Um jardim murado

Enquanto continuo brigando pra voltar a publicar com frequência por aqui, eis algo que vos pode divertir e/ou interessar minimalmente: um conto que publiquei na revista Pesquisa Fapesp em 2006, que se inspira nos famigerados hobbits da ilha de Flores.
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“Droga de GPS”, xingou Sean.
Em retrospecto, tinha sido uma péssima idéia desde o começo. Todo mundo estava de folga no fim de semana, e boa parte do pessoal tinha corrido para pegar o primeiro vôo para Jacarta, ou mesmo para Bali (apesar dos alertas de bomba). Mas ele tinha decidido “conhecer a floresta um pouquinho melhor”.
“A gente passa dia e noite curvado dentro desses muros de calcário. Eu adoro esse trabalho, mas tem um monte de espécies por aí que a gente deveria conhecer antes que elas entrem para o registro fóssil, moçada”, dissera então.
Ele se lembrava de que Pete, o paleoantropólogo-chefe, tinha rido e sacudido a cabeça.
“Companheiro, agora eu sei por que você entrou nesse negócio de caçar hominídeo. Você é uma droga de sonhador, isso sim.”
E agora já passava das três e, depois do que tinha parecido um cochilo inocente encostado a um tronco, ele estava inegavelmente perdido. Nem adiantava tentar achar o leste pela posição do Sol debaixo de um dossel daqueles. “Tenho de encontrar uma clareira. Não deve ser tão difícil com tanta madeireira por aí hoje em dia”, pensou.
Sean escolheu uma direção qualquer e foi em frente. Os pássaros ficaram estranhamente quietos depois de um tempo, até que ele viu um trecho de céu aberto e escutou o que parecia ser uma voz de criança a algumas dezenas de metros de distância. Talvez fosse uma família de lavradores, levando a vida dura da floresta tropical.
Ele então entrou na clareira e olhou para baixo – havia uma depressão não muito funda, cheia de grama baixa, moitas e pequenas flores. “Eles não chamam esse lugar de Flores à toa”, sorriu Sean consigo mesmo.
O antropólogo viu os meninos cujos gritos escutara: tinham uns cinco ou seis anos, pelo jeito. Estavam de costas para ele e andavam nus pela grama, com bastões na mão. Ele os saudou em indonésio (usando as poucas palavras que conhecia) e, por alguma razão, aquilo pareceu assustá-los. Correram e gritaram de novo, e três garotos ligeiramente mais velhos, também com algum tipo de bastão, saíram de trás de uma moita mais alta, caminhando rápido na direção de Sean. Não pareciam lá muito contentes.
E então, quando chegaram perto o suficiente para que ele visse o rosto deles, o mundo de Sean virou pó.
Sean não precisava medir suas mandíbulas nem plotá-las ao lado de uma amostra de povos do resto do mundo para saber, para sentir nos próprios ossos que eles ficavam de fora da variação normal do Homo sapiens — que, literalmente, eles não eram humanos modernos. As cabeças eram tão pequenas — Sean, um australiano grandalhão, quase seria capaz de cobri-las inteiras com as duas mãos. E os “garotos mais velhos” tinham tanto pêlo no corpo — tanto quanto um europeu adulto — que só podiam ser “gente grande”.
O antropólogo estava tão atordoado que precisou de um tempo para perceber que um triângulo de bastões com pontas de pedra acabara de cercá-lo. Sons (aquilo eram palavras?) saíam das bocas nervosas dos ilhéus. Sean respirou fundo. “Pelamordedeus, não me vá estragar tudo, companheiro”, resmungou. Limitou-se a levantar as mãos, palmas viradas para fora, e a sorrir, tentando não olhar os lanceiros direto nos olhos.
Por alguma razão, isso pareceu acalmar os ilhéus. Um deles veio até Sean, uma figura minúscula, de ar digno, e olhou fundo nos olhos cinzentos do antropólogo. Ele também sorria.
Seja como for, os juvenis (ou crianças?), depois daquele olá assustador em indonésio, tinham se acalmado e estavam se aproximando de novo. Meninos são meninos em qualquer lugar: o menorzinho cutucou o traseiro de Sean com a lança e saiu correndo e rindo (sim, eles riam). Ele logo voltou para inspecionar o gigante de cabelo vermelho. Sean tocou o rosto dele e, devagarzinho, abriu a boca do menino. Havia linhas de crescimento nos dentes: o garoto claramente tinha passado por maus bocados, mas, no geral, parecia saudável.
O sol poente deu a Sean uma boa idéia de onde diabos estava, afinal de contas, e ele sentiu um impulso esquisito para voltar para a base o mais rápido possível. Passava das oito e uma chuva furiosa estava encharcando o mundo quando chegou. Não conseguia ligar o telefone, ainda não. Sean secou o cabelo e decidiu que precisava de uma boa leitura. O terceiro chimpanzé estava em cima da cama, e ele retomou o livro de onde tinha parado na noite anterior. Coincidência ou não, o tema era a Tasmânia.
“Uma vez que os únicos barcos dos tasmanianos eram jangadas que só serviam para jornadas curtas, eles não tiveram nenhum contato com outros humanos desde que o aumento do nível do mar separou a Tasmânia da Austrália há 10 mil anos. Confinados no seu universo particular por centenas de gerações, eles sobreviveram ao mais longo isolamento da história humana moderna – um isolamento que só foi retratado de forma parecida pela ficção científica. Quando os colonos brancos da Austrália finalmente encerraram esse isolamento, não havia na Terra dois povos menos equipados para entender um ao outro do que os tasmanianos e os brancos.”
