Gripe suína: armas, germes e aço

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Está difícil pensar em qualquer outra coisa que não seja o apocalipse porcino nesta semana (ainda mais trabalhando com jornalismo em tempo real. *Suspiro*.) Portanto, melhor usar a histeria (?) em favor de uma lição arqueológica importantíssima: como a domesticação de porcos e outros animais transformou a saúde das sociedades humanas. Em muitos casos, para pior — muito pior.
Colocando a coisa de forma um tanto resumida e simplificada, é quase certo que a nossa espécie só enfrenta doenças infecciosas de avanço rápido e potencialmente letais porque aprendeu a criar outros bichos em larga escala. Gripe (claro!), varíola, coqueluche, sarampo, cólera, difteria, tifo, tuberculose — antes do desenvolvimento de antibióticos e da medicina moderna em geral, dá para imaginar como essa listinha matava gente. Acontece que todas essas doenças começaram sua “carreira” como zoonoses, a julgar pela proximidade genética dos patógenos responsáveis por elas com vírus ou microrganismos carregados por animais domésticos.
A tese é um dos elementos proeminentes do já clássico livro “Armas, Germes e Aço”, do biogeógrafo americano Jared Diamond, da Universidade da Califórnia em Los Angeles — daí o título deste post. É só olhar para o processo que transformou javalis (como o simpático bicho da foto acima) em porquinhos domésticos para se dar conta de que a dinâmica epidemiológica virou do avesso por causa da domesticação.
Densidades, densidades
Primeiro, mal dá para comparar as densidades populacionais de humanos e bichos antes dos eventos de domesticação e depois dos eventos de domesticação. É verdade que mamíferos de grande porte como cavalos, javalis, ovinos e bovinos selvagens já viviam em bandos antes de virar criaturas de fazenda, mas raramente tantos bichos eram confinados em espaços tão pequenos quanto por obra e graça da ação humana.
E, claro, houve um feedback positivo entre população de animais domésticos e população humana. A quantidade de proteína animal (carne e leite), combustível (fezes), adubo (fezes again), matéria-prima (ossos) e agasalho (peles) disponível para criadores de grandes mamíferos é exponencialmente superior à que podia ser adquirida pelo melhor dos caçadores-coletores. Junte a isso a agricultura e você tem, claro, a possibilidade de sustentar muito mais gente no mesmo espaço de terra. Com sorte, esse excedente de gente, também graças aos bichos, fica até mais móvel, podendo se deslocar e colonizar novas terras no lombo de cavalos, bois, jumentos e búfalos.
Pare para pensar um instante em quão antinatural (do ponto de vista dos 6 milhões de anos de evolução humana) é essa situação dos últimos dez milênios. A chance de contato próximo com grandes mamíferos ou mesmo bandos de aves que os caçadores-coletores tinham era minúscula. Neguinho dava graças a todos os deuses se abatesse um bisão por mês. Só que agora você tem um monte de gente e um monte de bicho amontoado no mesmo assentamento — pessoas mexendo com esterco, carne, sangue, banha e sabe-se lá o que mais de vaquinhas, porquinhos e cabrinhas. (O “sabe-se lá o que mais” não é só pra efeito dramático. Em Papua-Nova Guiné, mulheres de certos tribos amamentam leitões órfãos. É, amamentam leitões.)
Esse cenário inédito não só facilitou a transmissão de doenças entre humanos e animais como também fez com que doenças infecciosas epidêmicas se tornassem autossustentáveis pela primeira vez. Se você é um caçador-coletor e tem o desprazer de ser infectado por um patógeno assassino oriundo, digamos, de macacos, tem o grande consolo de saber que sua tribo de 50 pessoas vai morrer inteirinha, ou ficar inteirinha imune, rapidão. E a doença muito provavelmente vai ficar por ali mesmo, porque aqueles 50 coitados raramente têm contato com outros grupos.
A coisa muda completamente de figura quando temos densas populações de criadores de animais e agricultores interligadas por rotas de comércio e interação extratribal constante. Agora até patógenos assassinos podem se beneficiar da massa crítica populacional para se espalhar por um ou mais continentes inteiros e fazer muito, muito estrago, coisa um bocado improvável de acontecer na era pré-domesticação.
Vencedores e vencidos
Diamond extrai uma conclusão interessante desse raciocínio todo. (Confira, aliás, o trecho da adaptação em documentário do livro dele no vídeo abaixo, o qual trata desse tema.) Quando invasores europeus pisaram nas Américas, na Polinésia e na Austrália pela primeira vez, quem morreu dizimado por varíola, gripe, sarampo e outros flagelos eurasiáticos foram os nativos. Não há nenhum caso de doença oriunda desses locais que tenha detonado os europeus.

