Guia arqueologicamente incorreto da história do Brasil: a réplica

And so it begins. Meu amigo Leandro Narloch leu a crítica sobre seu livro, o best-seller “Guia politicamente incorreto da história do Brasil”, aqui mesmo no Carbono-14, e replicou no texto abaixo, que tenho o prazer de reproduzir aqui. O debate está ficando interessante. Já aviso ao Narloch que vem tréplica por aí 😉 Leiam abaixo a resposta dele.
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Quando o Reinaldo José Lopes me contou que preparava uma crítica metendo o cacete no capítulo do Guia sobre os índios, eu tremi. O cara é um dos melhores repórteres de ciência do Brasil – domina de supercordas a seleção natural, tem um texto alegre e livre de clichês de ciência, o que é bem raro nessa área. A crítica que ele postou semana passada tem observações interessantes, mas, para meu alívio, não é tão devastadora quanto ele prometeu. Abaixo acato alguns pontos e ataco outros.
O Reinaldo me acusa principalmente de ter feito uma “mistureba de períodos e situações coloniais”, omitindo o fato de os portugueses, depois de bem instalados no Brasil, promoverem caçadas, guerras e escravizarem os índios. Isso é injusto. Três ou quatro vezes o capítulo deixa claro que houve caçadas, escravidão indígena e extermínio deliberado de índios por europeus. Passei longe de negar isso tudo. Por que não dei detalhes? Porque o livro não é um guia neutro sobre a história do Brasil: é um guia politicamente incorreto. Como diz o título e a apresentação, trata-se de uma obra parcial, que mostra só um lado. Se eu me dedicasse a chutar cachorro morto e repetir o que as pessoas já sabem, trairia o projeto e teria talvez duas dúzias de leitores.
Revelar esse outro lado não é só um exercício de polêmica. A maior novidade da história do Brasil hoje é mostrar que nem sempre os indivíduos se enquadram em grandes esquemas sociológicos ou modelos de dominação. Mesmo diante de um número menor de possibilidades, os índios faziam escolhas diversas, como qualquer ser racional. Os índios coloniais, mesmo sem ser maioria (não digo no livro que são maioria, como o Reinaldo sugere) mostram que é preciso contar uma história com pessoas, não com robôs movidos por interesses de classe.
Ainda que a proposta seja mostrar só o outro lado, o Reinaldo está certo quando me acusa de omitir que, de acordo com o Retrato Molecular do Brasil, 0% dos brasileiros que se consideram brancos tem Cromossomo Y indígena, ou seja: índios homens não deixaram descendentes entre os brancos do Brasil. Se eu cito os dados da pesquisa, então deveria mostrá-la inteira – prometo acrescentar isso na próxima edição. Com devidas ressalvas. O estudo analisou o DNA de brasileiros que se consideram brancos. Não os mestiços, os negros, os caiçaras, os mamelucos ou os índios urbanos da Amazônia (região com 20 milhões de habitantes). Entre brancos, o mais esperado seria encontrar uma genética… branca, e não indígena. Por isso foi uma surpresa perceber que 30% dos brancos brasileiros vêm de linhagens maternas ameríndias. Apesar dessa limitação do estudo, o Reinaldo se baseia nele para dizer que “os homens indígenas, de repente, pararam de se reproduzir”. Eis aí o que ele chama de maquiar e botar minissaia na evidência.
Mas a pergunta continua: por que os índios deixaram tão menos descendentes que as índias? É aí que a crítica do Reinaldo desce uns dez degraus de qualidade e chega a um trecho constrangedor:
Será que os portugueses eram tão mais gostosos (ui!) que os índios que as índias magicamente resolveram ter filhos só com europeus assim que Cabral pôs os pés aqui? É claro que não. Aconteceu o que acontece com todas as populações conquistadas desde que o mundo é mundo, das sagas bíblicas às guerras de Alexandre: os homens são mortos e as mulheres, emprenhadas.
É sintomático falar de Alexandre para explicar por que os índios homens deixaram tão poucos descendentes. Para a escravidão negra, um exemplo equivalente seria o Remador de Ben-Hur: os escravos acorrentados, obrigados a remar enquanto levam um carrasco maldoso grita: “Reeeemem”! Estamos acostumados a pensar o passado brasileiro a partir desses modelos clássicos, mas deveríamos nos esforçar para deixá-los de lado. A nova história do Brasil mostra justamente que os modelos clássicos não nos servem. Como costuma perguntar o historiador João Fragoso, como é que se pode explicar, pelos modelos clássicos de escravidão, que uma parte dos escravos de um engenho ganhasse armas do próprio senhor para proteger a fazenda?
É simplista e obsoleto olhar a história do Brasil como as guerras e conquistas clássicas. É melhor deixá-las aos filmes de Hollywood ou para o Cecil B. deMille.
A história sexual entre europeus e índias deixa isso evidente. No modo de pensar de muitas tribos, alianças militares só existiam se fossem acompanhas de alianças de sangue: só parentes eram aliados políticos. Do mesmo modo, o casamento não era uma instituição privada, baseada no amor e na intimidade do casal, mas parte da estrutura social da tribo. “O casamento entre os guaranis determinava, ao mesmo tempo, todas as relações que no Ocidente se conhecem como econômicas e todas as relações chamadas sociais”, diz o Jorge Caldeira no livro Mulheres a Caminho do Prata. Em São Paulo, em Pernambuco, no Paraguai, índios só se aliavam depois que suas filhas casassem com os europeus. Um exemplo de europeu que por influência indígena teve várias esposas índias é Jerônimo de Albuquerque, cunhado de Duarte Coelho, o primeiro donatário de Pernambuco. Os dois precisavam do trabalho dos índios para mover os engenhos. Como os nativos preferiam derrubar pau-brasil, os portugueses tiveram que conquistar o apoio das tribos por meio de casamentos. Jerônimo de Albuquerque teve tantos filhos com índias que ganhou o nome de “Adão Pernambucano”.
Vejam como esse caso vai além das batalhas gregas e da lógica “os homens são mortos e as mulheres, emprenhadas”. Vejam como a história perde se nos limitarmos a aqueles modelos simplórios. É isso que eu tentei dizer no livro – e não negar caçadas e extermínios.

