Encouraçados fofuchos
O bicho da esquerda, em vida (e lá se vão mais de 10 mil anos), pesava 100 kg. O de cá, um tatu-canastra (Priodontes maximus) moderno, normalmente um bicho portentoso, vira fichinha perto dele. Explico o elo entre a dupla em reportagem na Folha desta segunda. Não percam!
E, enquanto isso, apreciem o trabalho primoroso do paleoartista e paleontólogo Felipe Alves Elias, que recriou o bicho extinto a nosso pedido.
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Artefatos que importam: a estela de Merneptah
Nossa série sobre os artefatos mais importantes do registro arqueológico mundial continua com mais uma estela (pra quem não sabe, nome afrescalhado para postes de pedra), desta vez do antigo Egito. Erigida a mando do Báteman, digo, do faraó Merneptah (1213 a.C. – 1203 a.C.), o consenso entre os estudiosos é que ela representa a mais antiga evidência arqueológica da existência do povo de Israel, ainda que não de uma entidade política que possamos chamar de reino de Israel.
No Egito faraônico, entre os maias e num sem-número de povos antigos, estelas desempenham mais ou menos a mesma função social das plaquinhas comemorativas de aeroportos e estádios: permitir que o governante da vez conte vantagem. Com Merneptah não é diferente. O soberano botou esse troço de pé em Tebas, cidade real egípcia a 800 km do Mediterrâneo, como forma de celebrar suas (supostas) vitórias militares.
A maior parte do texto fala das bordoadas que ele teria distribuído em batalhas contra os líbios, mas uma seção menor fala das campanhas guerreiras na terra de Canaã — a região que hoje conhecemos como Israel e territórios palestinos. Ao que parece, a área estava dividida em cidades-Estado, como Gezer e Ashkelon — as quais, desde o terceiro milênio antes de Cristo, já eram consideradas vassalas do Egito. Só que aí vem a passagem abaixo:
Não lê hieróglifos? Tá, vou relevar essa lacuna imperdoável na sua formação cultural e traduzir pra você: “Israel está destruído, sua semente não existe mais”. Não se sabe se “semente” é usada no sentido metafórico de “descendência” ou se o faraó quer dizer que destruiu as reservas de comida de seus inimigos. Se o sentido empregado é o metafórico, a primeira conclusão é que Merneptah era um pusta de um mentiroso, como qualquer judeu vivo ainda hoje poderá atestar para você.
Êxodo? Que Êxodo?
Mas é claro que as implicações da estela vão além disso. A escrita hieroglífica empregava determinativos, sinais que não tinham valor de som, mas serviam para determinar (dã!) categorias conceituais. O usado para “Israel” é o de “povo”, não o de “cidade-Estado” ou unidade política. Costuma ser usado pelos egípcios para designar tribos nômades.
OK, isso significa que os egípcios, nessa época, não viam os israelitas como unidade política organizada. O mais curioso, no entanto, é Israel aparecer “pronto” na cena da terra de Canaã sem menção alguma ao episódio que teria iniciado o conflito israelitas x egípcios: o Êxodo bíblico.
Claro que um império do naipe do egípcio não teria lá muito interesse para anunciar uma derrota fragorosa como teria sido a do Êxodo. No entanto, o fato de não haver pelo menos uma pista da morada israelita de séculos em terras egípcias, mais uma série de pistas — linguísticas, sociais e arqueológicas — indicam que, pelo visto, o Êxodo NÃO aconteceu, ou ao menos se deu numa escala minúscula, bem menor do que o mito fundador israelita nos sugere. Voltarei a esse assunto fascinante em breve.
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Meu reino por um cavalo
Não é à toa que Ricardo III não conseguia arrumar um cavalo no meio dessa pusta confusão aí de cima. Bagunça à parte, arqueólogos liderados pelo britânico Glenn Foard acabam de tornar o cenário menos confuso ao finalmente identificar o local onde Ricardo tombou durante a batalha de Bosworth, evento que elevou a então relativamente obscura família galesa Tudor ao trono da Inglaterra e encerrou a chamada Guerra das Rosas (ui!) em 22 de agosto de 1485.
