Podcast especial: a tragédia do Butantan

Você que nunca ouviu as vozes maviosas (adjetivo empregado pela última vez por Monteiro Lobato em algum momento da década de 1940) do pessoal do ScienceBlogs, inclusive a minha, pode conferir esse bálsamo para seus ouvidos no podcast especial que preparamos sobre a tragédia da destruição da coleção de serpentes e aracnídeos do Instituto Butantan.
Basta clicar aqui. Agradecimentos aos nobilíssimos colegas Igor Santos, Eduardo Bessa e Luiz Bento. Bom apocalipse ofídico pra você.
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Mais uma resenha de “Além de Darwin”

O amigo e psiquiatra (não meu, esclareço!) Daniel Barros fez a gentileza de resenhar meu filhote “Além de Darwin”. Confira a resenha clicando aqui. Pra quem se interessar, a promoção continua: receba o livro com dedicatória, autógrafo, desconto e frete grátis, bastando, para isso, perguntar-me como no endereço reinaldojoselopes@hotmail.com. Cheers!
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Neandertais ranzinzas

A semana passada era pra ter sido a semana neandertal aqui no blog. Falta absoluta de tempo impediu isso. Não que o tempo tenha ficado menos escasso, mas começo a colocar aos pouquinhos algumas repercussões divertidas ainda ligadas ao genoma dos neandertais. Veja, por exemplo, as respostas deliciosamente ranzinzas de Erik Trinkaus, antropólogo da Universidade Washington em Saint Louis (EUA), sobre o tema.
Velho parceiro do arqueólogo português João Zilhão e true believer na hibridização entre humanos modernos e neandertais, ele basicamente rosnou diante das minhas perguntas.
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O que o sr. achou das conclusões do genoma? Sente-se vingado?
Eles finalmente conseguiram achar evidências daquilo que se sabe há muito tempo: os neandertais e outros humanos arcaicos foram absorvidos de forma variável nas populações humanas modernas em expansão. Nunca precisei do apoio deles, então não me sinto vingado, mas talvez agora possamos ir além de “quem estava fazendo sexo com quem no fim do Pleistoceno”.
Qual sua visão sobre a ideia de que o cruzamento aconteceu no Oriente Médio?
A interpretação deles, ligada a um cruzamento antigo no sudoeste da Ásia, está baseada em supostas variantes neandertais em dois humanos modernos do leste da Ásia. Isso, para colocar as coisas em termos educados, é uma lógica absurda. Os próprios dados deles sobre DNA mitocondrial “neandertal” na Sibéria contradiz isso. Não há nenhum DNA antigo obtido de qualquer outro lugar do leste da Eurásia, então não sabemos se essas variantes existiam entre humanos arcaicos tardios. Portanto, eles não têm a menor ideia de onde e quando a mistura aconteceu levando em conta a amostragem deles de 5 (sim, cinco) humanos vivos e três (sim, 3) fragmentos neandertais de um sítio da Croácia. Trata-se meramente do preconceito da Europa Ocidental contra os neandertais europeus aparecendo outra vez.

