Peitões da Idade da Pedra

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ResearchBlogging.orgAlgumas coisas nunca saem de moda. Quem reclama da onda das mulheres-fruta talvez se console com o fato de que a preferência por moças, digamos, avantajadas já existia há 40 mil anos, a julgar pela estatueta de uma “Vênus gordinha” alemã, cuja descrição acaba de ser publicada na revista “Nature”.
Como explico na reportagem abaixo, que saiu nesta manhã no G1, trata-se da mais antiga escultura produzida por mãos humanas — e provavelmente também a mais antiga forma de arte figurativa, na qual há uma tentativa de reproduzir a realidade. (Por incrível que pareça, a arte abstrata é mais antiga; veja o post anterior.)
Mas é claro que a gente precisa qualificar um pouco a afirmação acima. “Reproduzir” qual realidade, cara-pálida? É muito difícil especular sobre a função de um objeto como a Vênus de 40 mil anos numa cultura desaparecida que não sabia escrever. Os arqueólogos não vão muito além de uma vaga proposta de “simbologia da fertilidade” (fora o fato óbvio de que havia uma argolinha no topo da estatueta, o que indica que ela provavelmente era portátil).
Mulher ideal?
Correndo o risco de especular além da conta, acho que dá para ir um pouco mais longe. Graças a outros achados um pouco mais recentes na mesma região, a Suábia (sudoeste da Alemanha), sabemos que os povos do Paleolítico Superior tinham uma capacidade de raciocínio abstrato e imaginativo comparável ao das populações tradicionais de hoje.
Eles também produziam, por exemplo, estatuetas teriantrópicas — seres humanos com características animais, como um homem com cabeça de leão, por exemplo. Pode ser que essa seja a representação de um xamã, ou seja, um mago-sacerdote que, segundo a crença de muitos caçadores-coletores, consegue transitar entre o mundo dos humanos, dos animais e dos espíritos.
Diante dessa capacidade conceitual complexa, acho bem pouco provável que a mulher-fruta do Paleolítico representasse de fato o ideal de beleza do período, o tipo de mulher que eles considerariam “gostosona”. Minha impressão é que ela está mais para uma alegoria do feminino — uma criatura com os traços sexuais tão exagerados que serve como uma representação abstrata do papel da mulher como reprodutora. Alguma outra ideia para interpretar essa figura? Estou aberto a sugestões. Confiram a reportagem a seguir.
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O pessoal não estava nem aí para a ditadura da magreza no Paleolítico, a julgar pelo físico cheinho (para dizer o mínimo) das mulheres representadas pelos artistas de 40 mil anos atrás. Essa é a idade do que parece ser a mais antiga escultura feita por mãos humanas, encontrada na Alemanha, e que retrata um corpo feminino de formas volumosas e estilizadas.
O achado foi descrito por Nicholas J. Conard, da Universidade de Tübingen, em artigo na edição desta semana da revista científica britânica “Nature”. Trata-se de mais um clássico golpe de sorte arqueológico: os caquinhos de marfim de mamute lanoso (seis pedaços no total) que compõem a figura foram encontrados, em parte, espalhados durante a escavação e, em parte, peneirados de sedimentos com a ajuda de água. A figura pequenina (veja a foto acima para ter uma ideia da escala) ainda está incompleta, mas Conard conseguiu remontar a estatueta com bom grau de segurança mesmo assim.
Não é a primeira vez que a caverna de Hohle Fels, na Suábia (sudoeste da Alemanha), deixa os arqueólogos de boca aberta. Em 2003, o próprio Conard, com outros colegas, tinha apresentado o que então eram as mais antigas esculturas do mundo — animais como cavalos e aves –, com idade estimada de 33 mil anos. Agora, eles parecem ter se superado
A mera antiguidade da estatueta é importante sem dúvida, embora haja algum grau de incerteza em relação à datação, que foi feita por materiais orgânicos — carvão, por exemplo — associados ao objeto. O que realmente intriga qualquer um são as características da obra, que antecipam em até 10 mil anos uma “mania” dos artistas do Paleolítico Superior, a produção de pequenas “Vênus gordinhas”.
Excesso de gostosura
Em comum com essas obras bem posteriores, a “Vênus de Hohle Fels” tem as características sexuais muito exageradas, como o busto volumoso “escapando” das mãos, a barriga nem um pouco sarada e a ênfase na vagina — o escultor primitivo se deu ao trabalho de representar até os grandes lábios da vulva.
Por outro lado, fora a óbvia espessura, os membros não têm muitos detalhes, e a figura praticamente não conta com uma cabeça — ela parece ter sido transformada num simples anel com buraco, o que leva o arqueólogo alemão a sugerir que a estatueta era carregada. Como um amuleto, talvez?
Essa é a grande questão. Muitas teorias sobre a arte do Paleolítico apostam que as “Vênus gordinhas” são “ídolos de fertilidade”, formas de cultuar a figura feminina exagerando seus atributos sexuais. Como os caçadores-coletores da Idade do Gelo não sabiam escrever — embora, sendo humanos anatomicamente modernos, certamente fossem capazes de falar –, a ideia provavelmente continuará sendo apenas um palpite bem formulado.