Sean leu sobre a caçada, o confinamento e o extermínio lento e sistemático de cada homem, mulher e criança tasmaniana. Leu sobre os cientistas vitorianos enlouquecidos que mutilaram, enterraram, escavaram e voltaram a enterrar os restos daquela gente como se fossem troféus, como curiosidades que só se prestavam aos shows de horrores ou aos museus. Leu sobre Truganini, que tão horrorizada estava com tal destino que fez seus guardiões brancos prometerem que seu corpo seria jogado em mar aberto. Uma promessa que, claro, eles não cumpriram.
Sean estremeceu. Não conseguia tirar os olhos e os dentes minúsculos do menino da cabeça. Seu O senhor dos anéis também estava lá (ótima coisa para carregar quando se procura hobbits, pensou ele, embora não desse jeito tão literal). Sabia exatamente onde abrir o livro: era tão amargamente apropriado. Ele quase podia ouvir a voz de Gildor Inglorion falando com Frodo: “O vasto mundo está à volta de vocês: podem se cercar por dentro, mas não podem cercá-lo para fora para sempre”.
“Dane-se. Eu pelo menos posso tentar”, respondeu Sean.
Quando seus colegas voltaram, não ouviram nem uma palavra sobre o encontro na floresta. A equipe ficou desapontada ao saber, alguns anos mais tarde, que o governo indonésio tinha declarado o sítio parte de um santuário inviolável de vida selvagem, proibindo futuras escavações. Aparentemente, havia uma espécie muito ameaçada de primata ali. À boca pequena, as pessoas comentavam que Sean era muito amigo dos lobistas.

Neandertais ranzinzas

A semana passada era pra ter sido a semana neandertal aqui no blog. Falta absoluta de tempo impediu isso. Não que o tempo tenha ficado menos escasso, mas começo a colocar aos pouquinhos algumas repercussões divertidas ainda ligadas ao genoma dos neandertais. Veja, por exemplo, as respostas deliciosamente ranzinzas de Erik Trinkaus, antropólogo da Universidade Washington em Saint Louis (EUA), sobre o tema.
Velho parceiro do arqueólogo português João Zilhão e true believer na hibridização entre humanos modernos e neandertais, ele basicamente rosnou diante das minhas perguntas.
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O que o sr. achou das conclusões do genoma? Sente-se vingado?
Eles finalmente conseguiram achar evidências daquilo que se sabe há muito tempo: os neandertais e outros humanos arcaicos foram absorvidos de forma variável nas populações humanas modernas em expansão. Nunca precisei do apoio deles, então não me sinto vingado, mas talvez agora possamos ir além de “quem estava fazendo sexo com quem no fim do Pleistoceno”.
Qual sua visão sobre a ideia de que o cruzamento aconteceu no Oriente Médio?
A interpretação deles, ligada a um cruzamento antigo no sudoeste da Ásia, está baseada em supostas variantes neandertais em dois humanos modernos do leste da Ásia. Isso, para colocar as coisas em termos educados, é uma lógica absurda. Os próprios dados deles sobre DNA mitocondrial “neandertal” na Sibéria contradiz isso. Não há nenhum DNA antigo obtido de qualquer outro lugar do leste da Eurásia, então não sabemos se essas variantes existiam entre humanos arcaicos tardios. Portanto, eles não têm a menor ideia de onde e quando a mistura aconteceu levando em conta a amostragem deles de 5 (sim, cinco) humanos vivos e três (sim, 3) fragmentos neandertais de um sítio da Croácia. Trata-se meramente do preconceito da Europa Ocidental contra os neandertais europeus aparecendo outra vez.

Show do Zilhão

zilhones.jpgDireto do túnel do tempo, e em tempos de genoma neandertal (quase) completo, achei que seria legal compartilhar com vocês uma entrevista que fiz na era G1 com o arqueólogo português João Zilhão, da Universidade de Bristol. Presciente, Zilhão falava há mais de uma década da hibridização entre neandertais e humanos, e levou muita incredulidade na cacunda até ser vingado pelos dados recém-publicados na “Science”.
Confira o papo ou, se preferir, ouça diretamente a gravação dele clicando aqui (como eu fiquei contente que isso ainda existe!).
Como alguém que estuda os artefatos, o registro arqueológico deixado pelos neandertais há muito tempo, professor, o que representa agora a possibilidade de ter nas mãos o genoma completo da espécie daqui a dois anos? E o sr. concorda com a idéia de que esses dados vão trazer informações que o registro arqueológico apenas é incapaz de revelar?
João Zilhão – Bom, eu não sou especialista em genética, e penso que o principal objetivo do estudo visando à reconstituição do genoma neandertal não é tanto o conhecimento dos neandertais em si mesmos, porque obviamente quando se seqüencia o genoma de um indivíduo está-se longe de poder estar seguro de até que ponto as variações que encontramos são representativas de toda a população ou toda a espécie à que ele pertence.