Guia arqueologicamente incorreto da história do Brasil: a réplica

And so it begins. Meu amigo Leandro Narloch leu a crítica sobre seu livro, o best-seller “Guia politicamente incorreto da história do Brasil”, aqui mesmo no Carbono-14, e replicou no texto abaixo, que tenho o prazer de reproduzir aqui. O debate está ficando interessante. Já aviso ao Narloch que vem tréplica por aí 😉 Leiam abaixo a resposta dele.
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Quando o Reinaldo José Lopes me contou que preparava uma crítica metendo o cacete no capítulo do Guia sobre os índios, eu tremi. O cara é um dos melhores repórteres de ciência do Brasil – domina de supercordas a seleção natural, tem um texto alegre e livre de clichês de ciência, o que é bem raro nessa área. A crítica que ele postou semana passada tem observações interessantes, mas, para meu alívio, não é tão devastadora quanto ele prometeu. Abaixo acato alguns pontos e ataco outros.
O Reinaldo me acusa principalmente de ter feito uma “mistureba de períodos e situações coloniais”, omitindo o fato de os portugueses, depois de bem instalados no Brasil, promoverem caçadas, guerras e escravizarem os índios. Isso é injusto. Três ou quatro vezes o capítulo deixa claro que houve caçadas, escravidão indígena e extermínio deliberado de índios por europeus. Passei longe de negar isso tudo. Por que não dei detalhes? Porque o livro não é um guia neutro sobre a história do Brasil: é um guia politicamente incorreto. Como diz o título e a apresentação, trata-se de uma obra parcial, que mostra só um lado. Se eu me dedicasse a chutar cachorro morto e repetir o que as pessoas já sabem, trairia o projeto e teria talvez duas dúzias de leitores.
Revelar esse outro lado não é só um exercício de polêmica. A maior novidade da história do Brasil hoje é mostrar que nem sempre os indivíduos se enquadram em grandes esquemas sociológicos ou modelos de dominação. Mesmo diante de um número menor de possibilidades, os índios faziam escolhas diversas, como qualquer ser racional. Os índios coloniais, mesmo sem ser maioria (não digo no livro que são maioria, como o Reinaldo sugere) mostram que é preciso contar uma história com pessoas, não com robôs movidos por interesses de classe.
Ainda que a proposta seja mostrar só o outro lado, o Reinaldo está certo quando me acusa de omitir que, de acordo com o Retrato Molecular do Brasil, 0% dos brasileiros que se consideram brancos tem Cromossomo Y indígena, ou seja: índios homens não deixaram descendentes entre os brancos do Brasil. Se eu cito os dados da pesquisa, então deveria mostrá-la inteira – prometo acrescentar isso na próxima edição. Com devidas ressalvas. O estudo analisou o DNA de brasileiros que se consideram brancos. Não os mestiços, os negros, os caiçaras, os mamelucos ou os índios urbanos da Amazônia (região com 20 milhões de habitantes). Entre brancos, o mais esperado seria encontrar uma genética… branca, e não indígena. Por isso foi uma surpresa perceber que 30% dos brancos brasileiros vêm de linhagens maternas ameríndias. Apesar dessa limitação do estudo, o Reinaldo se baseia nele para dizer que “os homens indígenas, de repente, pararam de se reproduzir”. Eis aí o que ele chama de maquiar e botar minissaia na evidência.
Mas a pergunta continua: por que os índios deixaram tão menos descendentes que as índias? É aí que a crítica do Reinaldo desce uns dez degraus de qualidade e chega a um trecho constrangedor:
Será que os portugueses eram tão mais gostosos (ui!) que os índios que as índias magicamente resolveram ter filhos só com europeus assim que Cabral pôs os pés aqui? É claro que não. Aconteceu o que acontece com todas as populações conquistadas desde que o mundo é mundo, das sagas bíblicas às guerras de Alexandre: os homens são mortos e as mulheres, emprenhadas.
É sintomático falar de Alexandre para explicar por que os índios homens deixaram tão poucos descendentes. Para a escravidão negra, um exemplo equivalente seria o Remador de Ben-Hur: os escravos acorrentados, obrigados a remar enquanto levam um carrasco maldoso grita: “Reeeemem”! Estamos acostumados a pensar o passado brasileiro a partir desses modelos clássicos, mas deveríamos nos esforçar para deixá-los de lado. A nova história do Brasil mostra justamente que os modelos clássicos não nos servem. Como costuma perguntar o historiador João Fragoso, como é que se pode explicar, pelos modelos clássicos de escravidão, que uma parte dos escravos de um engenho ganhasse armas do próprio senhor para proteger a fazenda?
É simplista e obsoleto olhar a história do Brasil como as guerras e conquistas clássicas. É melhor deixá-las aos filmes de Hollywood ou para o Cecil B. deMille.
A história sexual entre europeus e índias deixa isso evidente. No modo de pensar de muitas tribos, alianças militares só existiam se fossem acompanhas de alianças de sangue: só parentes eram aliados políticos. Do mesmo modo, o casamento não era uma instituição privada, baseada no amor e na intimidade do casal, mas parte da estrutura social da tribo. “O casamento entre os guaranis determinava, ao mesmo tempo, todas as relações que no Ocidente se conhecem como econômicas e todas as relações chamadas sociais”, diz o Jorge Caldeira no livro Mulheres a Caminho do Prata. Em São Paulo, em Pernambuco, no Paraguai, índios só se aliavam depois que suas filhas casassem com os europeus. Um exemplo de europeu que por influência indígena teve várias esposas índias é Jerônimo de Albuquerque, cunhado de Duarte Coelho, o primeiro donatário de Pernambuco. Os dois precisavam do trabalho dos índios para mover os engenhos. Como os nativos preferiam derrubar pau-brasil, os portugueses tiveram que conquistar o apoio das tribos por meio de casamentos. Jerônimo de Albuquerque teve tantos filhos com índias que ganhou o nome de “Adão Pernambucano”.
Vejam como esse caso vai além das batalhas gregas e da lógica “os homens são mortos e as mulheres, emprenhadas”. Vejam como a história perde se nos limitarmos a aqueles modelos simplórios. É isso que eu tentei dizer no livro – e não negar caçadas e extermínios.

Outra crítica é sobre o Domingos Jorge Velho, bandeirante paulista que destruiu o Quilombo de Palmares. O Reinaldo se baseia nos estudos do filólogo Heitor Megale para mostrar que, ao contrário do que defendo no livro, o bandeirante falava, sim, português. Eu não conhecia essas pesquisas, agradeço o Reinaldo pela dica. Mas peraí. O estudo do Heitor Megale é sobre a língua escrita no século 17, não a língua falada. Está baseada em documentos de cartório e cartas oficiais. Em mensagens assim, é óbvio que os textos não seriam em tupi-guarani. Certamente se usava o português, e um português formal, puxado para trás. Numa época em que poucos sabiam escrever e raros tinham naturalidade com a escrita, era muito comum esbanjar eruditismo nos textos. Escrever em tupi-guarani? Jamais.
Ok, talvez o Jorge Velho falasse algum português, mas de que qualidade? O bispo de Olinda, que encontrou Jorge Velho no fim do século 17, diz que ele usava um tradutor: “Este homem é um dos maiores selvagens com que tenho topado: quando se avistou comigo trouxe consigo língua, porque nem falar sabe nem se diferencia do mais bárbaro tapuia; […] lhe assistem sete índias concubinas”. Deve haver muita opinião nesse testemunho, mas é apressado descartá-lo como “preconceito de classe”, como diz o Reinaldo (o que, aliás, é um tipo de comentário meio velho, comum no Brasil uns 60 anos atrás, quando se criticava o Stálin). Eu não descartaria tão rapidamente o depoimento do bispo, já que encaixa no que se sabe hoje sobre estilo de vida de São Paulo nos séculos 16 e 17. Será que o “língua” servia para traduzir dois tipos de português? Difícil acreditar nisso. No século 17, entre tupis, jês, franceses, holandeses, espanhóis, angolanos, falar outro português deveria ser o menor dos problemas.