Outra crítica é sobre o Domingos Jorge Velho, bandeirante paulista que destruiu o Quilombo de Palmares. O Reinaldo se baseia nos estudos do filólogo Heitor Megale para mostrar que, ao contrário do que defendo no livro, o bandeirante falava, sim, português. Eu não conhecia essas pesquisas, agradeço o Reinaldo pela dica. Mas peraí. O estudo do Heitor Megale é sobre a língua escrita no século 17, não a língua falada. Está baseada em documentos de cartório e cartas oficiais. Em mensagens assim, é óbvio que os textos não seriam em tupi-guarani. Certamente se usava o português, e um português formal, puxado para trás. Numa época em que poucos sabiam escrever e raros tinham naturalidade com a escrita, era muito comum esbanjar eruditismo nos textos. Escrever em tupi-guarani? Jamais.
Ok, talvez o Jorge Velho falasse algum português, mas de que qualidade? O bispo de Olinda, que encontrou Jorge Velho no fim do século 17, diz que ele usava um tradutor: “Este homem é um dos maiores selvagens com que tenho topado: quando se avistou comigo trouxe consigo língua, porque nem falar sabe nem se diferencia do mais bárbaro tapuia; […] lhe assistem sete índias concubinas”. Deve haver muita opinião nesse testemunho, mas é apressado descartá-lo como “preconceito de classe”, como diz o Reinaldo (o que, aliás, é um tipo de comentário meio velho, comum no Brasil uns 60 anos atrás, quando se criticava o Stálin). Eu não descartaria tão rapidamente o depoimento do bispo, já que encaixa no que se sabe hoje sobre estilo de vida de São Paulo nos séculos 16 e 17. Será que o “língua” servia para traduzir dois tipos de português? Difícil acreditar nisso. No século 17, entre tupis, jês, franceses, holandeses, espanhóis, angolanos, falar outro português deveria ser o menor dos problemas.

