Guerra santa

Fazia tempo que eu não babava tanto com uma descoberta arqueológica (embora nesse caso eu seja obviamente suspeito pra dizer, claro). Está em todas as agências de notícias o achado de pelo menos 650 objetos de ouro e 530 objetos de prata em Staffordshire (centro-oeste da Inglaterra), provavelmente datados do século VII, época em que a área fazia parte do reino anglo-saxão da Mércia. Estamos falando de cerca de 5 kg de ouro puro, indicando que os guerreiros germânicos que conquistaram a Grã-Bretanha depois da queda do Império Romano construíram uma civilização bem mais opulenta do que se imaginava antes.
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Como testemunho da cultura guerreira dos mercianos, a imensa maioria desses objetos ricamente decorados é de uso bélico (ou ao menos cerimonial-bélico; não é muito esperto partir para a porrada coberto de metais preciosos). São bainhas de espadas, cabos de espadas, pedaços de elmos (como a linda peça vista acima, que provavelmente protegia a parte lateral do rosto do usuário).
Mais interessante ainda é a folha de ouro vista abaixo, com a inscrição latina (com errinhos de ortografia) Surge domine et dissipentur inimici tui et fugiant qui oderunt te a facie tua. Na tradução da CNBB: “Levanta-te, SENHOR, que se dispersem os inimigos! Fujam diante de ti os que te odeiam”. CNBB? Sim, a frase é do Antigo Testamento (livro de Números, capítulo 10, versículo 35). Era a frase que, segundo a Bíblia, Moisés pronunciava toda vez que a Arca da Aliança punha os israelitas em marcha no deserto.
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Não é nem um pouco esquisito que ex-bárbaros recém-cristianizados como os mercianos usassem a Bíblia como inspiração para a guerra. A junção entre fé e coragem militar foi aparentemente uma das grandes estratégias da Igreja para conseguir converter as elites bárbaras. E isso aparece até na poesia religiosa em anglo-saxão ou inglês antigo: num dos poemas da época, The Dream of the Rood (“O Sonho do Lenho”), a cruz na qual Jesus foi pregada fala com ele com a mesma linguagem empregada pelos guerreiros anglo-saxões em relação a seus lordes guerreiros.
O porquê da minha empolgação? É muito simples, Comissário. Os cavaleiros de Rohan em O Senhor dos Anéis falam o dialeto anglo-saxão merciano, que Tolkien apreciava muito. Aliás, o próprio nome Mark (Marca dos Cavaleiros) é claramente derivado do reino da Mércia. Westhu hál!

Obra de Maluf

A hora se aprochega, senhoras e senhores, na qual meu primeiro grande livro (já fiz outro sobre O Senhor dos Anéis, mas foi a mando do Báteman) vai ser lançado. Confiram a capa (e não me batam, que não fui eu que escolhi):
Capa Além de Darwin baixa.jpg
Ou vejam a versão maiorzinha aqui.
O lançamento paulistano deve acontecer no dia 27 de outubro. Em breve dou mais detalhes. Para quem não sabe, trata-se da coletânea revista e ampliada, com vários textos inéditos, das minhas colunas sobre evolução no G1.
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Ééééééé do Brasil!

O meu, o seu, o nosso Chapéu, Chicote e Carbono-14 levou para casa o primeiro lugar do Prêmio ABC para blogs científicos, categoria Ciências Sociais e Humanidades, Educação e Blogs Didáticos. Confira o anúncio de todas as categorias no blog do professor Osame Kinouchi, coordenador dessa meritória iniciativa.
Repare também que os primeiros lugares de TODAS as categorias foram arrematados pela galera do ScienceBlogs. Como sempre, mamãe nunca poderá me acusar de andar com más companhias, antes pelo contrário. Obrigado a todos que depositaram essa confiança na gente!