O Reinaldo termina o texto dizendo que “há picaretas suficientes na história do Brasil pra tese do livro ficar em pé, sem mudança nenhuma, caso esse capítulo não existisse”. Não sei sobre quem ele está falando. A nossa história está sendo muito bem contada nos últimos dez, vinte anos. O Guia está baseado em trabalhos de pesquisadores excelentes: Francisco Doratioto, Manolo Florentino, Alberto da Costa e Silva, Guiomar de Grammont, Maria Regina Celestino de Almeida, Elio Gaspari. Se o Reinaldo prefere fechar os olhos à nova história do Brasil e ficar com os manifestos de esquerda que predominavam até os 80, tudo bem. É uma decisão pessoal.

Indiana Jones and the Song of Theme

É, eu sei que é véio bagarai, mas toda vez que eu vejo eu simijo de rir. Na tela:

Eu acho que os geniais versos “Want adventure? Come to me/ I’m professor of archaeology” batem tudo o que Shakespeare escreveu, ever. Tipo, fácil. E atenção também para a sutileza do “Donation?” e do “Everybody dies but me” no final :oP
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Show do Zilhão

zilhones.jpgDireto do túnel do tempo, e em tempos de genoma neandertal (quase) completo, achei que seria legal compartilhar com vocês uma entrevista que fiz na era G1 com o arqueólogo português João Zilhão, da Universidade de Bristol. Presciente, Zilhão falava há mais de uma década da hibridização entre neandertais e humanos, e levou muita incredulidade na cacunda até ser vingado pelos dados recém-publicados na “Science”.
Confira o papo ou, se preferir, ouça diretamente a gravação dele clicando aqui (como eu fiquei contente que isso ainda existe!).
Como alguém que estuda os artefatos, o registro arqueológico deixado pelos neandertais há muito tempo, professor, o que representa agora a possibilidade de ter nas mãos o genoma completo da espécie daqui a dois anos? E o sr. concorda com a idéia de que esses dados vão trazer informações que o registro arqueológico apenas é incapaz de revelar?
João Zilhão – Bom, eu não sou especialista em genética, e penso que o principal objetivo do estudo visando à reconstituição do genoma neandertal não é tanto o conhecimento dos neandertais em si mesmos, porque obviamente quando se seqüencia o genoma de um indivíduo está-se longe de poder estar seguro de até que ponto as variações que encontramos são representativas de toda a população ou toda a espécie à que ele pertence.
Mas o objetivo fundamentalmente é ter um termo de comparação que permita compreender melhor o genoma da humanidade atual. Há problemas de representatividade estatística, do material disponível das amostras, que fazem com que um estudo como este, pelo menos no horizonte tecnológico previsível, tenha um alcance limitado para o conhecimento e o estudo dos neandertais em si mesmos. Em todo caso, evidentemente, a confirmar-se a possibilidade técnica de fazer esta reconstituição, representa do ponto de vista tecnológico um feito impressionante, e dará seguramente informações interessantes, importantes para o estudo da evolução humana, e do sempre polêmico tema da relação entre os neandertais e o homem moderno, digamos assim.

Ainda em relação ao genoma, os primeiros dados parecem sugerir uma coisa que me pareceu muito intrigante, que é a suposta entrada de genes de humanos anatomicamente modernos no DNA neandertal, e aliás se arriscam até a dizer que haveria uma assimetria, no sentido de homens, do sexo masculino, anatomicamente modernos para mulheres neandertais. Eu gostaria de saber como o sr. vê essa possibilidade, porque parece o tipo de coisa que nós vemos acontecer em situações de contato entre povos diferentes, quando um desses povos leva a pior, digamos, como aconteceu na chegada dos europeus à América.