Com a ajuda de detectores de metal, a equipe achou uma série de artefatos dos exércitos que participaram da batalha em Fen Lane, Leicestershire, entre eles 28 balas de canhão e pequenos javalis de prata que eram o emblema dos partidários de Ricardo III. O rei, morto em combate, mas imortalizado na peça homônima de Shakespeare, perdeu a vida nas mãos das forças de Henrique Tudor, futuro Henrique VII, pai de Henrique VIII e avô da poderosa Elizabeth I.
O jornal britânico “The Guardian” traz mais detalhes sobre os achados.
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Inuq, o retrato falado genômico
Sem mais delongas, confiram a minha reportagem na “Folha” de hoje.
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O tufo de cabelos passou 4.000 anos preso debaixo do permafrost, o solo congelado do Ártico, antes que cientistas dinamarqueses o usassem como base para decifrar o primeiro genoma quase completo de um ser humano pré-histórico. E o DNA, dizem eles, permitiu reconstruir a saga de uma migração esquecida e traçar o “retrato falado” de seu portador.
Apesar da cara de poucos amigos na concepção artística do último post, Inuq (apelido que significa simplesmente “ser humano” na língua nativa da Groenlândia) tem as marcas genéticas de um sujeito comum: tendência à calvície, propensão a acumular gordura (provável adaptação ao frio extremo), moreno, sangue tipo A positivo.
Todos esses dados, obtidos pela equipe de Eske Willerslev, da Universidade de Copenhague, derivam da comparação do genoma de Inuq com o de populações modernas. Em artigo na revista científica “Nature” de hoje, o grupo calcula ter “soletrado” 80% do DNA do antigo habitante da Groenlândia, obtendo dados de qualidade comparável à de qualquer genoma de alguém vivo hoje.
“É preciso levar em conta que os únicos restos que tínhamos do povo ao qual esse indivíduo pertencia eram quatro tufos de cabelo e quatro pedacinhos de osso”, explica Willerslev. “Havia numerosos instrumentos [como arpões para caçar focas] nos sítios arqueológicos, mas nós não tínhamos a menor ideia de quem eram essas pessoas”, afirma ele.
A análise genômica indica que Inuq e sua tribo não tinham parentesco próximo nem com os atuais inuítes (ou esquimós, nome hoje considerado pejorativo), nem com as tribos indígenas que povoaram as Américas ao sul do Ártico.
Ao que parece, eles representariam uma migração independente a partir do nordeste da Sibéria, que teria se separado das populações asiáticas há 5.500 anos. Os atuais nativos americanos também teriam vindo do tronco siberiano, mas a partir de linhagens diferentes e em épocas diferentes. A população de Inuq provavelmente era pequena, a julgar pela diversidade genética relativamente baixa em seu DNA: é como se ele fosse filho de um casal de primos de primeiro grau.
“A pesquisa é um “tour de force” [façanha], um trabalho espetacular”, elogia o geneticista brasileiro Sergio Danilo Pena, da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). Para ele, a genômica arqueológica deve avançar ainda mais nos próximos anos, impulsionada por fatores como a facilidade cada vez maior de “ler” o DNA.
“Agora, não é um caso normal. É preciso levar em conta a preservação das amostras. Casos como esse não vão virar arroz-de-festa”, diz Pena, que colabora com o grupo dinamarquês em outros estudos.
Willerslev se diz mais esperançoso. Como a contaminação por DNA moderno é mais rara quando se trata de material genético no interior de fios de cabelo, seria possível repetir a façanha com múmias sul-americanas ou outros restos com tecido capilar preservado.
“Já trabalhei com cabelo, e não é tão simples assim”, ressalva Pena. Ele também critica a associação entre genes e aparência de Inuq, porque dados a esse respeito sobre populações siberianas ainda são incertos.
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Rasmussen, M., Li, Y., Lindgreen, S., Pedersen, J., Albrechtsen, A., Moltke, I., Metspalu, M., Metspalu, E., Kivisild, T., Gupta, R., Bertalan, M., Nielsen, K., Gilbert, M., Wang, Y., Raghavan, M., Campos, P., Kamp, H., Wilson, A., Gledhill, A., Tridico, S., Bunce, M., Lorenzen, E., Binladen, J., Guo, X., Zhao, J., Zhang, X., Zhang, H., Li, Z., Chen, M., Orlando, L., Kristiansen, K., Bak, M., Tommerup, N., Bendixen, C., Pierre, T., Grønnow, B., Meldgaard, M., Andreasen, C., Fedorova, S., Osipova, L., Higham, T., Ramsey, C., Hansen, T., Nielsen, F., Crawford, M., Brunak, S., Sicheritz-Pontén, T., Villems, R., Nielsen, R., Krogh, A., Wang, J., & Willerslev, E. (2010). Ancient human genome sequence of an extinct Palaeo-Eskimo Nature, 463 (7282), 757-762 DOI: 10.1038/nature08835
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Seu amiguinho Inuq
OK, admito que chamar o sujeito enfezado aí do lado de amiguinho força um pouco a barra, mas vamos dar uma chance ao Inuq. Embora tenha vivido há 4.000 anos, ele é um cara comum, literalmente sangue bom (tipo A positivo, para ser mais exato), com probleminhas que muitos de nós temos, como tendência a engordar e alopecia androgenética (ou predisposição a ficar careca, em linguagem de gente).