Mas o objetivo fundamentalmente é ter um termo de comparação que permita compreender melhor o genoma da humanidade atual. Há problemas de representatividade estatística, do material disponível das amostras, que fazem com que um estudo como este, pelo menos no horizonte tecnológico previsível, tenha um alcance limitado para o conhecimento e o estudo dos neandertais em si mesmos. Em todo caso, evidentemente, a confirmar-se a possibilidade técnica de fazer esta reconstituição, representa do ponto de vista tecnológico um feito impressionante, e dará seguramente informações interessantes, importantes para o estudo da evolução humana, e do sempre polêmico tema da relação entre os neandertais e o homem moderno, digamos assim.

Ainda em relação ao genoma, os primeiros dados parecem sugerir uma coisa que me pareceu muito intrigante, que é a suposta entrada de genes de humanos anatomicamente modernos no DNA neandertal, e aliás se arriscam até a dizer que haveria uma assimetria, no sentido de homens, do sexo masculino, anatomicamente modernos para mulheres neandertais. Eu gostaria de saber como o sr. vê essa possibilidade, porque parece o tipo de coisa que nós vemos acontecer em situações de contato entre povos diferentes, quando um desses povos leva a pior, digamos, como aconteceu na chegada dos europeus à América.

Zilhão – Bom, já como um primeiro ponto, registro com muito agrado que tenha apanhado esse pormenor, um parágrafo importante do artigo da “Nature”, que passou quase silenciado nos comentários que a respeito dele foram feitos na imprensa internacional. E é, do meu ponto de vista, a única coisa inovadora que há nesse artigo, porque, de resto, o que eles apresentam é uma estimativa do período de divergência que eram coisa já conhecida, já sabida.
Do ponto de vista dos resultados concretos o mais interessante é essa passagem. Que embora apresentada a título de especulação, é aparentemente suficientemente forte para que eles tenham arriscado a publicar nesse artigo. E é um resultado muito interessante porque vai ao encontro do que, com base no registro fóssil e no material arqueológico, e também com base no estudo do ADN [DNA] nuclear da humanidade atual, vem ganhando cada vez mais peso de uns cinco anos para cá, a noção de que, no momento do contato entre neandertais e modernos, como não podia deixar de ser, houve processos de miscigenação entre as duas populações.
A especulação avançada pela equipe do Päabo é que, nesse processo de miscigenação, terão sido mais freqüentes os casos de acasalamento entre homens, entre aspas, modernos, e mulheres neandertais do que o inverso, ou seja, o acasalamento entre homens neandertais e mulheres modernas. Bom, há que esperar pela confirmação. Se se confirmar que essa foi a regra geral, é interessante do ponto de vista da modelização da forma como o processo de miscigenação se deu, explicaria em particular por que é que não há ADN mitocondrial [que só é transmitido de mãe para filho] dos neandertais nas populações atuais.
Em todo caso, independentemente da direção predominante da troca, o importante é o facto do intercâmbio genético, independentemente do facto de ele ter sido sexualmente desequilibrado. Uma vez que estamos a falar da reprodução sexual, a partir do momento em que há cruzamento e há produção de descendência, significa que há recombinação do genoma dos dois lados, independentemente do que diz respeito à componente moderna ter sido predominantemente de origem masculina e a componente neandertal de origem feminina. O que é importante é que a descendência é necessariamente mista.
A não ser que nós especulemos que os mestiços resultantes desses cruzamentos não deixavam descendência fértil ou eles próprios só se cruzavam com neandertais puros, ou consigo mesmos, com outros mestiços, e que portanto nunca chegou a entrar um contributo genético neandertal nas populações modernas – o que é uma especulação que eu penso, enfim, desprovida de fundamento, completamente irrealista – a implicação é de que há genes neandertais que passaram para a humanidade moderna, e existe a possibilidade, ou é legítimo supor, que no presente sobreviveram alguns desses genes.
Mudando um pouco de assunto para o lado realmente arqueológico, parece ter havido muitas idas e vindas recentemente no debate sobre a convivência entre humanos anatomicamente modernos e neandertais na Europa, principalmente em relação à escala de tempo dessa convivência. Na sua opinião, com base nos dados que nós temos hoje, qual teria sido a ordem de grandeza temporal dessa convivência?
Zilhão – O que os dados parecem demonstrar cada vez mais é que esse período de convivência, na escala regional, terá sido muito curto. Eu sou da opinião que não pode ter demorado, dada a forma de funcionamento das sociedades de caçadores-coletores, e num quadro em que aceitamos a miscigenação como normal, não parece razoável esperar que as duas populações tenham convivido na mesma região sem se misturar. Portanto, a miscigenação, o acasalamento transformaria aquilo que era inicialmente duas populações separadas numa única população, herdando em proporções que há que estudar e podem ter variado, de lugar para lugar, percentagens diferentes de cada população.
E quando olhamos para as datações disponíveis, criticadas como deve ser e lidas como deve ser, rejeitando aquelas que por diversas razões não podem ser aceitas, o quadro que obtemos é bastante claro. É bastante claro até certo ponto porque a datação por radiocarbono tem uma margem de incerteza, e essa margem de incerteza é maior do que o período de coexistência, na escala regional, entre as duas populações.
Então, o que acontece? Vemos que os últimos neandertais e os primeiros modernos numa mesma região datam todos, por exemplo, da volta de 36.500 anos antes do presente, em anos de radiocarbono [que não correspondem exatamente aos anos de calendário]. Mas quando a gente diz “à volta de” queremos dizer um intervalo de tempo de mil anos. Ora, em mil anos, passa-se muita coisa. E quando se diz que é muito curto estamos a dizer que é da volta de mil anos. Mas, na verdade, utilizar “curto” para qualificar um intervalo de tempo dessa duração é um bocado forçar o sentido das palavras, mas é isso que quer dizer efetivamente.