Zilhão – Bom, já como um primeiro ponto, registro com muito agrado que tenha apanhado esse pormenor, um parágrafo importante do artigo da “Nature”, que passou quase silenciado nos comentários que a respeito dele foram feitos na imprensa internacional. E é, do meu ponto de vista, a única coisa inovadora que há nesse artigo, porque, de resto, o que eles apresentam é uma estimativa do período de divergência que eram coisa já conhecida, já sabida.
Do ponto de vista dos resultados concretos o mais interessante é essa passagem. Que embora apresentada a título de especulação, é aparentemente suficientemente forte para que eles tenham arriscado a publicar nesse artigo. E é um resultado muito interessante porque vai ao encontro do que, com base no registro fóssil e no material arqueológico, e também com base no estudo do ADN [DNA] nuclear da humanidade atual, vem ganhando cada vez mais peso de uns cinco anos para cá, a noção de que, no momento do contato entre neandertais e modernos, como não podia deixar de ser, houve processos de miscigenação entre as duas populações.
A especulação avançada pela equipe do Päabo é que, nesse processo de miscigenação, terão sido mais freqüentes os casos de acasalamento entre homens, entre aspas, modernos, e mulheres neandertais do que o inverso, ou seja, o acasalamento entre homens neandertais e mulheres modernas. Bom, há que esperar pela confirmação. Se se confirmar que essa foi a regra geral, é interessante do ponto de vista da modelização da forma como o processo de miscigenação se deu, explicaria em particular por que é que não há ADN mitocondrial [que só é transmitido de mãe para filho] dos neandertais nas populações atuais.
Em todo caso, independentemente da direção predominante da troca, o importante é o facto do intercâmbio genético, independentemente do facto de ele ter sido sexualmente desequilibrado. Uma vez que estamos a falar da reprodução sexual, a partir do momento em que há cruzamento e há produção de descendência, significa que há recombinação do genoma dos dois lados, independentemente do que diz respeito à componente moderna ter sido predominantemente de origem masculina e a componente neandertal de origem feminina. O que é importante é que a descendência é necessariamente mista.
A não ser que nós especulemos que os mestiços resultantes desses cruzamentos não deixavam descendência fértil ou eles próprios só se cruzavam com neandertais puros, ou consigo mesmos, com outros mestiços, e que portanto nunca chegou a entrar um contributo genético neandertal nas populações modernas – o que é uma especulação que eu penso, enfim, desprovida de fundamento, completamente irrealista – a implicação é de que há genes neandertais que passaram para a humanidade moderna, e existe a possibilidade, ou é legítimo supor, que no presente sobreviveram alguns desses genes.
Mudando um pouco de assunto para o lado realmente arqueológico, parece ter havido muitas idas e vindas recentemente no debate sobre a convivência entre humanos anatomicamente modernos e neandertais na Europa, principalmente em relação à escala de tempo dessa convivência. Na sua opinião, com base nos dados que nós temos hoje, qual teria sido a ordem de grandeza temporal dessa convivência?
Zilhão – O que os dados parecem demonstrar cada vez mais é que esse período de convivência, na escala regional, terá sido muito curto. Eu sou da opinião que não pode ter demorado, dada a forma de funcionamento das sociedades de caçadores-coletores, e num quadro em que aceitamos a miscigenação como normal, não parece razoável esperar que as duas populações tenham convivido na mesma região sem se misturar. Portanto, a miscigenação, o acasalamento transformaria aquilo que era inicialmente duas populações separadas numa única população, herdando em proporções que há que estudar e podem ter variado, de lugar para lugar, percentagens diferentes de cada população.
E quando olhamos para as datações disponíveis, criticadas como deve ser e lidas como deve ser, rejeitando aquelas que por diversas razões não podem ser aceitas, o quadro que obtemos é bastante claro. É bastante claro até certo ponto porque a datação por radiocarbono tem uma margem de incerteza, e essa margem de incerteza é maior do que o período de coexistência, na escala regional, entre as duas populações.
Então, o que acontece? Vemos que os últimos neandertais e os primeiros modernos numa mesma região datam todos, por exemplo, da volta de 36.500 anos antes do presente, em anos de radiocarbono [que não correspondem exatamente aos anos de calendário]. Mas quando a gente diz “à volta de” queremos dizer um intervalo de tempo de mil anos. Ora, em mil anos, passa-se muita coisa. E quando se diz que é muito curto estamos a dizer que é da volta de mil anos. Mas, na verdade, utilizar “curto” para qualificar um intervalo de tempo dessa duração é um bocado forçar o sentido das palavras, mas é isso que quer dizer efetivamente.
Isso na escala regional. Não quer dizer que na escala continental não tenha havido regiões da Europa onde o processo do contacto foi, digamos assim, mais tardio, onde a chegada de grupos de homens modernos se deu significativamente mais tarde, tão mais tarde que o radiocarbono detecta a diferença, do que em outras regiões da Europa. É o caso, nomeadamente, da Península Ibérica.