Ora, nenhum desses povos domesticou animais em grande escala, com exceção das lhamas incas (as quais, aliás, são o único grande* mamífero domesticado das Américas). Diamond aponta que, junto com a menor densidade populacional, a falta de animais domésticos é a chave. Os europeus eram os herdeiros de um caldeirão de microrganismos transferidos por bichos, o qual matou tanta gente na Eurásia que acabou levando ao surgimento de imunidade entre os conquistadores — mas não entre os nativos.
Não dá para negar que a conclusão que a gente tira de tudo isso é um tanto sombria. Medidas modernas de higiene e monitoramento contínuo podem ajudar. Mas, se a história serve de guia, a criação intensiva de animais e o contato de seres humanos com eles ainda vai nos dar muitos sustos ligados a epidemias no futuro.
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* Como bem apontou um comentarista abaixo, os povos andinos também domesticaram o porquinho-da-índia. Além disso, quase todas as tribos americanas tinham cães, assim como muitas das polinésias. Nada, no entanto, que se compare em escala ou variedade aos mamíferos domesticados da Eurásia.

Vergonha alheia da Veja

Juro que eu gostaria de voltar a temas arqueológicos mais divertidos e agradáveis. Mas, até por uma questão de autoestima profissional, não dá para passar batido pela reação indiscutivelmente patética da revista Veja diante de um erro besta em sua última edição.
Meus honrados Sciblings Carlos Hotta e Rafael Soares já fizeram um ótimo trabalho descrevendo a escorregada aqui, aqui e aqui. (Para entender o caso, sugiro que você confira os posts exatamente na ordem acima.) Em resumo, o que acontece é que, num infográfico sobre a célebre dupla hélice do DNA, o pessoal da revista acabou representando os pares de nucleotídeos (os famosos A, T, C e G cuja aparição em trio contém o código para a fabricação de proteínas) como se eles fossem moléculas contínuas.
No entanto, o que realmente acontece é que os nucleotídeos interagem por meio de pontes de hidrogênio, que não são ligações moleculares no sentido estrito (como as que unem os átomos de hidrogênio e oxigênio na água, digamos). As pontes de hidrogênio são as mesmas interações que existem entre cada uma das moléculas de água num copo do líquido. Por isso, o certo é representá-las, como sempre se faz, com tracejadinhos ou coisa que o valha, simplesmente porque elas são mais fracas do que uma verdadeira ligação molecular.
Reação estapafúrdia
O mais maluco em relação a isso tudo é que, depois de um e-mail educado e respeitoso explicando o problema conceitual e sugerindo a correção, os caras me respondem (não a mim, quero dizer; estou só usando o pronome reflexivo com a função enfática, se é que você me entende) dizendo “desculpe, não somos uma revista científica, então podemos escrever com a bunda” (estou parafraseando um pouco aqui).
Oi? E um negócio chamado precisão? Eu até concordo que nem todo jornalista precisa nascer sabendo o que são pontes de hidrogênio. Simplificar as coisas é uma necessidade grande em muitos infográficos. Ok. Mas existe uma distância abissal entre simplificar e introduzir um erro no que você quer representar. A reação jornalística-padrão diante de um erro factual é simplesmente abaixar as orelhas e dar um Erramos. Não tem discussão.
Concordo com o Rafael quando ele diz que a reportagem até prestou um serviço interessante ao fugir da lengalenga do determinismo genético. Mas a falta de humildade na hora de reconhecer um erro factual é um sintoma muito preocupante de uma maneira de pensar. Por que diabos o jornalismo científico fica em categoria diferente de, por exemplo, o jornalismo político? Se alguém da Veja escrevesse “a primeira-dama Marcella” ou “o ministro Gilberto Mendes”, duvido que isso não virasse objeto de Erramos. Não se render a essa lógica óbvia denota uma arrogância e um apego às próprias certezas que não combina com bom jornalismo em lugar nenhum do mundo.
Alguém já disse que quem não é fiel nas pequenas coisas não será fiel nas grandes. Ficadica, Veja.