O Reinaldo termina o texto dizendo que “há picaretas suficientes na história do Brasil pra tese do livro ficar em pé, sem mudança nenhuma, caso esse capítulo não existisse”. Não sei sobre quem ele está falando. A nossa história está sendo muito bem contada nos últimos dez, vinte anos. O Guia está baseado em trabalhos de pesquisadores excelentes: Francisco Doratioto, Manolo Florentino, Alberto da Costa e Silva, Guiomar de Grammont, Maria Regina Celestino de Almeida, Elio Gaspari. Se o Reinaldo prefere fechar os olhos à nova história do Brasil e ficar com os manifestos de esquerda que predominavam até os 80, tudo bem. É uma decisão pessoal.

Jesus existiu? Parte 3: Um conclave nada papal

O animado debate que andou rolando nos comentários da série de posts sobre o Jesus histórico (veja aqui e aqui) ajudou a reforçar a importância dos pressupostos metodológicos. Apesar do bate-papo interessantíssimo entre os visitantes, senti que a coisa tomou um rumo um tanto lateral, justamente porque eu não deixei muito claro como, metodologicamente, estou abordando o problema.
Nesse ponto, acho muito útil e divertida a parábola do “conclave não-papal”, bolada pelo historiador americano John P. Meier, autor da série de livros “Um Judeu Marginal” (sobre vocês-sabem-quem). O cenário é o seguinte:
Pegue quatro especialistas na história das origens do cristianismo: um católico, um protestante, um judeu e um agnóstico. (Tá, eu sei que lembra aquelas piadas do tipo “um padre, um pastor, um rabino e um ateu entram num boteco”. Foco, gente, foco.) Parta do princípio de que todos eles são especialistas competentes e honestos, que se esforçam para evitar os vieses inerentes a seus próprios pontos de vista. Tranque esse negada toda na biblioteca da Faculdade de Teologia de Harvard, provavelmente a mais bem suprida do mundo. Deixe os sujeitos a pão e água e só permita que saiam quando produzirem um documento de consenso sobre a vida e os feitos do Jesus histórico.
Meu ponto de vista é o do conclave não-papal, porque estou falando de arqueologia e história, e não de fé (embora eu, pessoalmente, seja uma pessoa de fé). Se o documento é de consenso, muito provavelmente o católico e o protestante terão de abrir mão do que só a fé pode lhes ensinar (como a Ressurreição, por exemplo), para chegar a um retrato MÍNIMO de Jesus que leve em conta todas as evidências disponíveis para um observador honesto e de boa vontade.
O que estou querendo dizer é que as discussões sobre a inspiração divina da Bíblia, sobre a Ressurreição ou mesmo sobre o aspecto sobrenatural dos milagres de Jesus são IRRELEVANTES neste blog — que é um blog laico, embora de maneira nenhuma hostil à fé. Meu interesse é pelo que pode ser compartilhado por todos nós, crentes e não-crentes, como empiricamente verificável. Ademais, o que estou postando não é, obviamente, a opinião da minha linda cacholinha loura. É, sim, o consenso científico e historiográfico (ou o mais perto do que se pode chegar dele) entre os principais especialistas no estudo do Jesus histórico mundo afora. That clear, gentlemen? 😉
Se der, respondo as dúvidas mais pontuais do pessoal num futuro post, mas acho que isso é suficiente pra gente continuar. Mais posts metodológicos virão. Até breve.
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Jesus existiu? Parte 2: Respondendo as dúvidas

Audiência qualificada é outra coisa. Mal dei o pontapé inicial na minha série sobre o Jesus histórico e já recebi um caminhão de comentários e dúvidas interessantíssimos sobre a primeira postagem e os desdobramentos do tema. Como seria um pecado (só pra manter o clima cristão) relegar debate tão legal à caixa de comentários, resolvi transformar a coisa num novo post enquanto não consigo dar prosseguimento à série.
Sem mais delongas, vamos nessa.
O grande Luís Brudna questiona: O que será que os historiadores do futuro pensarão sobre as “Aparições da Virgem Maria”? Considerarão elas como históricas?
Dependendo das fontes disponíveis, eles certamente vão considerá-las históricas no sentido de que um grupo de pessoas do século XXI ACREDITAVA mesmo ter visto Nossa Senhora. As evidências de que muita gente acredita nisso são abundantes. Agora, as aparições são reais? São realmente um evento sobrenatural, ou são alucinação coletiva? Isso não cabe aos historiadores responder, até por uma questão metodológica, embora possa ser investigado por cientistas que disponham, por exemplo, de um vídeo da suposta aparição.
Rafael Machado indaga: 1)Em relação ao documentário “Zeitgeist”, você já o comentou seja aqui seja no outro blog que tinha? Porque é o típo do documentário que fala o que você quer ouvir ou não, citando referências que são muito difíceis de se procurar.
Não estava nos meus planos abordar detalhadamente as afirmações em “Zeitgeist”, mas vou considerar a ideia 😉