O ponto de vista consensual da comunidade arqueológica de que houve uma sobrevivência, no conjunto da Península Ibérica, ao sul da depressão do rio Ebro, ou ao sul, mais ou menos, dos Pirineus – na província de Valência, Andaluzia, a Meseta, e portanto Portugal – até cerca de 30 mil, 32 mil anos de radiocarbono. O que é uma sobrevivência de pelo menos 5.000 anos a mais em comparação com o que se passa ao norte dos Pirineus, em França, na Romênia, na Itália ou na Europa Oriental.
Voltando à questão do contato e do sinal arqueológico que ele pode deixar, um dos fenômenos mais intrigantes do fim da Era do Gelo na Europa é o aparecimento da cultura chatelperroniana entre os neandertais, que parece mostrar o mesmo tipo de adornos, colares, cultura simbólica complexa que os humanos modernos mostravam. Muita gente vê isso como prova do contato entre os povos, até como uma forma de aculturação dos neandertais pelos modernos, mas até onde sei o sr. discorda. Qual seria então a melhor forma de explicar o fenômeno do chatelperroniano entre os neandertais?
Zilhão – Mais uma vez, é um problema empírico. É concebível, é legítimo supor que o aparecimento de objetos de adorno e de uma cultura simbólica entre os neandertais é o resultado de um processo de aculturação, mas para que isso acontecesse, nós temos de ter modernos, com sua própria cultura simbólica, nas imediações, no tempo em que começa esse fenômeno entre os neandertais. Por que do contrário não há aculturação – para haver aculturação, tem de estar situado ali, ao lado, na mesma época, grosso modo.
Na minha opinião, o que os dados arqueológicos mostram de forma absolutamente convincente é que a emergência desse comportamento simbólico entre os neandertais é anterior – e é anterior de vários milhares de anos – à mais antiga evidência fóssil ou arqueológica da presença de homens modernos na Europa, e portanto a explicação de aculturação não pode funcionar, tem de se arranjar outra.
E sobretudo, se tivermos em conta que esses objetos de adorno que aparecem no castelperronense, ou chatelperroniano, de França são completamente diferentes daqueles que caracterizam as mais antigas culturas simbólicas em África ou no Próximo Oriente. Em África, os mais antigos objetos de adorno que se conhecem são conchas marinhas, de caracol marinho, que existe nas costas da África do Sul e que aparece perfurado, como de um colar ou de um adorno de outro tipo, numa gruta chamada Blombos, na África do Sul, com uma cronologia de uns 75 mil anos.
Vamos a encontrar depois, no Próximo Oriente, num abrigo ou gruta do Líbano e outro no sudeste da Turquia, muito próximo, em níveis com 40 mil, 45 mil anos de idade. O mesmo tipo de adorno, exatamente o mesmo. Uma espécie diferente, um caracol mediterrâneo, mas o mesmo tipo de concha. A diferença só é apreciativa para um especialista na classificação de moluscos marinhos.
Ou seja, durante 30 mil ou 40 mil anos, não há, em África ou no Próximo Oriente, em associação com o homem moderno, nenhum outro objeto de adorno que não sejam conchas marinhas, ou, em algumas zonas do interior da África, contas pequeninas, pequenos discos com alguns milímetros de diâmetro, feitos a partir de casca do ovo da avestruz. É tudo o que há.
Ora, na Europa, os adornos que aparecem entre os neandertais são completamente diferentes, são dentes de animais perfurados. São caninos de raposa, incisivos de bisonte [bisão] ou de bovídeos selvagens, são falanges de rena, são fósseis – ou então, quando são conchas marinhas, como no caso de culturas neandertalenses da Itália e da Grécia, são tubos de uma concha alongada, que eles cortavam nas duas extremidades e faziam uma espécie de tubo, que são muito diferentes de tudo que é conhecido entre as culturas simbólicas do homem moderno.
Essa diferença não é um problema de que uns faziam adornos com o que tinham à mão, e o que tinham à mão eram conchas marinhas, e outros tinham dentes de animais…
Não é mera questão de matéria-prima.
Zilhão – Não, todos eram caçadores, todos tinham a opção de fazer pendentes com dentes de animais, mas os homens modernos não o fizeram. E não o fizeram até chegarem à Europa. Os primeiros objetos de adorno desse tipo que se conhecem são posteriores ao contato com os neandertais, e pertencem à chamada cultura aurignacense. Essa cultura aurignacense representa precisamente a combinação, a junção de adornos que anteriormente só se conhecem entre os neandertais e adornos que anteriormente só se conhecem entre homens modernos. E ela data exatamente do momento do contacto, é a cultura que aparece a seguir ao momento do contacto.
Por isso, eu penso que a explicação mais lógica, em qualquer outro contexto que não estivesse tão viciado pelos preconceitos que no passado houve contra os neandertais, em qualquer outro contexto que se fosse falar do contacto entre duas culturas aborígenes da América do Sul, do Brasil, por exemplo, ou da América do Norte numa situação arqueológica desse tipo, a interpretação é óbvia. A cultura aurignacense representa a fusão de duas culturas, na qual uma delas contribuiu com seu componente.