Carlos II, o Zicado

ResearchBlogging.orgcarlossegundo192.jpgA vida de Carlos II, rei da Espanha morto em 1700, já foi descrita como uma mistura infeliz de infância prolongada além do normal e senilidade precoce. Apelidado por seus súditos de el Hechizado (“o Enfeitiçado”; pessoalmente, eu prefiro a tradução livre “o Zicado”), Carlos só aprendeu a falar aos quatro anos e começou a falar com oito. Relatos da época dão conta de que seus defeitos labiais o impediam de falar e comer direito. (As anomalias bucais são típicas da dinastia do monarca, os Habsburgos, mas aparecem de forma exagerada nele.) Sua cabeça era grande demais; ele sofria de fraqueza muscular, vômitos, impotência e/ou ejaculação precoce. De quem é a culpa? Do inbreeding, ou excesso de consanguinidade, ao longo de 200 anos de reinado dos Habsburgos na Espanha.
A poliesculhambose de Carlos II, acaba de mostrar um grupo de pesquisadores da Galícia na revista “PLoS One”, deriva do fato de que os Habsburgos, como forma de manter suas posses territoriais nas mãos da família, casarem com frequência estarrecedora entre parentes próximos. Por causa de gerações dessa prática, Carlos, o Zicado, que foi o último membro da dinastia na Espanha, era geneticamente equivalente a alguém gerado por um casamento entre pai e filha ou entre irmão e irmã. Confira minha reportagem completa sobre o tema em reportagem desta semana no G1.
Eu adoraria ver esse tipo de análise aplicado a outras dinastias cuja mania de se casar com parentes podia ser ainda mais extrema. Os Habsburgos, que curtiam uma união de prima com primo ou de tio com sobrinha, até que pegavam leve perto dos faraós ou dos Ptolomeus, os macedônios que tomaram conta do Egito da morte de Alexandre, o Grande até a conquista romana. Esses sujeitos costumavam casar irmão com irmã mesmo. Será que há uma correlação entre a decadência das dinastias faraônicas e o período prolongado de inbreeding?
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Em outra notícia arqueológica da semana, americanos identificaram ervas medicinais em amostras de vinho de 5.000 anos e também em outras mais recentes, de 1.500 anos, ambas obtidas no Egito. Já se sabia que a adição de condimentos era uma prática comum no vinho da Antiguidade, em parte porque as más condições de armazenamento transformavam a bebida num vinagre intragável depois de algum tempo.
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Alvarez, G., Ceballos, F., & Quinteiro, C. (2009). The Role of Inbreeding in the Extinction of a European Royal Dynasty PLoS ONE, 4 (4) DOI: 10.1371/journal.pone.0005174