Isso na escala regional. Não quer dizer que na escala continental não tenha havido regiões da Europa onde o processo do contacto foi, digamos assim, mais tardio, onde a chegada de grupos de homens modernos se deu significativamente mais tarde, tão mais tarde que o radiocarbono detecta a diferença, do que em outras regiões da Europa. É o caso, nomeadamente, da Península Ibérica.
O ponto de vista consensual da comunidade arqueológica de que houve uma sobrevivência, no conjunto da Península Ibérica, ao sul da depressão do rio Ebro, ou ao sul, mais ou menos, dos Pirineus – na província de Valência, Andaluzia, a Meseta, e portanto Portugal – até cerca de 30 mil, 32 mil anos de radiocarbono. O que é uma sobrevivência de pelo menos 5.000 anos a mais em comparação com o que se passa ao norte dos Pirineus, em França, na Romênia, na Itália ou na Europa Oriental.
Voltando à questão do contato e do sinal arqueológico que ele pode deixar, um dos fenômenos mais intrigantes do fim da Era do Gelo na Europa é o aparecimento da cultura chatelperroniana entre os neandertais, que parece mostrar o mesmo tipo de adornos, colares, cultura simbólica complexa que os humanos modernos mostravam. Muita gente vê isso como prova do contato entre os povos, até como uma forma de aculturação dos neandertais pelos modernos, mas até onde sei o sr. discorda. Qual seria então a melhor forma de explicar o fenômeno do chatelperroniano entre os neandertais?
Zilhão – Mais uma vez, é um problema empírico. É concebível, é legítimo supor que o aparecimento de objetos de adorno e de uma cultura simbólica entre os neandertais é o resultado de um processo de aculturação, mas para que isso acontecesse, nós temos de ter modernos, com sua própria cultura simbólica, nas imediações, no tempo em que começa esse fenômeno entre os neandertais. Por que do contrário não há aculturação – para haver aculturação, tem de estar situado ali, ao lado, na mesma época, grosso modo.
Na minha opinião, o que os dados arqueológicos mostram de forma absolutamente convincente é que a emergência desse comportamento simbólico entre os neandertais é anterior – e é anterior de vários milhares de anos – à mais antiga evidência fóssil ou arqueológica da presença de homens modernos na Europa, e portanto a explicação de aculturação não pode funcionar, tem de se arranjar outra.
E sobretudo, se tivermos em conta que esses objetos de adorno que aparecem no castelperronense, ou chatelperroniano, de França são completamente diferentes daqueles que caracterizam as mais antigas culturas simbólicas em África ou no Próximo Oriente. Em África, os mais antigos objetos de adorno que se conhecem são conchas marinhas, de caracol marinho, que existe nas costas da África do Sul e que aparece perfurado, como de um colar ou de um adorno de outro tipo, numa gruta chamada Blombos, na África do Sul, com uma cronologia de uns 75 mil anos.
Vamos a encontrar depois, no Próximo Oriente, num abrigo ou gruta do Líbano e outro no sudeste da Turquia, muito próximo, em níveis com 40 mil, 45 mil anos de idade. O mesmo tipo de adorno, exatamente o mesmo. Uma espécie diferente, um caracol mediterrâneo, mas o mesmo tipo de concha. A diferença só é apreciativa para um especialista na classificação de moluscos marinhos.
Ou seja, durante 30 mil ou 40 mil anos, não há, em África ou no Próximo Oriente, em associação com o homem moderno, nenhum outro objeto de adorno que não sejam conchas marinhas, ou, em algumas zonas do interior da África, contas pequeninas, pequenos discos com alguns milímetros de diâmetro, feitos a partir de casca do ovo da avestruz. É tudo o que há.
Ora, na Europa, os adornos que aparecem entre os neandertais são completamente diferentes, são dentes de animais perfurados. São caninos de raposa, incisivos de bisonte [bisão] ou de bovídeos selvagens, são falanges de rena, são fósseis – ou então, quando são conchas marinhas, como no caso de culturas neandertalenses da Itália e da Grécia, são tubos de uma concha alongada, que eles cortavam nas duas extremidades e faziam uma espécie de tubo, que são muito diferentes de tudo que é conhecido entre as culturas simbólicas do homem moderno.
Essa diferença não é um problema de que uns faziam adornos com o que tinham à mão, e o que tinham à mão eram conchas marinhas, e outros tinham dentes de animais…
Não é mera questão de matéria-prima.
Zilhão – Não, todos eram caçadores, todos tinham a opção de fazer pendentes com dentes de animais, mas os homens modernos não o fizeram. E não o fizeram até chegarem à Europa. Os primeiros objetos de adorno desse tipo que se conhecem são posteriores ao contato com os neandertais, e pertencem à chamada cultura aurignacense. Essa cultura aurignacense representa precisamente a combinação, a junção de adornos que anteriormente só se conhecem entre os neandertais e adornos que anteriormente só se conhecem entre homens modernos. E ela data exatamente do momento do contacto, é a cultura que aparece a seguir ao momento do contacto.