2)Em relação aos escritos do Mar Morto, há muita teoria da conspiração em cima dele, por acaso você vai tratar dele?

Sobre os manuscritos do mar Morto: rapaz, o surpreendente, na verdade, é que há pouquíssima informação sobre Jesus e os primeiros cristãos neles. Tais textos parecem ter sido, em sua maioria, escritos por uma seita judaica extremamente fechada e com pouco interesse direto em movimentos mais “plurais”, como o de Jesus. Mas, claro, é um tema fascinante a ser abordado no futuro.
O amigo Vinícius Policarpo Quintão manda a real:
1) Se Jesus, e não jesus, de fato existiu, seus feitos causariam um enorme alvoroço, e seriam lembrados através de registros de outros indivíduos, acredito. Imagino que, mesmo com a escassez de inidivíduos letrados, boa parte deles se postaria a relatar o fato. Inclusive seus agressores, amaldiçoando-o ou tratando-ou tal qual um “demônio do mundo antigo” ou qualquer outra entidade do imaginário coletivo.
Tem uma série de problemas nessa questão. Primeiro, quem garante que o alvoroço seria tão grande? O mundo mediterrâneo antigo estava COALHADO de milagreiros e mestres itinerantes. A Palestina do século I a.C. conheceu uma loooonga lista de candidatos a profetas e Messias. E, claro, a transmissão da tradição que desembocaria nos Evangelhos pode muito bem ter transformado os 100 espectadores originais do Sermão da Montanha em 5.000.
Isso explicaria, em parte, a discrepância, mas também temos boas razões para acreditar que alguns dos historiadores não-cristãos da época realmente ficaram sabendo do ministério de Jesus e o abordaram — brevemente –, em seus escritos. Mas é preciso lembrar que Jesus, tendo restringido sua missão aos judeus palestinos, não teve contato com nenhuma das grandes personalidades da Antiguidade. Aliás, sabe quantos historiadores judeus estiveram ativos ao longo dos séculos I e II inteirinhos? Um só – Flávio Josefo (do qual falarei no próximo post). A historiografia não era um gênero comum entre judeus, letrados ou não-letrados. Havia pouca gente disponível para fazer um relato “secular” sobre o ministério de Jesus.
2) A existência de figuras como Alexandre, Hércules, Ptolomeu, Perseu e outros, pode ser vista como mera idealização de senhores gloriosos e ícones de outras virtudes, não concorda? Uma vez que as provas de sua real existência ou se perderam ou são insubstânciais (dadas as condições temporais dos relatos, mas não só por isto).
Cuidado para não misturar alhos com bugalhos. Hércules e Perseu são MUITO diferentes de Alexandre e Ptolomeu, a começar pelo fato de que os dois primeiros, se é que existiram, datam de um passado tão remoto e sem continuidade com o presente que não dá nem para comprovar sua simples existência. Jesus está muito mais para Alexandre e Ptolomeu do que para Hércules e Perseu.
O poderoso Roberto Takata afirma:
Há extensa iconografia de Alexandre, o Grande, contemporânea ao imperador macedônio. Os diários astronômicos babilônios mencionam a morte de Alexandre. Mas digamos que fossem apenas as tais moedas. Sim, elas seriam úteis para estabelecer que provavelemente Alexandre existiu. Elas servem como confirmação independente de que as narrativas de Xenofon e Plutarco não são totalmente fantasiosas.
A iconografia que chegou até nós na verdade é um pouco posterior à morte do homem, já heroicizando um pouco a figura. Esqueci-me dos diários babilônicos. Mas o ponto central é que, só com esses dados, nós só saberíamos que Alexandre existiu – e ponto. Não seria possível sequer dizer que ele era macedônio e não, sei lá, tessálio (outro lugar da Grécia onde a monarquia ainda existia). E, só pra takatizar você um pouquinho, é ARRIANO e Plutarco – Xenofonte morreu quando Alexandre tinha dois anos de idade 😉