Ruth de Aquino: enterrando a defunta

Com (muito) atraso, e antes de voltar à arqueologia e a coisas mais divertidas, vou meter rapidamente a minha colher no rolo envolvendo Ruth de Aquino, colunista da revista “Época”. Como sabe amplamente quem acompanha o ScienceBlogs, a moça causou uma reação calorosa da comunidade científica ao criticar o que considera o “besteirol” da pesquisa atual em um de seus textos.
Gostaria de ter podido comentar o affair lá no G1, onde trabalho. O fato de eu não ter feito isso levou até alguns amigos e colegas a achar que estava rolando algum tipo de censura; afinal, ambos os veículos pertencem às Organizações Globo. Na verdade, o que ocorreu é mais prosaico: não temos mais um espaço opinativo genérico no G1. (O Blog da Redação foi praticamente desativado para publicação de conteúdo original, porque não conta como audiência de jornalismo para o Ibope. Pois é.) Como seria absurdamente off-topic tratar do tema na minha coluna/blog, que versa sobre evolução, acabei deixando a coisa passar. Mas a liberdade aqui no ScienceBlogs me permite voltar ao tema.
A doença e os sintomas
Anyway: para ser sucinto, eu diria que Dona Ruth não é a doença, é apenas um sintoma dela. Não vejo problema nenhum em fazer humor com ciência e sou contra a tentativa de “sacralizar” o mundo científico. A ciência tem seus elementos de ridículo, assim como todo tipo de empreendimento humano. Também não se faz humor sendo equilibrado ou ponderado. Beleza. Mesmo assim, as coisas que a moça escreveu são preocupantes porque denotam um tipo de pensamento utilitarista e simplista que domina as grandes figuras do jornalismo brasileiro. É a “síndrome do pra quê serve”, batizada em homenagem a um ex-ombudsman da “Folha de S.Paulo” que sempre fazia essa pergunta em relação a reportagens de ciência.
Desculpe, Dona Ruth, mas não dá para fazer ciência pensando só no “pra quê serve”. Alguém já disse que, se os cientistas tivessem organizado um megaprojeto para tentar achar formas de curar o glaucoma, jamais teriam chegado… ao laser, que é o que realmente resolve o problema em cirurgias hoje. A pesquisa básica, por mais inútil que pareça, tem justamente a vantagem de abrir novas avenidas pro conhecimento. Nunca se sabe quando elas vão ser úteis, mas isso não é motivo para deixar de abri-las.
Outro problema sério: essa mania de ficar se esgoelando, dizendo que “o meu, o seu, o nosso” dinheirinho está sendo desperdiçado com estudos sobre a velocidade do pum dos pinguins. Na boa, achar que as pesquisas estilo IgNobel (muitas vezes legais e interessantes, por sinal) monopolizam o financiamento público à pesquisa é ser MUITO cego. Basta comparar o dinheiro que é destinado, em qualquer lugar do mundo, aos estudos sobre câncer com a verba para mapear a biodiversidade de insetos (grande exemplo de pesquisa “inútil”, dirão alguns) para ver que a pesquisa “útil” é desproporcionalmente financiada.
São essas distorções que todos nós, como comunicadores de ciência, temos de trabalhar para combater.