Por isso, eu penso que a explicação mais lógica, em qualquer outro contexto que não estivesse tão viciado pelos preconceitos que no passado houve contra os neandertais, em qualquer outro contexto que se fosse falar do contacto entre duas culturas aborígenes da América do Sul, do Brasil, por exemplo, ou da América do Norte numa situação arqueológica desse tipo, a interpretação é óbvia. A cultura aurignacense representa a fusão de duas culturas, na qual uma delas contribuiu com seu componente.
Portanto, vejo que, em vez de aculturação – a aculturação é cronologicamente impossível – o que há que explicar é o padrão que vemos no aurignacense como mais uma prova, juntamente com a prova genética e a prova dos fósseis, de que do contato resultou uma miscigenação também ao nível da cultura, não só da biologia.
E no nível dos utensílios de pedra não há vestígios, aparentemente não se vê nenhuma contribuição neandertal, o aurignacense é muito diferente do castelperronense. Da fusão resultou uma cultura em que a tecnologia da pedra é aquela trazida pelos homens modernos, mas em que a simbologia da representação do indivíduo ou do grupo social resulta de uma fusão de duas tradições diferentes, a dos modernos, remontando a 30 mil, 40 mil anos e a dos neandertais, mais recente, mas com toda a probabilidade, tendo emergida a neandertal de forma independente.
Mas fala-se muito de uma “Grande Explosão Criativa” na fabricação de artefatos, surgimento da arte e do comportamento simbólico etc. na Europa desse período. Diante desses dados o sr. diria então que há uma aura de mito em torno dessa explosão? Ela teria sido muito menos repentina do que se diz?
Zilhão – O problema com esse conceito da explosão criativa é que ele amalgamava processos que, vistos com a cronologia mais refinada, mais precisa que temos hoje em dia, nós sabemos que ocorreram de forma escalonada, e não simultânea.
Há um elemento novo, que se tenta amalgamar com essa história dos objetos de adorno, que é a arte figurativa. Mas ela, ao contrário do que muitas vezes se diz, não aparece ao mesmo tempo. Ela data do final do período aurignacense, mais de 5.000 anos após o contacto. São as estatuetas de marfim das jazidas do sul da Alemanha e a arte parietal [pintada ou gravada em paredes de caverna] da gruta de Chauvet, em França, da ordem dos 31 mil, 32 mil anos. Não há nada mais antigo do que isso. Parece ser algo que surge relativamente tarde e relativamente de repente. E há que ter uma explicação para isso.
Mas, dada a cronologia do processo, a arte figurativa não é algo que possa ser considerado uma propriedade dos humanos modernos que chegavam à Europa, que era um sintoma do que eles tinham e os outros não tinham, e por isso acabaram por predominar. Utilizar a arte figurativa para raciocinar sobre o que aconteceu no momento do contacto é a mesma coisa que nós estarmos a utilizar a invenção dos computadores, ou das apresentações Powerpoint, para explicar o que aconteceu na Babilônia há 5.000 anos.
Isso é o mais intrigante, e o mais difícil de explicar: qual o gatilho desses eventos, desse aparecimento da capacidade simbólica que surge “de repente”.
Zilhão – Penso que a explicação virá a ser encontrada no interior de uma família de explicações que têm que ver com a demografia e a organização social. Neste caso, eu penso que essas coisas aparecem quando se tornam necessárias. Ora, o que são os objetos de adorno? São formas de identificação da pessoa como pessoa, do grupo etário a que pertence, o estatuto social que tem, ou a etnia com a qual tem a lealdade.
Ora, esse tipo de necessidade só existe em sociedades onde, por um lado, existe a probabilidade de no cotidiano virmos a encontrar outra pessoas que nunca conhecemos, nunca vimos, nem sequer falam a mesma língua que nós.
Quando isso acontece, a existência de adornos que transmitem instantaneamente uma informação sobre a pessoa se tornam um passaporte ou um documento de identidade. Esses elementos, então, traduzem a emergência de patamares de densidade populacional que criam situações em que a identificação é muito importante.
A explicação da arte tem a ver com o mesmo tipo de fenômenos, mas num patamar ainda mais elevado, em que aparecem questões ligadas à apropriação do território, na qual o território, por meio dos antepassados míticos ou totêmicos, pertencem a esta gente e não àquela. E se não apareceu antes, é porque não fazia falta (risos).
A explicação alternativa é que essas coisas não apareciam porque a humanidade não tinha a capacidade cognitiva para isso. Mas se vamos por esse caminho diremos que os computadores também só apareceram no século 20 porque antes a humanidade não tinha a capacidade cognitiva – pelo contrário, a prova de que o inventou é que tinha a capacidade cognitiva para o fazer anteriormente.
Deixei a questão mais complicada para o final. Na opinião do sr., que tipo de mente tinham os neandertais? Era uma mente fundamentalmente igual à nossa?
Zilhão – (Suspiro) Como arqueólogo, só posso dizer que os dados não suportam o ponto de vista de que a mente neandertal e a dos humanos modernos funcionassem de maneira diferente. Não há qualquer prova de que isso fosse assim. Agora, a gente não pode viajar no tempo, só podemos raciocinar com base no que chegou até nós, então certeza absoluta nunca vamos ter.
A especulação sobre possíveis diferenças é legítima, até interessante. Agora, como tudo que tem a ver com o conhecimento, há que distinguir entre o que é ciência e o que é especulação. Se eu for escrever um artigo científico, só posso dizer que não há qualquer diferença visível. Mas, se eu tiver a intuição de que uma diferença existe, é inteiramente legítimo que defenda esse ponto de vista, mas devo fazê-lo num romance, numa novela, ou num filme de ficção científica, ou de ficção pré-histórica (risos).