Lançando luz sobre artefatos do passado

bannerluz.jpgPouca gente (fora cientistas, claro; bom, às vezes nem eles…) tem estômago pra ficar pensando em metodologia e ferramentas técnicas diante de uma descoberta realmente sensacional. Mas nunca é demais lembrar que, sem essas coisas aparentemente chatinhas, nenhuma boa descoberta acontece, fora raros golpes de sorte. Por isso, como parte da nossa blogagem coletiva sobre luz, resolvi abordar rapidamente um dos métodos de datação mais legais e pouco conhecidos em arqueologia (e outras ciência do “tempo profundo”, claro): a termoluminescência.
Essa técnica, junto com sua “irmã gêmea”, a datação óptica, quebra um galhão em contextos nos quais o arqueólogo ou paleoantropólogo dá o azar de não ter à mão matéria orgânica para datar. E, sem matéria orgânica — carvão, osso, conchas etc. –, adeus possibilidade de usar o tradicional método do carbono-14, o qual depende, claro, da presença dessa forma instável do elemento carbono em matéria anteriormente viva. (Aliás, nota mental: explicar a metodologia do carbono-14 em post futuro.)
Portanto, sem restos desse tipo (imaginemos que você só achou ferramentas de pedra), o que o sujeito faz? Senta e chora? Não, graças à termoluminescência. Se houver indícios de que essas ferramentas foram jogadas numa fogueira, ou passaram um tempo de baixo do sol quente, ou se as amostras a datar são representadas por utensílios de cerâmica, nem tudo está perdido.
O que acontece é que minerais como os que compõem uma ponta de lança ou um vaso tupi possuem uma estrutura microscópica de cristal. Isso sugere que essa estrutura é ordenadíssima, e pode ser mesmo, mas volta e meia aparecem impurezas e imperfeições cuja ação funciona como “armadilhas” para os elétrons do cristal. Com o passar do tempo, aumenta a quantidade de elétrons aprisionados nessas armadilhas microscópicas.
Acontece que, quando um objeto é submetido a calor ou luz intensos, essas armadilhas são “zeradas” e os elétrons voltam para onde deveriam estar na estrutura cristalina, liberando fótons — isso mesmo, partículas de luz. Portanto, quando o vaso de cerâmica foi produzido originalmente, ou quando as ferramentas caíram no fogo do acampamento, é como se seu relógio tivesse zerado, criando, portanto, um período inicial a partir do qual determinar a idade do objeto. (É o equivalente da morte no caso do carbono-14: quando alguém morre, seu organismo cessa de absorver carbono-14, tendo, portanto, uma proporção fixa do elemento, que daí pra frente só diminui.)
Pois bem: em laboratório, basta esquentar a amostra ou iluminá-la com força e observar a energia luminosa que vem do objeto — no caso da datação óptica, luz ultravioleta. A quantidade de fótons é correspondente à quantidade de elétrons antes aprisionados, que corresponde, por sua vez, à idade do objeto. O limite da técnica é de 230 mil anos — bem melhor que os cerca de 50 mil anos do carbono-14.
Objetos como a mais antiga forma de arte humana — o bloco de pedra de Blombos, na África do Sul, com 77 mil anos (abaixo) — foram datados com ajuda dessa técnica.
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Agora com équio!

Uma nota alucinadamente rápida para avisar que o Chapéu, Chicote e Carbono-14 agora já tem RSS, graças aos magos da programação do ScienceBlogs! Ficarei contente e lisonjeado caso os nobres leitores queiram assinar o meu feed, simplesmente clicando na barra onde se lê “RSS” aqui em cima. Voltamos em breve com mais programação normal.