A melhor comparação seria em relação a Arthur, Beowulf e cia. p.e. Ou a Siddhartha Gautama, Noah, Moshê…

Nope, não seria. Definitivamente não seria. A melhor comparação é mesmo com Temístocles ou Leônidas. Exceto no caso de Buda, que eu confesso não conhecer muito bem, os demais personagens só são mencionados pela primeira vez em textos escritos três séculos ou muitos séculos mais DEPOIS de sua suposta existência histórica. De fato, é tempo demais para um nome ficar rodando na tradição oral, e tudo vira saga mesmo.
Esse NÃO é o caso de Jesus, como pretendo demonstrar aqui. Ao longo dos 60, 70 anos após sua morte, há cerca de uma dezena de fontes literárias independentes — a maioria cristãs, mas algumas judaicas e romanas também — concordando nos elementos básicos: pregação, crucificação, movimento religioso que se propaga depois. Só isso já é suficiente para mostrar, no mínimo, a existência histórica do personagem. Mas não coloquemos os carros na frente dos bois (embora você tenha me forçado a fazer precisamente isso, hehehe…)
O perspicaz Henrique afirma:
No caso das figuras históricas, eles realizaram grandes feitos, mas coisas que, desculpem se ofender alguém com isso mas não encontrei outro modo de falar, são possíveis e fazem algum sentido, contrário do caso de Jesus onde os relatos são de coisas que se por exemplo eu chegar e contar pra um amigo meu hoje que eu vi um cara andando sobre a água ele vai rir de mim.
Concordo, claro. Acho que os aspectos sobrenaturais do ministério de Jesus têm de ser colocados, metodologicamente, na categoria do inverificável (ainda que, pela fé, eu pessoalmente acredite neles). Agora, numa sociedade pré-moderna, quase todo mundo não tinha problema nenhum em aceitar milagres como parte da vida. No caso das curas — façanha que de longe é a mais comum nos Evangelhos –, alguém com mentalidade completamente secularizada só precisa lembrar das situações atuais de “curas pela fé” e perceber que estaríamos falando de fenômenos psicossomáticos (efeito placebo, basicamente) afetando doenças com um componente emocional forte, por exemplo. O importante não é Jesus ter mesmo feito um paraplégico andar; é, sim, ALGUMAS pessoas da época terem ACREDITADO que ele fez um paraplégico andar.
Weiner Assis Gonçalves citou:
Papa Leão X: “A fábula de Cristo é de tal modo lucrativa que seria loucura advertir os ignorantes de seu erro”.
Você poderia me mostrar onde achou a citação, Weiner? De qualquer maneira, é totalmente esperado um papa corrupto do Renascimento ter essa atitude cínica em relação à religião 😉 João Paulo II e Bento XVI podem ter inúmeros defeitos, mas não me parece que cinismo esteja entre eles.
E chega! Dai-me tempo para um novo post, Senhor! :oP
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Jesus existiu? Parte 1: As fontes, sempre as fontes