Artefatos que importam: a Coluna-Serpente

serpent column.jpgA mistura de concisão e redundância da linguagem antiga é irresistível, pungente como só o passado consegue ser: tôide tôn pôlemon epolemêon, ou “por estes a guerra foi guerreada”, se você quiser a tradução mais literal possível. A inscrição está na Coluna-Serpente, que ainda hoje, detonada por quase 2.500 anos de agressões, pode ser vista no Hipódromo de Constantinopla — aliás, Istambul. A Coluna-Serpente é uma das poucas lembranças materiais da vitória gloriosa, e totalmente inesperada, de um punhado de pôleis (cidades-Estado) gregas sobre o Império Persa em 479 a.C.
O que vem depois da frase que eu citei acima é uma lista dessas 31 pôleis, a qual, no geral, é compatível com a que aparece na obra do historiador grego Heródoto, embora haja algumas divergências. Talvez você esteja se perguntando porque esse artefato de bronze é chamado de Coluna-Serpente. É muito simples, Comissário: originalmente, o topo da coluna era encimado por três cabeças de réptil, as quais, por sua vez, serviam de apoio para um caldeirão de ouro.
O conjunto foi dedicado (isto é, ofertado) ao templo do deus Apolo em Delfos, o grande santuário “nacional” dos gregos, como sinal de gratidão pela vitória contra os persas. Nada mais natural do que oferecer uma serpente a Apolo, uma vez que o principal mito associado ao deus fala de sua vitória contra a serpente Píton na própria Delfos, evento que teria levado à fundação do santuário. A ironia é que, na época da invasão persa na Grécia, os sacerdotes do lugar adotaram discretamente uma linha colaboracionista de ação — estratégia rapidamente esquecida quando os gregos venceram.
Quando Constantinopla foi fundada no século IV da nossa era, o monumento foi levado para adornar o hipódromo da nova metrópole, onde está até hoje. Até o fim do século XVI as cabeças de serpente ainda faziam parte do objeto, como se pode ver nesta gravura da época otomana, abaixo. UPDATE, a pedidos dos leitores: embora não se saiba exatamente como as cabeças dos répteis caíram, pedaços de algumas delas foram recuperados e estão hoje num museu de Istambul. Clique aqui para ver uma delas.
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Um último detalhe que me é um bocado caro: originalmente, a inscrição na Coluna-Serpente fazia referência não às cidades gregas, mas unicamente ao comandante-em-chefe da batalha decisiva contra os persas, o regente espartano Pausânias. Ao saber da insolência (Pausânias mandou gravar versos em seu louvor sem o conhecimento de sua pôlis), as autoridades de Esparta mandaram apagar a inscrição e substituí-la pela que conhecemos. Apesar de suas muitas falhas, os gregos tinham consciência de que os grandes feitos da história são forjados a muitas mãos.

Poluição inca

ResearchBlogging.orgcoroa.jpgDepois que os espanhóis chegaram, Huancavelica, na região central do Peru, ganhou o apelido de mina de la muerte. Mas bem que ela merecia ter o mesmo nome nas muitas línguas indígenas faladas nos Andes antes do Descobrimento. O motivo? Huancavelica, como mostra um estudo recente na revista científica “PNAS”, foi uma fonte considerável de poluição por mercúrio ao longo de milênios de pré-história andina.
Os dados foram levantados pela equipe cujo líder é Colin Cooke, da Universidade de Alberta, no Canadá. Que Huancavelica tinha ajudado a poluir os Andes a partir do domínio espanhol todo mundo já sabia, principalmente porque o mercúrio era o principal meio para se minerar prata durante a era colonial — o metal líquido era amalgado ao minério de prata. Não se imaginava, contudo, que as civilizações pré-colombianas da região também tivessem produzido tanta poluição.
Está tudo nos lagos
Foi o que Cooke e companhiam descobriram ao examinar sedimentos depositados no fundo de lagos da região. As camadas desses sedimentos formam um registro bastante completo do que andava acontecendo na superfície vizinha, e elas podem ser datadas por meio de isótopos radioativos, entre eles o famigerado carbono-14.
O que essas fatias de sedimentos lacustres revelam é, primeiro, um longo período de acúmulo lento, contínuo e estável de mercúrio no fundo dos lagos. A partir de 1400 a.C., a proporção de mercúrio começa a crescer, até atingir dez vezes o nível original do elemento em torno de 600 a.C. Após quase 2.000 anos de oscilações nesse patamar, com retornos ao padrão original e algumas fases de aumento da proporção de mercúrio, a coisa dispara novamente por volta do ano 1400 da nossa era, com registros de níveis do metal entre 55 e 30 vezes o esperado pela deposição natural de minérios.
Não parece muito difícil entender o porquê desses aumentos de poluição. Os dois grandes picos poluidores, de 600 a.C. e 1400-1500 d.C., batem com o apogeu dos impérios Chavín e Inca, respectivamente — dois dos principais Estados pré-históricos a dominar vastas áreas dos Andes.
Simplesmente um luxo
Ambos os impérios tinham em comum o gosto por adornar seus artefatos de ouro (como a coroa Chavín vista acima) com o vermelhão, corante vermelho (duh!) que é a forma pulverizada do cinabre, ou sulfeto de mercúrio (HgS). O vermelhão também era empregado como pintura corporal nos Andes pré-históricos.
Ou seja: ao contrário do que se viu na era colonial, as antigas civilizações andinas tinham como principal motor de sua atividade mineradora e poluidora a obtenção de bens de prestígio, ou seja, de ferramentas de ostentação social para a nobreza. Taí mais uma prova de que os seres humanos do século XXI não inventaram o conceito de fazer coisas estúpidas com o ambiente só para aparecer.
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Cooke, C., Balcom, P., Biester, H., & Wolfe, A. (2009). Over three millennia of mercury pollution in the Peruvian Andes Proceedings of the National Academy of Sciences, 106 (22), 8830-8834 DOI: 10.1073/pnas.0900517106