Nós, o almoço

taung.jpgA minha coluna desta semana no G1, que você pode conferir clicando aqui, explora um velho preconceito sobre a evolução humana: a ideia de que éramos grandes caçadores, cuja paixão por abater animais e devorar carne impulsionou nossa domínio do planeta.
Parece que o consumo de proteína animal até foi importante como combustível evolutivo para a nossa linhagem, mas o fato é que fomos muito mais presas do que caçadores ao longo dos últimos 7 milhões de anos. O texto, que copio abaixo, explora em detalhes as evidências fósseis desse fato. Espero que gostem!
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A história sempre acaba sendo contada pelos vencedores – não dá para fugir muito desse fato da vida. Nem a ciência está isenta desse tipo de racionalização meio canalha do passado. O melhor exemplo disso é a imagem dos nossos ancestrais nos relatos mais clássicos sobre a evolução humana. Segundo essa visão, o nosso apetite por carne fresca e as armas letais de pedra que inventamos foram os grandes responsáveis por nos colocar, factual e metaforicamente, no topo da cadeia alimentar da Terra. Seríamos, portanto, caçadores por natureza. OK. Agora pergunte para o Taung o que ele acha de tudo isso.
“Taung”, só para não deixar você boiando, é o apelido dado ao exemplar de Australopithecus africanus na foto acima. A criatura é um hominídeo, um membro da linhagem de primatas da qual descende o homem moderno. Taung era uma criança de uns três anos de idade quando morreu na África do Sul, há cerca de 2,5 milhões de anos. Morreu, aliás, de morte matada, e não de morte morrida: as marcas de “abridor de lata” no crânio do coitadinho deixam isso bem claro. O filhote de australopiteco muito provavelmente foi morto por uma grande águia africana, que usou suas poderosas garras para atravessar seus ossos da face e depois foi “descascando” a carne do infante, de forma tão cuidadosa que a mandíbula dele continuou no lugar ao fim do processo.
Taung, acredite, não é um caso isolado, como mostra o magistral livro “Man the Hunted: Primates, predators and human evolution” (“Homem, o Caçado: primatas, predadores e evolução humana”, ainda sem versão em português). Os primatólogos americanos Donna Hart e Robert W. Sussman usam a obra justamente como uma sacudidela no velho mito dos hominídeos como caçadores supremos. Casando observações de primatas e predadores vivos com a análise cuidadosa de fósseis e artefatos, eles mostram que o correto é imaginar exatamente o contrário. Durante a maior parte da nossa história evolutiva, fomos bucha de canhão para todo tipo de predador, e só viramos caçadores eficientes, capazes de nos defender, há algumas dezenas, ou no máximo um par de centenas, de milhares de anos.
Almoço ambulante
O engraçado é que o mito da invulnerabilidade dos hominídeos “vazou” até para os outros primatas vivos e extintos. Durante muito tempo, o consenso entre os pesquisadores era que os primatas em geral não eram muito predados, quiçá por causa de sua inteligência relativamente avançada. Ledo engano: Hart e Sussman fizeram um apurado levantamento estatístico da literatura científica e descobriram que macacos e afins têm tanta chance de virar prato principal quanto os ungulados (herbívoros de casco). Para um leão, um babuíno tem tanta cara de jantar quanto um antílope, portanto.
aguiacoroada1.jpgA lista de predadores de primatas compilada por eles é de cair o queixo. Vá anotando aí: falcões, águias, corujas, felinos de todos os tipos e tamanhos, canídeos (lobos, chacais etc.) de todos os tipos de tamanhos, ursos, hienas, civetas, genetas, mangustos, iraras, guaxinins, gambás, jacarés e crocodilos, cobras, lagartos, tubarões… e até tucanos. Sério: tucanos. Desses, os mais temíveis parecem ser as águias e os leopardos, que muitas vezes se especializam em comer primatas. É o caso da águia-coroada-africana (um exemplar está na foto ao lado), cuja técnica de abate e “dissecação” é quase idêntica à da ave que matou Taung. Já os leopardos não respeitam nem gorilas adultos, que podem ter o dobro do peso dos felinos. Dedos inteiros de gorilas já foram achados nas fezes desses grandes gatos.
E não pense que os humanos modernos estão livres desse tipo de perigo. Hoje, embora bem organizados e bem armados, ainda podemos ser devorados por quase qualquer tipo de grande predador se dermos uma bobeada. Só para dar um exemplo, em locais da Europa Oriental onde ainda existem populações de lobos, análises estatísticas mostraram que as capturas de crianças humanas por eles aumentam no verão, época em que as mães precisam de comida fácil para seus filhotes novinhos.
Voltando para o registro fóssil, a morte trágica de Taung está longe de ser um fato isolado. Em várias cavernas da África do Sul, crânios detonados de australopitecos mostram que eles foram abatidos pelos famigerados leopardos – buracos na calota craniana têm o tamanho exato dos caninos desses predadores. Crânios de Homo erectus, um hominídeo que viveu a partir de 1,8 milhão de anos atrás e tinha corpo quase idêntico ao nosso, embora cérebro um terço menor (em média), também revelam marcas que só podem ser atribuídas a felinos, em especial leões. Mais alarmantes ainda são os dados vindos de Zhoukoudian, um dos sítios mais importantes para fósseis do Homo erectus, que fica perto de Pequim. Lá, vários crânios mostram indicações claras de predação por hienas: ossos do rosto quebrados a dentadas e base craniana alargada para facilitar o acesso aos miolos, ricos em gordura e muito apreciados pelos animais.
Os dados de que dispomos sugerem que as defesas humanas contra grandes animais, bem como nossa capacidade de caçar ativamente bichos grandes, apareceram tardiamente. O uso de lanças – que permitem matar a uma distância relativamente segura – tem “apenas” 400 mil anos. E os indícios de captura sistemática de grandes herbívoros são ainda mais tardios, começando com os neandertais, há menos de 200 mil anos, e se fortalecendo mesmo apenas com a chegada dos humanos modernos à Europa, há apenas 40 mil anos. A conclusão inescapável é que passamos muitíssimo mais tempo sendo caçados do que caçando nos últimos 6 milhões de anos.
Hart e Sussman forçam um pouco a barra no terço final de sua obra, ao tentar atribuir a evolução das características tipicamente humanas, como nossa estrutura social, postura ereta e até linguagem, a adaptações voltadas principalmente para minimizar os ataques de predadores. Mas isso não lhes tira o mérito de forma nenhuma. A pesquisa cuidadosa das nossas origens é indubitavelmente um dos melhores antídotos contra a arrogância coletiva do Homo sapiens. Saber que fomos comida durante tanto tempo é um bom jeito de nos forçar a calçar as sandálias da humildade de vez em quando.