Este é o primeiro de, quem sabe, uma série consideravelmente longa de posts sobre as pesquisas envolvendo o “Jesus histórico”, como é conhecida a reconstrução acadêmica da vida e da mensagem de Cristo baseada única e exclusivamente no que se pode extrair de historicamente confiável das fontes do século I a.C.
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Paradoxalmente, no entanto, sinto-me compelido a começar respondendo a indagação que virou moda nos últimos tempos: afinal, quem garante que Jesus existiu mesmo? Na esteira do documentário-cascata “Zeitgeist”, e na ânsia de arrumar mais uma arma contra as religiões, a ideia de que Jesus nem teria existido, sendo apenas uma lenda meio Frankenstein montada a partir dos pedaços de todas as mitologias do Mediterrâneo pelo espertíssimo apóstolo Paulo (por exemplo), tornou-se relativamente popular nos meios céticos.
Começarei defendendo aqui que, na verdade, de longe o mais provável é que Jesus tenha de fato vivido e caminhado na Palestina do século I a.C. “Numdiga, Reynolds”, brincarão alguns. “Claro, você é católico, TEM de acreditar que Jesus existiu.” Pode ser. Mas ser cristão não me impede de tentar usar o método científico de maneira desapaixonada, seguindo os passos dos principais historiadores do cristianismo mundo afora, os quais, quase sem exceção, não duvidam que Jesus tenha sido uma pessoa real. Claro, ciência não se faz por maioria de votos, e consensos científicos podem estar enganados. Mas o que pretendo demonstrar é que, usando o velho e confiável princípio da navalha de Occam, segundo o qual a explicação mais simples que consegue dar conta dos dados é a verdadeira, é que a hipótese do “mito forjado” simplesmente não funciona.
Claro, nada disso significa que, do ponto de vista estritamente histórico e científico, as pessoas são obrigadas a aceitar que os aspectos sobrenaturais do ministério de Jesus, como os milagres e a ressurreição de Jesus, aconteceram tal como narrados nos Evangelhos canônicos do Novo Testamento — ainda que, pela fé, eu aceite a realidade essencial deles. (Até porque cada um dos Evangelhos narra esses fatos de maneira substancialmente diferente da dos demais.) Meu propósito, até por uma questão de naturalismo metodológico, é mais modesto: mostrar que há fatos não-sobrenaturais, empiricamente verificáveis, que fornecem ao menos um esqueleto de fatos concretos sobre a vida de Jesus.
Evidência direta? Vai sonhando
Indo finalmente ao que interessa, vamos relativizar um ponto no qual muita gente insiste sem entender o contexto da Galileia e da Judeia do século I a.C. É aquele negócio de exigir evidências arqueológicas diretas da existência de Jesus. Enquanto não acharem uma tábua de passar com o logotipo “Carpintaria José & Jesus – made in Nazareth”, não acreditarão, e ponto.
O que esses São Tomés modernos esquecem é, em primeiro lugar, o meio social e cultural de onde Jesus, com quase 100% de probabilidade, veio. O mundo mediterrâneo antigo, como ocorria com a imensa maioria das culturas pré-modernas, era povoado por gente que não sabia escrever, que dependia de materiais perecíveis para quase todos os momentos da vida e que tinha tão poucos direitos políticos que dificilmente seria mencionado pelo nome em qualquer documento governamental (os quais, aliás, também podiam ser perecíveis).