Portanto, vejo que, em vez de aculturação – a aculturação é cronologicamente impossível – o que há que explicar é o padrão que vemos no aurignacense como mais uma prova, juntamente com a prova genética e a prova dos fósseis, de que do contato resultou uma miscigenação também ao nível da cultura, não só da biologia.
E no nível dos utensílios de pedra não há vestígios, aparentemente não se vê nenhuma contribuição neandertal, o aurignacense é muito diferente do castelperronense. Da fusão resultou uma cultura em que a tecnologia da pedra é aquela trazida pelos homens modernos, mas em que a simbologia da representação do indivíduo ou do grupo social resulta de uma fusão de duas tradições diferentes, a dos modernos, remontando a 30 mil, 40 mil anos e a dos neandertais, mais recente, mas com toda a probabilidade, tendo emergida a neandertal de forma independente.
Mas fala-se muito de uma “Grande Explosão Criativa” na fabricação de artefatos, surgimento da arte e do comportamento simbólico etc. na Europa desse período. Diante desses dados o sr. diria então que há uma aura de mito em torno dessa explosão? Ela teria sido muito menos repentina do que se diz?
Zilhão – O problema com esse conceito da explosão criativa é que ele amalgamava processos que, vistos com a cronologia mais refinada, mais precisa que temos hoje em dia, nós sabemos que ocorreram de forma escalonada, e não simultânea.
Há um elemento novo, que se tenta amalgamar com essa história dos objetos de adorno, que é a arte figurativa. Mas ela, ao contrário do que muitas vezes se diz, não aparece ao mesmo tempo. Ela data do final do período aurignacense, mais de 5.000 anos após o contacto. São as estatuetas de marfim das jazidas do sul da Alemanha e a arte parietal [pintada ou gravada em paredes de caverna] da gruta de Chauvet, em França, da ordem dos 31 mil, 32 mil anos. Não há nada mais antigo do que isso. Parece ser algo que surge relativamente tarde e relativamente de repente. E há que ter uma explicação para isso.
Mas, dada a cronologia do processo, a arte figurativa não é algo que possa ser considerado uma propriedade dos humanos modernos que chegavam à Europa, que era um sintoma do que eles tinham e os outros não tinham, e por isso acabaram por predominar. Utilizar a arte figurativa para raciocinar sobre o que aconteceu no momento do contacto é a mesma coisa que nós estarmos a utilizar a invenção dos computadores, ou das apresentações Powerpoint, para explicar o que aconteceu na Babilônia há 5.000 anos.
Isso é o mais intrigante, e o mais difícil de explicar: qual o gatilho desses eventos, desse aparecimento da capacidade simbólica que surge “de repente”.
Zilhão – Penso que a explicação virá a ser encontrada no interior de uma família de explicações que têm que ver com a demografia e a organização social. Neste caso, eu penso que essas coisas aparecem quando se tornam necessárias. Ora, o que são os objetos de adorno? São formas de identificação da pessoa como pessoa, do grupo etário a que pertence, o estatuto social que tem, ou a etnia com a qual tem a lealdade.
Ora, esse tipo de necessidade só existe em sociedades onde, por um lado, existe a probabilidade de no cotidiano virmos a encontrar outra pessoas que nunca conhecemos, nunca vimos, nem sequer falam a mesma língua que nós.
Quando isso acontece, a existência de adornos que transmitem instantaneamente uma informação sobre a pessoa se tornam um passaporte ou um documento de identidade. Esses elementos, então, traduzem a emergência de patamares de densidade populacional que criam situações em que a identificação é muito importante.
A explicação da arte tem a ver com o mesmo tipo de fenômenos, mas num patamar ainda mais elevado, em que aparecem questões ligadas à apropriação do território, na qual o território, por meio dos antepassados míticos ou totêmicos, pertencem a esta gente e não àquela. E se não apareceu antes, é porque não fazia falta (risos).
A explicação alternativa é que essas coisas não apareciam porque a humanidade não tinha a capacidade cognitiva para isso. Mas se vamos por esse caminho diremos que os computadores também só apareceram no século 20 porque antes a humanidade não tinha a capacidade cognitiva – pelo contrário, a prova de que o inventou é que tinha a capacidade cognitiva para o fazer anteriormente.
Deixei a questão mais complicada para o final. Na opinião do sr., que tipo de mente tinham os neandertais? Era uma mente fundamentalmente igual à nossa?
Zilhão – (Suspiro) Como arqueólogo, só posso dizer que os dados não suportam o ponto de vista de que a mente neandertal e a dos humanos modernos funcionassem de maneira diferente. Não há qualquer prova de que isso fosse assim. Agora, a gente não pode viajar no tempo, só podemos raciocinar com base no que chegou até nós, então certeza absoluta nunca vamos ter.
A especulação sobre possíveis diferenças é legítima, até interessante. Agora, como tudo que tem a ver com o conhecimento, há que distinguir entre o que é ciência e o que é especulação. Se eu for escrever um artigo científico, só posso dizer que não há qualquer diferença visível. Mas, se eu tiver a intuição de que uma diferença existe, é inteiramente legítimo que defenda esse ponto de vista, mas devo fazê-lo num romance, numa novela, ou num filme de ficção científica, ou de ficção pré-histórica (risos).
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Quando Zeus encontra Buda