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Motivação

Ocasionalmente — muito ocasionalmente — eu me pergunto por que eu entrei nessa. Ah, foi por isso:
“Examinando os últimos 30 anos, ele sentiu que podia dizer que seu estado de espírito mais permanente, ainda que muitas vezes encoberto ou suprimido, tinha sido desde a infância o desejo de voltar. De caminhar no Tempo, talvez, como os homens caminham em longas estradas; ou de examiná-lo, como os homens podem ver o mundo de uma montanha, ou a terra como um mapa vivo debaixo de uma aeronave. Mas, de qualquer modo, ver com olhos e ouvir com ouvidos: ver a face de terras antigas e mesmo esquecidas, contemplar os homens de antanho caminhando e ouvir suas línguas tal como eles as falavam, nos dias antes dos dias, quando falas de linhagem esquecida eram ouvidas em reinos há muito destruídos nas costas do Atlântico.”
J.R.R. Tolkien, claro — em “The Lost Road and Other Writings” (a tradução é minha). Valeu, Professor. Daqui a pouco eu volto.
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Neandertais: simplesmente um luxo. Ou não?

conchaneandertal.jpgResearchBlogging.orgNão é de hoje que eu acompanho as peripécias de João Zilhão, arqueólogo português de sobrenome aparentemente piada pronta que, na verdade, é um dos sujeitos mais batalhadores e inteligentes a estudar a transição de neandertais para humanos modernos na Europa paleolítica. Zilhão defende, entre outras coisas, que o abismo de capacidade mental entre os Homo sapiens e nossos primos neandertais era bem menor do que se costuma acreditar. Agora, ele parece ter conseguido a evidência definitiva disso: a invenção independente de adornos corporais por essa espécie europeia de hominídeo.
Grife na sua cabeça a palavra “independente” da frase acima, porque já se sabe há tempos que ao menos alguns neandertais andavam por aí com colares feitos de dentes de animais. Trata-se da chamada cultura chatelperroniana, assim batizada por causa do sítio francês onde ela foi detectada. A questão, porém, é que a cultura chatelperroniana parecia coincidir temporalmente com a chegada dos primeiros humanos modernos ao continente europeu.
Os defensores da supremacia H. sapiens usavam esse dado para argumentar que se tratava de pura imitação pós-contato: vendo seus primos anatomicamente modernos (o termo politicamente correto é esse) já adotando adornos com valor simbólico, os neandertais teriam simplesmente se aculturado, copiando a ideia.
Rebeldia
Zilhão, que hoje trabalha na Universidade de Bristol (Reino Unido), contesta isso há tempos. Num artigo recente na revista científica “PNAS”, ele e seus colegas conseguiram achar indícios de adornos corporais no sítio neandertal de Cueva de los Aviones, na região espanhola de Múrcia. A datação é clara: cerca de 50 mil anos — definitivamente anterior ao contato entre as duas espécies de hominídeos, já que os humanos modernos só foram dar as caras na Europa Ocidental em torno de uns 35 mil anos atrás, e talvez ainda mais tarde na Espanha.
Os indícios? Conchas. Conchinhas dos gêneros Acanthocardia e Glycymeris que parecem ter sido perfuradas para montar colares. É exatamente o mesmo tipo de evidência que acompanha os sítios arqueológicos de humanos modernos e documentaria o surgimento de capacidade simbólica — como a capacidade de usar adornos para reforçar sua aparência ou status. De mais a mais, há sinais da aplicação de pintura sobre as conchas.
Tudo interessantíssimo, mas é importante mencionar um senão que andou não aparecendo nas reportagens sobre o tema. Não deu para comprovar categoricamente que os buracos nas conchas foram feitos por mão humana (ou quase humana…). Em tese, poderiam ser de origem natural, de forma que as conchas teriam sido carregadas já prontas para os abrigos habitados pelos neandertais.
Resta saber o que os defensores da supremacia cognitiva dos humanos modernos dirão sobre os achados.
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Zilhao, J., Angelucci, D., Badal-Garcia, E., d’Errico, F., Daniel, F., Dayet, L., Douka, K., Higham, T., Martinez-Sanchez, M., Montes-Bernardez, R., Murcia-Mascaros, S., Perez-Sirvent, C., Roldan-Garcia, C., Vanhaeren, M., Villaverde, V., Wood, R., & Zapata, J. (2010). Symbolic use of marine shells and mineral pigments by Iberian Neandertals Proceedings of the National Academy of Sciences, 107 (3), 1023-1028 DOI: 10.1073/pnas.0914088107
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A ética paleolítica de “Avatar”

avatar.jpg A trama é batida, os heróis e vilões são unidimensionais e maniqueístas — e, mesmo assim, “Avatar” me fisgou. Totalmente, na verdade. Não sei se estou só tentando racionalizar a resposta emocional ao filme, que me fez chorar mais de uma vez, mas a impressão que eu tenho é que James Cameron pode ter errado no varejo, mas acertou em cheio no atacado. E um dos grandes, profundos acertos (o outro é o assombro da biodiversidade pandoriana) atende por um nome cunhado pelo especialista em mitologia Joseph Campbell (1904-1987): a ética paleolítica.