Monoteísmo e política

Enquanto não dou um jeito de pilotar um post novo decente, gostaria de direcionar a atenção do gentil leitor ao interessantíssimo texto no blog do professor Osame Kinouchi, velho amigo e leitor, seja na era G1, seja por aqui.
Trata-se de uma análise muito legal dos aspectos políticos e sociais, e não apenas religiosos, que estão embutidos nos textos bíblicos. Parte das conclusões são especulativas, outras andam sendo questionadas — como a associação do Gênesis à época de Salomão — mas vale muito a leitura.

Vote no Carbono-14 no I Prêmio ABC para Blogs Científicos!

Foi dada a largada para a votação do I Prêmio ABC para Blogs Científicos, uma iniciativa do Anel de Blogs Científicos do Laboratório de Divulgação Científica da USP de Ribeirão Preto. O Chapéu, Chicote e Carbono-14 está concorrendo na categoria Ciências Sociais e Educação (Ciências Sociais e humanidades + Educação e Blogs Didáticos). Eu poderia estar roubando, eu poderia estar matando, mas estou aqui pedindo o SEU voto 😉
Mas calma: o esquema de votação é por pares, e não pelo público em geral, o que significa que só os blogueiros já cadastrados no Anel de Blogs Científicos terão direito a voto. Portanto, se você é um deles, agradeço se puder considerar minhas humildes aventuras arqueológicas dignas dessa honraria. E, claro, não se esqueça de votar também nos demais colegas do ScienceBlogs Brasil que estão nessa disputa, e que certamente merecem estar entre os primeiros do país!

Cachorro-quente das cavernas?

ResearchBlogging.orgperritofeo.jpgLeio no jornalão americano “New York Times” uma proposta mirabolante para explicar a domesticação dos cães: fazer cachorro-quente. Literalmente. Peter Savolainen e seus colegas do Real Instituto de Tecnologia de Estocolmo, na Suécia, afirmam que os primeiros totós a serem criados por humanos serviram de comida, e só depois passaram a ser tratados como companheiros de caça, guardas e animais de trabalho.
É claro que a hipótese tem apelo popular, em parte por ser nojenta, em parte por ser um tanto cômica. Mas, quando olhamos os dados científicos publicados por Savolainen e companhia, é difícil evitar a impressão de que eles estão forçando um pouco a barra. Tanto que a ideia do filé de buldogue nem entra no resumo do artigo, recém-publicado na revista especializada “Molecular Biology and Evolution”.
O que Savolainen e companhia realmente fizeram foi analisar o DNA mitocondrial (aquele presente nas mitocôndrias, as usinas de energia das células) de cerca de 1.500 cães, em busca de padrões geográficos e de uma data estimada de domesticação. Segundo eles, a diversidade genética indica uma origem única, no sul da China, há uns 12 mil anos, quando a agricultura e a vida sedentária estava emergindo na região.
Beleza. Nada contra. O problema é fazer o pulo-do-gato (só pra combinar com quem quer sacanear a cachorrada) da origem no sul da China para o uso culinário dos cães. É fato que levar cachorros para a panela é comum nessa parte do mundo; também é fato que, em alguns sítios arqueológicos de lá, foram encontrados ossos de cachorro com marcas de corte. Daí a estabelecer que a motivação da domesticação foi devorar os bichos é ir um tanto longe demais.
Primeiro, “esse documento não prova nada”, como diz o Báteman: marcas de corte podem só significar sepultamento secundário, em que o corpo é descarnado antes do enterro. É preciso usar critérios mais detalhados pra provar o consumo culinário da carne. Também é preciso saber o quão comuns são esses sítios de churrasco de cachorro, e que idade eles têm. Finalmente, algum chinês pré-histórico pode muito bem ter comido seus cãezinhos no desespero, e não como algo rotineiro — em situação de guerra, nem os alemães desprezavam um salsichão canino, diz a lenda.
O que a gente sabe de outras culturas sobre o consumo de carne de cão — caso dos polinésios ou dos astecas, que curtiam fatiar o xoloitzcuintle, raça careca que você vê na foto acima — é que em geral ele é motivado ou favorecido pela relativa falta de outras fontes de proteína animal. Surgiram raças já dedicadas ao abate — motivo pelo qual o xoloitzcuintle foi selecionado para ser careca. Pode até ser que esses critérios sejam satisfeitos pelos mais antigos cães chineses, mas, por enquanto, a ideia parece especulol puro.
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Pang, J., Kluetsch, C., Zou, X., Zhang, A., Luo, L., Angleby, H., Ardalan, A., Ekstrom, C., Skollermo, A., Lundeberg, J., Matsumura, S., Leitner, T., Zhang, Y., & Savolainen, P. (2009). mtDNA Data Indicates a Single Origin for Dogs South of Yangtze River, less than 16,300 Years Ago, from Numerous Wolves Molecular Biology and Evolution DOI: 10.1093/molbev/msp195