E daí? Daí que Jesus era muito provavelmente invisível do ponto de vista arqueológico. Ele e quase toda a primeira geração de seus seguidores. Nem o famoso sepulcro onde teria ocorrido a Ressurreição escapa — não é improvável que a narrativa de um sepultamento honroso seja um acréscimo posterior, e que o corpo crucificado tenha ido parar numa vala comum, o que seria mais ou menos a prática padrão dos executores da Roma imperial.
Os invisíveis
O que vale para o carpinteiro rústico de um vilarejo insignificante da Baixa Galileia, no entanto, vale também para algum dos nomes mais importantes da Antiguidade Clássica. O fato surpreendente é que, tanto em evidência material direta quanto em evidências textuais, o que chegou até nós do mundo antigo é ridiculamente pouco. Em larguíssima medida, dependemos de relatos de segunda ou terceira mão, e os que parecem melhores e mais detalhados muitas vezes vieram séculos depois dos eventos que narram.
Um exemplo extremo? Ninguém menos que Alexandre, o Grande. Sim, temos moedas cunhadas com as fuças dele que datam do fim de sua vida ou de pouco depois — aleluia, evidência arqueológica direta, afinal! –, mas só com isso o máximo que saberíamos é que houve um rei poderoso de origem grega chamado Alexandre no século IV a.C. Superútil. Para qualquer detalhe que preste sobre a vida do sujeito, temos de nos basear no que escreveram Arriano e Plutarco — em pleno período romano, uns QUINHENTOS anos depois da época de Alexandre. Arriano e Plutarco teriam se baseado nas memórias de sujeitos como Ptolomeu, um dos generais do jovem rei. Só que essas fontes contemporâneas se perderam. Em tese, os escritores poderiam simplesmente ter inventado essas fontes — não que qualquer estudioso de Alexandre aposte nisso.
Segundo exemplo: Temístocles, o homem que salvou Atenas das mãos dos persas em 480 a.C. Escavações em Atenas acharam “cédulas” de ostracismo — a votação para exilar pessoas instituída pelos atenienses — com o nome “Temístocles, filho de Néocles”. De novo, seria apenas um nome — se não fosse pelo pitoresco relato das aventuras de Temístocles feito por Heródoto uns 40 anos depois da guerra com os persas (aliás, o mesmo período de tempo que separa a morte de Jesus do Evangelho de Marcos, o mais antigo). Heródoto é a única fonte mais ou menos contemporânea sobre Temístocles a sobreviver até hoje.
Terceiro exemplo, desta vez duplo: Leônidas e Sócrates. Aí a coisa fica REALMENTE feira. Heródoto também escreveu sobre Leônidas, com a mesma distância temporal de Temístocles. Uma única fonte literária é só o que sugere que o rei casca-grossa e cabra-macho de Esparta sequer existiu — nenhuma inscrição com seu nome chegou até nós. Sócrates deu mais sorte: são basicamente seus discípulos Platão e Xenofonte, escrevendo décadas depois de sua morte, que nos informam sobre sua vida (de maneira um bocado contraditória, aliás).
A conclusão me parece inescapável: se aplicarmos os mesmos critérios que os céticos mais extremados usam para falar de Jesus ao resto da Antiguidade, ou vamos concluir que Atenas e Esparta mal chegaram a existir, ou ficaremos eternamente presos a um agnosticismo paralisante. O caso de Jesus está longe de ser excepcional em termos de falta de dados: é, na verdade, um caso típico.
A série continua em breve com uma velha questão: existem fontes não-cristãs independentes que comprovem a existência de Jesus?