O mais adequado talvez seja dizer “a ética e a religiosidade paleolítica”, porque a dimensão espiritual é inseparável da moral nesse conceito. Resumindo numa frase de efeito: nós (OK, OK, ao menos eu, que sou católico) agradecemos a Deus pelo bife no prato; os povos que seguem — ou seguiam, na imensa maioria dos casos — a ética paleolítica agradecem AO ANIMAL por “se deixar” ser comido.
É exatamente essa cena que vemos quando Neytiri (Zoe Saldana) ensina o humano-transformado-em-Na’vi Jake Sully (Sam Worthington) a caçar. É claro que, na caçada ritualizada, existe algo de feitiço apotropaico — palavrinha afrescalhada que significa “afastar o mal”. A ideia é, em parte, apaziguar o espírito da presa para que ela não se vingue do caçador. Mas não é só isso.
A ética paleolítica, a única que a nossa espécie conheceu até o advento da agricultura 10 mil anos atrás, é típica de povos que dependem profundamente do conhecimento e da interação íntimos com outras espécies para sobreviver. Não que seja uma fórmula mágica: povos caçadores-coletores NÃO são bons selvagens, e são perfeitamente capazes de cometer hecatombes ecológicas, como o fim da megafauna (os grandes mamíferos da Era do Gelo) na Austrália e nas Américas sugere.
Mesmo assim, quando a relação entre a terra e a gente que segue (seguia?) a ética paleolítica se estabelece no longo prazo, algo que pode ser chamado de equilíbrio com alguma justiça acaba emergindo. E não se trata de um modo de vida nasty, brutish and short (“nojento, brutal e curto”), como se costumava dizer. Perto dos camponeses pobres do planeta até os começos do século XX, que perfaziam a imensa maioria da população “civilizada”, os caçadores-coletores eram mais saudáveis de corpo e, ouso dizer, de mente.
Voltando a mais uma cena do filme, para terminar: não pude conter um frêmito de emoção quando vi o corpo de um Na’vi, em posição fetal, ser coberto de flores numa cova rasa. Num inverno, anos atrás, eu estava lado a lado com os arqueólogos que trouxeram de volta à luz do dia um “brasileiro” de 8.000 anos na mesmíssima posição, à sombra de um paredão rochoso de Minas. Faz diferença poder chamar a terra de mãe, pensei.
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Peitões da Idade da Pedra

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ResearchBlogging.orgAlgumas coisas nunca saem de moda. Quem reclama da onda das mulheres-fruta talvez se console com o fato de que a preferência por moças, digamos, avantajadas já existia há 40 mil anos, a julgar pela estatueta de uma “Vênus gordinha” alemã, cuja descrição acaba de ser publicada na revista “Nature”.
Como explico na reportagem abaixo, que saiu nesta manhã no G1, trata-se da mais antiga escultura produzida por mãos humanas — e provavelmente também a mais antiga forma de arte figurativa, na qual há uma tentativa de reproduzir a realidade. (Por incrível que pareça, a arte abstrata é mais antiga; veja o post anterior.)
Mas é claro que a gente precisa qualificar um pouco a afirmação acima. “Reproduzir” qual realidade, cara-pálida? É muito difícil especular sobre a função de um objeto como a Vênus de 40 mil anos numa cultura desaparecida que não sabia escrever. Os arqueólogos não vão muito além de uma vaga proposta de “simbologia da fertilidade” (fora o fato óbvio de que havia uma argolinha no topo da estatueta, o que indica que ela provavelmente era portátil).
Mulher ideal?
Correndo o risco de especular além da conta, acho que dá para ir um pouco mais longe. Graças a outros achados um pouco mais recentes na mesma região, a Suábia (sudoeste da Alemanha), sabemos que os povos do Paleolítico Superior tinham uma capacidade de raciocínio abstrato e imaginativo comparável ao das populações tradicionais de hoje.
Eles também produziam, por exemplo, estatuetas teriantrópicas — seres humanos com características animais, como um homem com cabeça de leão, por exemplo. Pode ser que essa seja a representação de um xamã, ou seja, um mago-sacerdote que, segundo a crença de muitos caçadores-coletores, consegue transitar entre o mundo dos humanos, dos animais e dos espíritos.
Diante dessa capacidade conceitual complexa, acho bem pouco provável que a mulher-fruta do Paleolítico representasse de fato o ideal de beleza do período, o tipo de mulher que eles considerariam “gostosona”. Minha impressão é que ela está mais para uma alegoria do feminino — uma criatura com os traços sexuais tão exagerados que serve como uma representação abstrata do papel da mulher como reprodutora. Alguma outra ideia para interpretar essa figura? Estou aberto a sugestões. Confiram a reportagem a seguir.
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O pessoal não estava nem aí para a ditadura da magreza no Paleolítico, a julgar pelo físico cheinho (para dizer o mínimo) das mulheres representadas pelos artistas de 40 mil anos atrás. Essa é a idade do que parece ser a mais antiga escultura feita por mãos humanas, encontrada na Alemanha, e que retrata um corpo feminino de formas volumosas e estilizadas.