Ceticismo bíblico, parte 1: Eclesiastes

Ecclesiastes.jpgDepois de passar algumas (várias) semanas no olho do furacão do jornalismo científico, finalmente arranjei um tempinho para dar início à minha tão propalada série bíblica aqui no blog. Promessa é dívida: “o que você jurar, cumpra”, como diz o autor do livro que é o primeiro da nossa lista de céticos israelitas. Falo de Koheleth, ou, se você preferir a tradução grega do apelido, o Eclesiastes.
Tanto em hebraico (língua original do livro de Eclesiastes) quanto em grego, a palavra significa algo como “o sujeito que reúne, que monta um conjunto” – “Eclesiastes” tem a mesma origem do grego ekklessía, “assembleia”. O problema é saber o que nosso amigo Koheleth reunia, afinal: alguns acham que a palavra se refere à reunião de pessoas mesmo, como nas assembleias das cidades-Estado gregas; outros apontam que a reunião é de provérbios, sermões e ditos sábios, os quais compõem o livro. Claro que os dois sentidos não são autoexcludentes.
Presente em qualquer Bíblia, seja ela católica, protestante ou judaica, o Eclesiastes tem uma série de características interessantes que sugerem que ele foi escrito tardiamente se comparado ao resto do Antigo Testamento (uma data em torno de 400 a.C. ou pouco depois talvez seja um bom chute).
A gramática do texto não é lá muito castiça, e há duas palavras de origem persa no livro, pardes (“jardim”, origem da nossa palavra “paraíso”) e pitgam (“sentença”). Ora, a influência cultural persa só começou a se fazer sentir no fim do século VI a.C., quando a Pérsia conquistou todo o Oriente Médio antigo. Por isso mesmo, embora o Koheleth se identifique na primeira pessoa como “filho de David, rei em Jerusalém”, tudo indica que se trate de outro traço comum dos livros bíblicos tardios: a pseudoepigrafia, uma espécie de ghost-writing. No caso, o autor bíblico assume o manto de um grande personagem do passado para ressaltar sua autoridade — até porque não havia mais reis no que restou do território israelita durante o domínio persa.
Vento, vento, vento
Depois desse breve cenário, vamos ao que interessa: conteúdo. Uma palavrinha hebraica, hevel (algo como “ar”, “vento”, “sopro”), é a chave para se entender o pensamento cético e pessimista do misterioso Koheleth. Traduzida às vezes como “vaidade” ou “futilidade”, hevel é, para o autor, o sinal da impossibilidade do homem de achar algum grande padrão ou ordem nos acontecimentos cósmicos.
Nesse ponto, o Koheleth diz coisas que não ficariam deslocadas na boca de um deísta — ou seja, um sujeito que até acha que Deus criou as leis do Universo, mas que depois disso deixou basicamente a natureza seguir seu curso sem interferências. Esses ritmos naturais são imutáveis, diz ele no capítulo 1:
“Só acontecerá/O que já aconteceu/Só ocorre/O que já ocorreu/Não há nada de novo/Debaixo do Sol!”
Mais do que isso, em vários pontos o Koheleth parece desafiar um dos pressupostos fundamentais da religião israelita mais tradicional: a ideia de que Deus basicamente recompensa os bons e pune os maus. O mundo real é muito mais complicado, diz o autor:
“E eis outra frustração: o fato de que a sentença imposta pelos atos maus não é executada rapidamente, e é por isso que os homens têm coragem de fazer o mal — o fato de que um pecador pode fazer o mal cem vezes, e ainda assim sua punição é adiada (…) Pois o mesmo destino aguarda a todos: ao justo e ao injusto; ao bom e ao puro, e ao impuro; ao que sacrifica [a Deus] e ao que não sacrifica; ao que é agradável e ao que é desagradável (…) Essa é a coisa mais triste em tudo o que acontece debaixo do Sol: o mesmo destino aguarda a todos.”