demétrio.JPGVocê deve estar se perguntando o que esse sujeito ao lado está fazendo com um nanoescalpo de elefante na cabeça. Sim, nanoescalpo, afinal nenhum elefante adulto de verdade tem uma cabecinha desse tamanho, sem falar nas presas. (Talvez um elefante com microcefalia?) No matter: conheça Demétrio I, rei que fundou o reino dos gregos na Índia (o atual Paquistão) na virada dos séculos III a.C. para II a.C.
Se você achava que nada mais maluco podia acontecer do que as vitórias de Alexandre no rio Indo, saiba que, depois de um refluxo do poder helênico na área, aventureiros gregos se converteram ao budismo e criaram ali um pequeno mas respeitado império, que durou até o começo da Era Cristã. Há até indícios de que a arte helenística influenciou a maneira como Buda passou a ser retratado nas estátuas indianas.
Os dizeres da moeda proclamam: “Demetriu Aniketu” ou “de Demétrio, o Invencível”. O apelido surgiu depois da morte do sujeito, mas é verdade que ele nunca foi derrotado em batalha.
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Guia arqueologicamente incorreto da história do Brasil

narloch.jpgAnda bombando há tempos nas listas dos mais vendidos o livro “Guia politicamente incorreto da história do Brasil”, de autoria do curitibano Leandro Narloch, amigo e colega de longa data. O Narloch já encomendou e editou textos meus, por exemplo, nas revistas “Superinteressante” e “Aventuras na História”. O que me põe numa posição incômoda: após ler o livro e encontrar algumas escorregadas grandes sobre os temas que eu trato aqui no Carbono-14, corro tanto o risco de perder o amigo quanto, quem sabe, alguns futuros frilas se me dispuser a criticar o conteúdo da maneira devida.
Bem, antes de fazer este post, comuniquei ao Narloch a minha intenção, de maneira a não pegá-lo desprevenido. Aproveito agora para convidá-lo a um post convidado aqui no blog caso queira contra-argumentar sobre o que escrevi aqui. De qualquer maneira, o comichão após ler o livro se tornou forte demais, porque acho perigoso os leitores comprarem certas afirmações do texto pelo seu valor de face. Vira desinformação. E não me senti à vontade para cruzar os braços.
O livro
Para quem não sabe, o “Guia” é dividido em capítulos temáticos — “Negros”, “Escritores”, “Samba”, “Comunistas” e muito mais — cujo objetivo declarado é desmontar os heróis de papel que a historiografia tradicional criou. A ideia é demolir os mitos históricos que não se sustentam e construir uma história do Brasil “sem mocinhos”.
Meu problema é justamente com o primeiro capítulo, “Índios”, no qual as informações trazidas pela arqueologia e disciplinas conexas mostram que o quadro traçado pelo Narloch é enviesado, quando não factualmente errado. Vamos por partes, como diria Jack.
“As tribos não apoiavam os colonos por alguma obediência cega. Seus líderes, que também participavam das bandeiras e das batalhas, estavam interessados na parceria para derrotar outras tribos.”
A frase faz parte da argumentação de que boa parte da destruição de tribos indígenas teria se dado pelas mãos de outros índios. Os portugueses, bem menos numerosos, teriam precisado oferecer vantagens para seus aliados indígenas, numa colaboração mais ou menos igual.
OK, não há como discutir a intensão participação indígena nas bandeiras, digamos. O problema é a mistureba de períodos e situações coloniais, como se tudo fosse a mesma coisa. Mesmo no início, as tribos só quiseram ajuda portuguesa porque estavam cientes da desproporção de poderio tecnológico entre os europeus e elas.
No entanto, conforme os núcleos coloniais foram se fortalecendo e ficando mais numerosos, a ajuda se tornou dispensável — tanto que os tupiniquins de São Paulo, antigos aliados, foram esmagados quanto ameaçaram se rebelar. E as tropas de choque indígenas das bandeiras do século XVII eram formadas largamente por indivíduos que eram tão escravos quanto os índios que eles iam capturar.
“O melhor exemplo é Domingos Jorge Velho, bandeirante paulista que destruiu o Quilombo dos Palmares. Filho de um europeu com uma índia, ele não falava português. Assim como quase todos naquela época, expressava-se na língua geral tupi-guarani.”
Errado. O grupo de Heitor Megale, filólogo da USP, estuda há anos o português falado no Brasil durante o século XVII, em especial os registros deixados por bandeirantes, e mostrou que Jorge Velho não só falava como escrevia (mal, vá lá) português. Deixou rabiscos de próprio punho. A lenda de que ele não arranhava a nossa língua foi propagada por um bispo do Nordeste que difamou Jorge Velho por puro preconceito de classe (tipo “isso aí que esse sujeito fala nem chega a ser português!).
“O interessante é que esses nobres senhores não eram descendentes de nenhum poderoso fidalgo português. O homem que criou a dinastia dos Souza de Niterói chamava-se Arariboia. Era o cacique dos índios temiminós, que ajudaram os portugueses a expulsar franceses e tupinambás do Rio de Janeiro.”
Aqui, o Narloch argumenta que a maioria dos índios não foi exterminada, mas se integrou pacificamente e de livre vontade, inclusive em cargos de mando, na população colonial. Ele cita inclusive dados interessantes sobre índios pintores, músicos, pedreiros e de outras profissões listados em censos de São Paulo, Rio e Minas nos séculos XVII e XVIII.
É significativo, no entanto, que ele não consiga citar nenhum outro caso de “dinastia fidalga” indígena além da família de Arariboia. Alguns mestiços, é verdade, também chegaram lá. Mas é difícil contestar o fato de que a imensa maioria dos indígenas “se integrou” à sociedade colonial como escravos ou camponeses e trabalhadores pobres. Qual a vantagem material que existe nisso em relação à vida tribal? Zero — voltaremos a isso mais tarde.
Além disso, no caso do litoral, essas tribos, há mais de um século, estavam aldeadas — reunidas em vilas comandadas por jesuítas e outros religiosos –, em avançado processo de conversão religiosa e transformação cultural, além de reduzidas em número por epidemias e guerras. Não admira que elas tenham se integrado com facilidade: a “cola” cultural e religiosa das sociedades indígenas já tinha ido para o saco havia muito.