O achado foi descrito por Nicholas J. Conard, da Universidade de Tübingen, em artigo na edição desta semana da revista científica britânica “Nature”. Trata-se de mais um clássico golpe de sorte arqueológico: os caquinhos de marfim de mamute lanoso (seis pedaços no total) que compõem a figura foram encontrados, em parte, espalhados durante a escavação e, em parte, peneirados de sedimentos com a ajuda de água. A figura pequenina (veja a foto acima para ter uma ideia da escala) ainda está incompleta, mas Conard conseguiu remontar a estatueta com bom grau de segurança mesmo assim.
Não é a primeira vez que a caverna de Hohle Fels, na Suábia (sudoeste da Alemanha), deixa os arqueólogos de boca aberta. Em 2003, o próprio Conard, com outros colegas, tinha apresentado o que então eram as mais antigas esculturas do mundo — animais como cavalos e aves –, com idade estimada de 33 mil anos. Agora, eles parecem ter se superado
A mera antiguidade da estatueta é importante sem dúvida, embora haja algum grau de incerteza em relação à datação, que foi feita por materiais orgânicos — carvão, por exemplo — associados ao objeto. O que realmente intriga qualquer um são as características da obra, que antecipam em até 10 mil anos uma “mania” dos artistas do Paleolítico Superior, a produção de pequenas “Vênus gordinhas”.
Excesso de gostosura
Em comum com essas obras bem posteriores, a “Vênus de Hohle Fels” tem as características sexuais muito exageradas, como o busto volumoso “escapando” das mãos, a barriga nem um pouco sarada e a ênfase na vagina — o escultor primitivo se deu ao trabalho de representar até os grandes lábios da vulva.
Por outro lado, fora a óbvia espessura, os membros não têm muitos detalhes, e a figura praticamente não conta com uma cabeça — ela parece ter sido transformada num simples anel com buraco, o que leva o arqueólogo alemão a sugerir que a estatueta era carregada. Como um amuleto, talvez?
Essa é a grande questão. Muitas teorias sobre a arte do Paleolítico apostam que as “Vênus gordinhas” são “ídolos de fertilidade”, formas de cultuar a figura feminina exagerando seus atributos sexuais. Como os caçadores-coletores da Idade do Gelo não sabiam escrever — embora, sendo humanos anatomicamente modernos, certamente fossem capazes de falar –, a ideia provavelmente continuará sendo apenas um palpite bem formulado.

Lançando luz sobre artefatos do passado

bannerluz.jpgPouca gente (fora cientistas, claro; bom, às vezes nem eles…) tem estômago pra ficar pensando em metodologia e ferramentas técnicas diante de uma descoberta realmente sensacional. Mas nunca é demais lembrar que, sem essas coisas aparentemente chatinhas, nenhuma boa descoberta acontece, fora raros golpes de sorte. Por isso, como parte da nossa blogagem coletiva sobre luz, resolvi abordar rapidamente um dos métodos de datação mais legais e pouco conhecidos em arqueologia (e outras ciência do “tempo profundo”, claro): a termoluminescência.
Essa técnica, junto com sua “irmã gêmea”, a datação óptica, quebra um galhão em contextos nos quais o arqueólogo ou paleoantropólogo dá o azar de não ter à mão matéria orgânica para datar. E, sem matéria orgânica — carvão, osso, conchas etc. –, adeus possibilidade de usar o tradicional método do carbono-14, o qual depende, claro, da presença dessa forma instável do elemento carbono em matéria anteriormente viva. (Aliás, nota mental: explicar a metodologia do carbono-14 em post futuro.)
Portanto, sem restos desse tipo (imaginemos que você só achou ferramentas de pedra), o que o sujeito faz? Senta e chora? Não, graças à termoluminescência. Se houver indícios de que essas ferramentas foram jogadas numa fogueira, ou passaram um tempo de baixo do sol quente, ou se as amostras a datar são representadas por utensílios de cerâmica, nem tudo está perdido.
O que acontece é que minerais como os que compõem uma ponta de lança ou um vaso tupi possuem uma estrutura microscópica de cristal. Isso sugere que essa estrutura é ordenadíssima, e pode ser mesmo, mas volta e meia aparecem impurezas e imperfeições cuja ação funciona como “armadilhas” para os elétrons do cristal. Com o passar do tempo, aumenta a quantidade de elétrons aprisionados nessas armadilhas microscópicas.
Acontece que, quando um objeto é submetido a calor ou luz intensos, essas armadilhas são “zeradas” e os elétrons voltam para onde deveriam estar na estrutura cristalina, liberando fótons — isso mesmo, partículas de luz. Portanto, quando o vaso de cerâmica foi produzido originalmente, ou quando as ferramentas caíram no fogo do acampamento, é como se seu relógio tivesse zerado, criando, portanto, um período inicial a partir do qual determinar a idade do objeto. (É o equivalente da morte no caso do carbono-14: quando alguém morre, seu organismo cessa de absorver carbono-14, tendo, portanto, uma proporção fixa do elemento, que daí pra frente só diminui.)
Pois bem: em laboratório, basta esquentar a amostra ou iluminá-la com força e observar a energia luminosa que vem do objeto — no caso da datação óptica, luz ultravioleta. A quantidade de fótons é correspondente à quantidade de elétrons antes aprisionados, que corresponde, por sua vez, à idade do objeto. O limite da técnica é de 230 mil anos — bem melhor que os cerca de 50 mil anos do carbono-14.
Objetos como a mais antiga forma de arte humana — o bloco de pedra de Blombos, na África do Sul, com 77 mil anos (abaixo) — foram datados com ajuda dessa técnica.
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