O bicho homem
Alguns especialistas no estudo do texto bíblico sugerem que o Koheleth escreveu sua obra numa época em que a religião judaica estava começando a adotar a crença na imortalidade da alma e em recompensas ou punições depois da morte, sob influência dos persas e, mais tarde, dos gregos. O autor do livro, no entanto, é categórico: a morte é o fim — uma visão mais antiga que parece ter predominado entre os autores dos livros bíblicos anteriores. Ele diz que a diferença entre humanos e animais, nesse sentido, é pequena, ou até inexistente:
“Então eu decidi, no que diz respeito aos homens, não compará-los a seres divinos, mas encarar o fato de que eles são animais. Pois, em relação ao destino do homem e o destino do animal, eles têm o mesmo destino: como um deles morre, assim também morre o outro, e ambos têm o mesmo hálito vital; o homem não tem superioridade em relação ao animal, uma vez que ambos de nada valem. Ambos vão para o mesmo lugar; ambos vêm do pó e para o pó retornam.”
Diante desse pessimismo todo, será que é o caso de cortar os pulsos? Não, diz o Koheleth. O homem tem de se conformar com sua pequenez e aproveitar, sempre que possível, o que a vida tem de melhor:
“Vá, coma seu pão em contentamento, e beba seu vinho em alegria; pois sua ação foi há muito tempo aprovada por Deus. Que suas roupas estejam sempre lavadas, e que na sua cabeça nunca falte perfume. Desfrute a felicidade com uma mulher que você amar todos os dias de sua vida que lhe forem concedidos debaixo do Sol (…) O que quer que esteja em seu poder fazer, faça-o com toda a sua capacidade. Pois não há ação, nem raciocínio, nem aprendizado, nem sabedoria no Sheol [a região dos mortos para os israelitas antigos, parecida com o Hades grego], que é para onde você vai.”
Portanto, se eu fosse resumir numa única frasezinha grudenta o conteúdo do Eclesiastes, acho que parafrasearia a famosa campanha dos ônibus ateus: “Provavelmente existe um Deus, mas nunca dá pra saber se e quando Ele vai intervir nos assuntos humanos; então, pare de se preocupar e aproveite a vida”.
Mas hein?
O mais curioso de toda essa história é que, embora os organizadores anônimos da Bíblia hebraica tenham aceitado colocar esse livro cético na lista dos considerados inspirados por Deus, eles também parecem ter tentado “domesticar” o significado dele, ao menos em parte.
Alguns parágrafos no último capítulo do Eclesiastes parecem ter sido acrescidos por um editor e basicamente desdizem as afirmações mais perturbadoras do autor original. A probabilidade de eles serem de um autor secundário é alta porque eles aparecem logo depois de uma fala que espelha exatamente a abertura do livro, quase como um refrão. Os autores antigos costumavam usar essa estrutura em espelho, ou “inclusio”, para fechar seu raciocínio. A frase final quebra essa unidade, dizendo:
“O resumo do tema, no fim das contas, é: reverencie a Deus e observe seus mandamentos! Pois isso se aplica a toda a humanidade: que Deus pedirá contas de toda criatura por todas as coisas desconhecidas, sejam elas boas ou más.”
Essa mensagem se encaixa perfeitamente com a visão tradicional da religião israelita, mas tem pouco a ver com o pensamento iconoclasta do Koheleth.
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O nosso próximo cético bíblico é o autor do livro de Jó, também no Antigo Testamento. Não percam!

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