Em uma caverna na Indonésia vivia um hobbit

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ResearchBlogging.orgÉ por essas e outras que a paleoantropologia e a arqueologia são tão fascinantes: ninguém se entende. Ou, ao menos, tem alguns pontos a respeito dos quais ninguém se entende. É o caso do hobbit da ilha de Flores, na Indonésia — que para alguns é o hominídeo Homo floresiensis e, para outros, não passa de um ser humano moderno com 18 mil anos de idade e portador de uma forma severa de deficiência física e mental. Muitos defendem o status da criaturinha como uma espécie separada de hominídeo, mas há uma minoria um bocado barulhenta de especialistas que “lê” as características primitivas de seu esqueleto como, na verdade, sinais de microcefalia ou outra síndrome igualmente brava.
A imagem acima é do pezinho do LB1, o principal exemplar de hobbit (na verdade uma hobbit; seria a célebre Lobélia Sacola-Bolseiro?), objeto de uma análise detalhada na edição de hoje da revista “Nature”. Escrevi sobre isso para o G1 hoje. Confira a reportagem abaixo.
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É um novo capítulo na saga do hobbit, e não estamos falando de Frodo, do clássico “O senhor dos anéis”. Duas análises publicadas hoje na prestigiosa revista científica “Nature” reforçam a tese de que o hobbit em questão, cujos restos de 18 mil anos de idade foram achados na ilha indonésia de Flores, é mesmo uma espécie bizarramente única de hominídeo (grupo a que pertencem os parentes primitivos do homem e os próprios seres humanos). E, a julgar pelos pés da criaturinha de 1,10 m de altura, ele pode ter sido um hominídeo ainda mais primitivo e estranho do que imaginávamos.
A polêmica nunca se afastou muito da misteriosa criatura desde que um grupo de pesquisadores indonésios e australianos anunciaram sua existência para o mundo em 2004, também nas páginas da “Nature”. O hominídeo foi batizado como Homo floresiensis e, por causa de características específicas de seu crânio e esqueleto, foi considerado um descendente do Homo erectus, que já habitava o Sudeste Asiático há cerca de 1,7 milhão de anos.
A ideia é que alguns H. erectus teriam ficado isolados em Flores e simplesmente encolhido — um fenômeno que, por incrível que pareça, é comum com mamíferos isolados em ilhas. (Para efeito de comparação, elefantinhos extintos das ilhas europeias de Sicília e Malta chegavam, quando adultos, ao tamanho de um filhote de elefante africano de hoje.)
O problema é, que desde então, outros pesquisadores contestaram o status do hobbit, afirmando que se trataria apenas de um humano moderno com deficiências físicas e presumivelmente mentais, por conta do crânio e cérebro diminutos. Os críticos argumentavam que o cérebro de um hominídeo jamais encolheria tanto assim, mesmo preso numa ilha, onde o órgão diminui pela falta de ameaças e predadores.
As análises de hoje, porém, mostram que o hobbit, seja lá quem ele for, talvez seja realmente uma espécie bizarra e primitiva, diferente da nossa. A equipe liderada por William Jungers, da Universidade de Stony Brook (EUA), fez uma análise anatômica detalhada dos pezinhos do principal exemplar hobbit, uma fêmea conhecida pelo código LB1.
O que acontece é que, embora o dedão da criatura tivesse a mesma posição do nosso, diferentemente do dos chimpanzés, o pé como um todo é um bocado comprido em termos relativos, em especial quando comparado com os ossos da perna. Trata-se de uma característica tão estranha que sugere que a criatura provavelmente não conseguia correr pelas mesmas distâncias ou com a mesma velocidade que um ser humano moderno.
Essa característica, ao lado de algum detalhes mais técnicos, é mais primitiva do que se vê entre os Homo erectus, o que pode indicar que o verdadeiro ancestral do Homo floresiensis é um hominídeo mais antigo que já tinha passado antes pela Ásia, sem deixar vestígios detectados até hoje. Por enquanto, os antropólogos não arriscam dizer quem seria esse ancestral.
Em outro artigo científico na mesma edição da “Nature”, Eleanor Weston e Adrian Lister, do Museu de História Natural de Londres, estudaram outros mamíferos fósseis que viviam em ilhas para entender a misteriosa redução cerebral do hobbit. As contas que eles fizeram mostram que outros animais, como hipopótamos e elefantes anões, passaram por reduções cerebrais compatíveis com as do hobbit ao viver ilhados. Resta saber se esse argumento calará os críticos.
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Jungers, W., Harcourt-Smith, W., Wunderlich, R., Tocheri, M., Larson, S., Sutikna, T., Due, R., & Morwood, M. (2009). The foot of Homo floresiensis Nature, 459 (7243), 81-84 DOI: 10.1038/nature07989
Weston, E., & Lister, A. (2009). Insular dwarfism in hippos and a model for brain size reduction in Homo floresiensis Nature, 459 (7243), 85-88 DOI: 10.1038/nature07922

Mais do mesmo

Você leu primeiro no ScienceBlogs Brasil — mas talvez queira ler de novo em mais profundidade 😉 Ainda sobre os efeitos (graças a Deus, psicossomáticos, ao menos por enquanto) do apocalipse porcino, minha coluna de hoje no G1, a famigerada Visões da Vida, aborda mais uma vez a relação entre domesticação de animais e surgimento de pandemias ao longo da história humana.
Para conferir, clique aqui.

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