esse epitáfio aqui ao lado, ao que tudo indica, foi criado por dois deles depois que voltaram para seu lar, a Suécia.
A Guarda Varangiana é um dos fenômenos mais esquisitos e fascinantes da história medieval. O crescimento populacional e a tradição guerreira na Escandinávia fizeram com que mercenários de fala germânica se espalhassem pela Europa Oriental, pelo Egeu e até pelo Cáucaso a partir do século X. Um batalhão deles se tornou a guarda pessoal dos imperadores bizantinos, uma unidade de elite que manteve sua identidade étnica, apesar de ter se cristianizado.
Isso explica uma descoberta completamente maluca: inscrições rúnicas em plena catedral (hoje mesquita) de Santa Sofia, em Istambul. A inscrição — hoje ilegível, fora, curiosamente, o nome Halfdan, de novo — está abaixo.
Não resisti à referência tolkieniana no título. A Guarda Varangiana tinha com Bizâncio uma relação muito parecida com a de Rohan e Gondor: uma cultura guerreira mais “primitiva” aliada a um império antigo e sofisticado. Ademais, as runas que aparecem em O Hobbit (não as de O Senhor dos Anéis, é bom lembrar) são versões das que se vê na inscrição que abre este post.
Não tente fazer isso em casa
Eu sei que está irreconhecível, mas o fundo do banner do blog é esta belíssima imagem do palácio de Knossos, na ilha grega de Creta, provavelmente feita em torno do século 17 a.C. Confira a imagem em alta resolução clicando aqui. Esse troço é conhecido como bull-leaping (“salto sobre touro”. Dã. O que mais seria?) e devia doer pra burro quando dava errado…
Ou será que não? Desde que o britânico Arthur Evans escavou Knossos pela primeira vez a partir da virada do século 19 para o século 20, muita gente duvidava que o “bull-leaping”, ao menos como é mostrado nos afrescos cretenses, realmente podia ser praticado. Quem sabe não seria uma imagem idealizada de um ritual iniciático envolvendo touros? Bom, nada como a evidência experimental, não é mesmo? O vídeo abaixo mostra espanhóis modernos replicando as brincadeiras suicidas do pessoal que vivia do outro lado do Mediterrâneo há quase 4.000 anos. Contemplai:
É de cair o queixo.
Mas não pensem que esse é o único detalhe significativo da pintura, nobres leitores. Knossos é o lar de um palácio altamente labiríntico, o que leva muita gente a associar o mito grego do Minotauro sentado no fundo de seu labirinto (não confundir com o do Fauno, por favor) com lembranças longínquas das “touradas” de Creta na Idade do Bronze. Em uma das misturas mais legais já feitas entre arqueologia e ficção, a escritora britânica Mary Renault recontou a história de Teseu, o herói ateniense que matou o Minotauro, como se ele fosse membro de uma trupe profissional de “saltadores de touros”.
Viagens literárias à parte, o aspecto ritual da relação dos antigos cretenses com os touros parece mesmo bastante provável. Em todo o Mediterrâneo antigo, os bovinos machos (e não-castrados, claro) eram comumente usados para representar a força viril do deus dominante do panteão, seja o Zeus grego, o El de Canaã (Palestina) e, sim, o bom e velho Javé, o Deus da Bíblia. (Lembram do Bezerro de Ouro, aquele que quase matou Moisés do coração?)
Outro detalhe que me intriga: os construtores de Knossos não eram gregos. Falavam um idioma até hoje desconhecido e escreviam com a chamada Linear A, ainda não decifrada. Mas a iconografia minoica (como é conhecida a civilização, em homenagem ao mítico rei Minos) influenciou pesadamente a arte grega posterior, sem falar no aparente impacto da religião minoica. Como é que essa transmissão cultural se deu se os gregos romperam quase totalmente com o passado minoico no fim da Idade do Bronze? Vai saber.
A dica veio do blog do arqueólogo israelense Aren Maeir.