“Pesquisas de ancestralidade genômica, que medem o quanto europeu, africano ou indígena um indivíduo é, sugerem que os brasileiros são em média 8% indígenas. (…) É pouco sangue indígena, mas não tanto pensando numa população de 190 milhões de habitantes. Se pudéssemos organizar esses genes em indivíduos cem por centro brancos, negros ou ameríndios, 8% dos brasileiros daria 15,2 milhões de pessoas, ou mais de quatro vezes a população indígena de 1500.”

Essa matemática não cola, a começar pelo fato de que, mesmo com esses indígenas “Frankenstein”, formados pela reunião arbitrária de DNA de corpos separados num só corpo, o crescimento “populacional” indígena teria sido inferior à metade do crescimento populacional do resto dos brasileiros nos últimos 500 anos (que foi da ordem de dez vezes).
Faltou se perguntar: por que só 8%? Não é porque o número inicial fosse baixo — ele era, afinal, o mais alto de todos. É preciso considerar outra possibilidade: reprodução diferencial positiva dos não-índios. Ou seja: ao menos certa parcela da população indígena tinha menos chances de se reproduzir – beeem menos. A resposta está no parágrafo seguinte, embora o Narloch não tenha conseguido vê-la.

“O número fica ainda maior se considerarmos como descendente de índios toda pessoa que tem o menor toque de sangue nativo. Em 2000, um estudo da Universidade Federal de Minas Gerais causou espanto ao mostrar que 33% dos brasileiros que se consideram brancos têm DNA mitocondrial vindo de mães índias. (…) Esses números sugerem que muitos índios largaram as aldeias e passaram a se considerar brasileiros.”

O termo “DNA mitocondrial” é a chave, senhoras e senhores. Como bem nota o livro, ele só é transmitido pela linhagem materna. O equivalente masculino dele é o cromossomo Y, só passado de pai para filho (do sexo masculino). Por simetria, seria interessante ter os dados do Y, omitidos pelo Narloch, mas presentes no estudo de Sérgio Danilo Pena que ele cita. Sabe quantos brasileiros considerados brancos carregam um Y “de índio” nessa amostragem? Nenhum. Vou repetir: zero.
Essa assimetria é típica de populações conquistadas, gente. Pra não deixar dúvida: CONQUISTADAS. Será que os portugueses eram tão mais gostosos (ui!) que os índios que as índias magicamente resolveram ter filhos só com europeus assim que Cabral pôs os pés aqui? É claro que não. Aconteceu o que acontece com todas as populações conquistadas desde que o mundo é mundo, das sagas bíblicas às guerras de Alexandre: os homens são mortos e as mulheres, emprenhadas.
Deixa eu reforçar, porque é importante: esse é um dado básico de biologia molecular e de comportamento humano (eu diria até primata). É assim que as coisas funcionam. Outros fatores talvez tenham contribuído — seleção natural contra doenças europeias às quais os mestiços eram resistentes e os índios “puros” não, vantagens dos portugueses na hora de obter parceiras para relações polígamas, relativa falta de mulheres europeias etc. — mas dificilmente eles explicam a maior parte do fato arrasador de que os homens indígenas, de repente, pararam de se reproduzir.
Parafraseando certo profeta do Design Inteligente, trata-se de um fato, fato, FATO incontestável, não passível de ser manipulado via documentos adulterados ou historiografias com peso ideológico duvidoso. Está no DNA dos brasileiros pra quem souber interpretar: “integração pacífica” quer dizer pegue a mulherada e descarte os homens.
Já deu
Eu poderia abordar outros detalhes. Outra grande escorregada é assumir que os animais domésticos e a tecnologia europeia aumentaram instantaneamente o nível de vida dos índios (animais e implementos eram caros, e a expectativa de um camponês de Portugal era rigorosamente idêntica à de um índio tupinambá). Mas acho que o texto já ficou cansativo.
É normal, e humano, maquiar a evidência um pouquinho pra defender sua hipótese predileta. Deus sabe que eu e a torcida do Corinthians já fizemos isso não poucas vezes. Mas, nesse capítulo indígena, o Narloch não só maquiou a evidência como botou meia arrastão e minissaia nela e ainda levou a coitada para rodar bolsinha no Putusp. Não dá.
E o pior é que nem precisava. Há picaretas suficientes na história do Brasil pra tese do livro ficar em pé, sem mudança nenhuma, caso esse capítulo não existisse. A vontade de derrubar mitos saiu do controle. E há a frase final:

“Da mesma forma, quem hoje se considera índio poderia deixar de culpar os outros por seus problemas.”

É, o pessoal que quer construir Belo Monte e as usinas do Tapajós vai adorar ouvir isso. Os índios não são santos. Mas 90% dos problemas deles vêm de um único fato: eles são populações conquistadas.
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