Meu reino por um cavalo

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Não é à toa que Ricardo III não conseguia arrumar um cavalo no meio dessa pusta confusão aí de cima. Bagunça à parte, arqueólogos liderados pelo britânico Glenn Foard acabam de tornar o cenário menos confuso ao finalmente identificar o local onde Ricardo tombou durante a batalha de Bosworth, evento que elevou a então relativamente obscura família galesa Tudor ao trono da Inglaterra e encerrou a chamada Guerra das Rosas (ui!) em 22 de agosto de 1485.
Com a ajuda de detectores de metal, a equipe achou uma série de artefatos dos exércitos que participaram da batalha em Fen Lane, Leicestershire, entre eles 28 balas de canhão e pequenos javalis de prata que eram o emblema dos partidários de Ricardo III. O rei, morto em combate, mas imortalizado na peça homônima de Shakespeare, perdeu a vida nas mãos das forças de Henrique Tudor, futuro Henrique VII, pai de Henrique VIII e avô da poderosa Elizabeth I.
O jornal britânico “The Guardian” traz mais detalhes sobre os achados.
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Guerra santa

Fazia tempo que eu não babava tanto com uma descoberta arqueológica (embora nesse caso eu seja obviamente suspeito pra dizer, claro). Está em todas as agências de notícias o achado de pelo menos 650 objetos de ouro e 530 objetos de prata em Staffordshire (centro-oeste da Inglaterra), provavelmente datados do século VII, época em que a área fazia parte do reino anglo-saxão da Mércia. Estamos falando de cerca de 5 kg de ouro puro, indicando que os guerreiros germânicos que conquistaram a Grã-Bretanha depois da queda do Império Romano construíram uma civilização bem mais opulenta do que se imaginava antes.
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Como testemunho da cultura guerreira dos mercianos, a imensa maioria desses objetos ricamente decorados é de uso bélico (ou ao menos cerimonial-bélico; não é muito esperto partir para a porrada coberto de metais preciosos). São bainhas de espadas, cabos de espadas, pedaços de elmos (como a linda peça vista acima, que provavelmente protegia a parte lateral do rosto do usuário).
Mais interessante ainda é a folha de ouro vista abaixo, com a inscrição latina (com errinhos de ortografia) Surge domine et dissipentur inimici tui et fugiant qui oderunt te a facie tua. Na tradução da CNBB: “Levanta-te, SENHOR, que se dispersem os inimigos! Fujam diante de ti os que te odeiam”. CNBB? Sim, a frase é do Antigo Testamento (livro de Números, capítulo 10, versículo 35). Era a frase que, segundo a Bíblia, Moisés pronunciava toda vez que a Arca da Aliança punha os israelitas em marcha no deserto.
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Não é nem um pouco esquisito que ex-bárbaros recém-cristianizados como os mercianos usassem a Bíblia como inspiração para a guerra. A junção entre fé e coragem militar foi aparentemente uma das grandes estratégias da Igreja para conseguir converter as elites bárbaras. E isso aparece até na poesia religiosa em anglo-saxão ou inglês antigo: num dos poemas da época, The Dream of the Rood (“O Sonho do Lenho”), a cruz na qual Jesus foi pregada fala com ele com a mesma linguagem empregada pelos guerreiros anglo-saxões em relação a seus lordes guerreiros.
O porquê da minha empolgação? É muito simples, Comissário. Os cavaleiros de Rohan em O Senhor dos Anéis falam o dialeto anglo-saxão merciano, que Tolkien apreciava muito. Aliás, o próprio nome Mark (Marca dos Cavaleiros) é claramente derivado do reino da Mércia. Westhu hál!

Carlos II, o Zicado

ResearchBlogging.orgcarlossegundo192.jpgA vida de Carlos II, rei da Espanha morto em 1700, já foi descrita como uma mistura infeliz de infância prolongada além do normal e senilidade precoce. Apelidado por seus súditos de el Hechizado (“o Enfeitiçado”; pessoalmente, eu prefiro a tradução livre “o Zicado”), Carlos só aprendeu a falar aos quatro anos e começou a falar com oito. Relatos da época dão conta de que seus defeitos labiais o impediam de falar e comer direito. (As anomalias bucais são típicas da dinastia do monarca, os Habsburgos, mas aparecem de forma exagerada nele.) Sua cabeça era grande demais; ele sofria de fraqueza muscular, vômitos, impotência e/ou ejaculação precoce. De quem é a culpa? Do inbreeding, ou excesso de consanguinidade, ao longo de 200 anos de reinado dos Habsburgos na Espanha.
A poliesculhambose de Carlos II, acaba de mostrar um grupo de pesquisadores da Galícia na revista “PLoS One”, deriva do fato de que os Habsburgos, como forma de manter suas posses territoriais nas mãos da família, casarem com frequência estarrecedora entre parentes próximos. Por causa de gerações dessa prática, Carlos, o Zicado, que foi o último membro da dinastia na Espanha, era geneticamente equivalente a alguém gerado por um casamento entre pai e filha ou entre irmão e irmã. Confira minha reportagem completa sobre o tema em reportagem desta semana no G1.
Eu adoraria ver esse tipo de análise aplicado a outras dinastias cuja mania de se casar com parentes podia ser ainda mais extrema. Os Habsburgos, que curtiam uma união de prima com primo ou de tio com sobrinha, até que pegavam leve perto dos faraós ou dos Ptolomeus, os macedônios que tomaram conta do Egito da morte de Alexandre, o Grande até a conquista romana. Esses sujeitos costumavam casar irmão com irmã mesmo. Será que há uma correlação entre a decadência das dinastias faraônicas e o período prolongado de inbreeding?
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Em outra notícia arqueológica da semana, americanos identificaram ervas medicinais em amostras de vinho de 5.000 anos e também em outras mais recentes, de 1.500 anos, ambas obtidas no Egito. Já se sabia que a adição de condimentos era uma prática comum no vinho da Antiguidade, em parte porque as más condições de armazenamento transformavam a bebida num vinagre intragável depois de algum tempo.
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Alvarez, G., Ceballos, F., & Quinteiro, C. (2009). The Role of Inbreeding in the Extinction of a European Royal Dynasty PLoS ONE, 4 (4) DOI: 10.1371/journal.pone.0005174

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