Esses e outros segredinhos incômodos da fisiologia de Inuq, um groenlandês de ascendência siberiana, estão descritos num artigo da revista “Nature” desta semana. Uma equipe internacional capitaneada pela Universidade de Copenhague usou tufos de cabelo preservados no permafrost (o solo eternamente congelado do Ártico) para sequenciar cerca de 80% do DNA do rapaz — é, na verdade, o primeiríssimo genoma quase completo de um ser humano pré-histórico a ser decifrado.
Os resultados são insights fascinantes sobre a biologia do primeiro povo do Ártico e pistas sobre uma migração para as Américas que até então era desconhecida. Conto melhor essa história em reportagem na “Folha” de amanhã. Fiquem de olho!
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Peru para o povo
Promessa é dívida. Segue abaixo a reportagem sobre a domesticação dos perus na América do Norte pré-colombiana, originalmente publicada na “Folha” de hoje. E com um enigma adicional que não coube no texto impresso.
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Os indígenas da América do Norte antes de Colombo não celebravam o Natal, obviamente, mas criar perus parece ter sido tão importante para eles que o bicho foi domesticado na região duas vezes, de forma separada, indica um novo estudo.
Mais ou menos na mesma época, há cerca de 2.200 anos, tanto os moradores do vale de Tehuacán (no sul do México) quanto as tribos do sudoeste dos Estados Unidos passaram a criar a ave, revela um artigo publicado na revista científica americana “PNAS”.
Análises de DNA mostraram que os perus domésticos dos EUA eram geneticamente distintos dos mexicanos, derrubando a ideia de que os indígenas americanos teriam importado seu plantel da espécie junto com o resto do pacote agropecuário do México (que incluía milho, abóbora e feijão, entre outras culturas).
Dongya Yang, especialista em DNA antigo da Universidade Simon Fraser, no Canadá, contou à Folha que a pesquisa surgiu quando ele se deu conta de que colegas de outra instituição, a Universidade do Estado de Washington (EUA), também andavam bisbilhotando o passado dos perus domésticos.
“Nós estávamos estudando ossos de peru, enquanto eles trabalhavam com coprólitos [fezes fossilizadas]. Então, nada mais natural do que juntarmos esforços”, explica.
Os restos foram obtidos em locais relativamente altos, frios e secos de cinco Estados americanos (Utah, Colorado, Arizona, Novo México e Texas), o que facilitou a preservação do DNA dos animais, afirma Yang.
Abundância fecal
O grupo usou indicadores arqueológicos para confirmar que os perus eram mesmo domesticados, como a presença de cercados ou de grandes quantidades de esterco ou cascas de ovo.
Uma vez obtido o material genético, ele foi comparado com o de perus criados comercialmente hoje nos EUA e o de espécimes de museu dos perus selvagens do sul do México (esses bichos estão extintos hoje, ao contrário dos perus selvagens americanos).
Yang e companhia descobriram que os perus domésticos do sudoeste dos EUA podiam ser classificados em dois grandes subgrupos genéticos –nenhum dos quais batia com o DNA dos mexicanos.
Por enquanto, contudo, ainda não dá para saber de qual região americana os animais domésticos vieram, afirma o pesquisador.
O certo, de qualquer modo, é que os perus comercializados todo santo Natal mundo afora descendem da raça mexicana, que foi levada para a Europa pelos espanhóis no século 16.
Apesar da dúvida, a pesquisa também sugere a presença de técnicas relativamente sofisticadas de criação de animais. Parece que, após o estabelecimento inicial do plantel, os indígenas do sudoeste dos EUA capturaram formas selvagens da vizinhança.
“Pode ter sido um jeito de criar híbridos mais produtivos, mas isso ainda é especulação”, diz Yang.
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Agora, o enigma: existe um caminhão de subespécies norte-americanas do peru selvagem, cuja diversidade genética já foi estudada. Acontece que, embora o sudoeste dos EUA pareça ser um segundo centro de domesticação do bicho, “empatando” com o sul do México, o DNA da maior parte (cerca de 85%) dos bichos encontrados em sítios arqueológicos de lá NÃO BATE com o da subespécie selvagem da região.
Grosso modo, as explicações possíveis são duas. Ou os bichos domesticados no sudoeste americano representam uma fatia da diversidade genética selvagem que não está mais presente na população não-doméstica, ou eles originalmente foram parar no cativeiro EM OUTRA REGIÃO. A semelhança genética maior, nesse caso, é com a subespécie do leste dos EUA (que vive na Flórida, por exemplo). Só que, pelo que se sabe, os índios desse pedaço dos Estados Unidos NÃO domesticaram os perus vizinhos.
Yang me disse que só mais dados vão poder desembaraçar o mistério dos perus “fantasmas”, o qual, por enquanto, soa um bocado bizarro.
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Speller, C., Kemp, B., Wyatt, S., Monroe, C., Lipe, W., Arndt, U., & Yang, D. (2010). Ancient mitochondrial DNA analysis reveals complexity of indigenous North American turkey domestication Proceedings of the National Academy of Sciences DOI: 10.1073/pnas.0909724107
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O ameríndio tá de olho no peru
Um rápido teaser, e uma excelente desculpa para estampar aqui no blog a belíssima fotografia de Eric Kaldahl, da Fundação Ameríndia (EUA). A bacia de cerâmica abaixo mostra como os perus eram parte importante das culturas nativas do sudoeste americano, como os célebres Anasazi, por volta do ano 1000 da Era Cristã. Um novo estudo na revista científica “PNAS” indica que as suculentas aves foram domesticadas de forma separada no sudoeste dos EUA e no México, respectivamente, usando dados de DNA para substanciar a hipótese. Mais detalhes na “Folha de S.Paulo” de amanhã, onde escrevo sobre a pesquisa. Stay tuned!
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As joias perdidas de Troia
Maluco pela história e lenda de Troia como sou, fiquei maravilhado ao ler a reportagem do “Philadelphia Inquirer” sobre um trabalho de detetive envolvendo joias que podem ter vindo da cidadela cantada por Homero.
Ocorre que, nos anos 1960, a Universidade da Pensilvânia gastou 10 mil doletas para comprar 24 belos ornamentos de ouro. As joias eram, segundo o negociante de arte que as ofereceu para venda, oriundas de Troia, sabe-se lá de que jeito — afinal, o grande tesouro troiano desenterrado no século XIX pelo alemão Heinrich Schliemann estava desaparecido nessa época.
O negociante não tinha um certificado de procedência que prestasse para os artefatos, mas eles eram tão bonitos, e de estilo tão semelhante aos objetos troianos conhecidos, que o museu acabou pagando para ver. Na pior das hipóteses, tratar-se-iam de objetos da Mesopotâmia, uma vez que havia semelhanças entre as obras e joias encontradas antes no atual Iraque.
Rabudo
Agora, Ernst Pernicka, químico e especialista alemão em metalurgia, conseguiu permissão para obter amostras do ouro misterioso. E, golpe de sorte daqueles indispensáveis para quem quer fazer história no trabalho arqueológico, ele reparou que haviam pedacinhos de terra ainda grudados nas joias.
Resultado das análises químicas: a presença de outros metais amalgamados ao ouro, como prata, platina e paládio, bate com a proporção conhecida dos pedaços do tesouro de Troia que ainda estão na Alemanha (o resto foi saqueado pelos russos durante a Segunda Guerra Mundial, e ainda está na Rússia). E a composição da terra nos objetos também confere com a do solo na planície da Trôade, como é conhecida a região de Troia, hoje na Turquia.
Ou seja, parece que estamos, no mínimo, diante de joias feitas com ouro de aluvião (aquele que é peneirado em rios) que veio das vizinhanças da cidade. É claro que, teoricamente, ele poderia ter sido moldado muito longe de lá — na própria Mesopotâmia, claro –, mas isso me soa improvável.
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