Um crucificado chamado… João

Para marcar a Sexta-Feira Santa, achei que seria legal apresentar a vocês a única evidência arqueológica do tipo de crucificação praticado pelos romanos na Palestina do século I. Conheçam Yehohanan ben Hagakol (João, filho de Hagakol) — ou o que sobrou dele, pelo menos.
yehohanan.jpg
Sabemos o nome e o “sobrenome” de Yehohanan porque o osso do calcanhar visto acima, atravessado por um grosso cravo de ferro, foi achado dentro de um ossuário, uma espécie de “caixão secundário” (servia para abrigar os ossos após algum tempo numa sepultura convencional), em Giv’at Ha-Mivtar, nas cercanias de Jerusalém. O ossuário continha uma inscrição identificando o morto. Os restos mortais foram achados em 1968 e analisados por Nicu Haas, antropólogo da Escola Médica da Universidade Hebraica de Jerusalém.
yehohanan2.gifO escritor judeu Flávio Josefo, que participou da primeira grande revolta contra Roma que terminou com a destruição da cidade e do Templo de Jerusalém no ano 70 d.C., diz que os legionários se divertiam crucificando os prisioneiros das maneiras mais esdrúxulas possíveis, e o pobre Yehohanan parece ser um exemplo disso. A posição do cravo no osso do calcanhar é tal que provavelmente as pernas estavam presas de lado no madeiro, como na reconstrução ao lado. A árvore usada para fabricar a cruz foi identificada como uma oliveira, o que provavelmente indica que o condenado estava pregado a pouca distância do chão, talvez até no nível do rosto do “público” da execução.
As pernas de Yehohanan estavam quebradas, o que pode indicar dano intencional pelos executores como forma de acelerar a morte do condenado — sem o apoio dos membros inferiores, ficaria muito difícil para um crucificado continuar respirando na posição em que estava na cruz.
Seja como for, o destino do coitado pode até ser considerado relativamente sortudo. Os dados históricos sobre a prática da crucificação indicam que o mais comum era deixar o corpo do criminoso ser consumido por aves de rapina e cães. No máximo, o que sobrava era jogado numa vala comum. É por isso que muitos historiadores duvidam da narrativa tradicional do enterro de Jesus nos Evangelhos — dificilmente Pilatos permitiria que alguém como ele tivesse uma sepultura digna. O caso de Yehohanan, mesmo assim, indica que isso não era impossível.

Não tente fazer isso em casa

Eu sei que está irreconhecível, mas o fundo do banner do blog é esta belíssima imagem do palácio de Knossos, na ilha grega de Creta, provavelmente feita em torno do século 17 a.C. Confira a imagem em alta resolução clicando aqui. Esse troço é conhecido como bull-leaping (“salto sobre touro”. Dã. O que mais seria?) e devia doer pra burro quando dava errado…
bull_leaping.jpg
Ou será que não? Desde que o britânico Arthur Evans escavou Knossos pela primeira vez a partir da virada do século 19 para o século 20, muita gente duvidava que o “bull-leaping”, ao menos como é mostrado nos afrescos cretenses, realmente podia ser praticado. Quem sabe não seria uma imagem idealizada de um ritual iniciático envolvendo touros? Bom, nada como a evidência experimental, não é mesmo? O vídeo abaixo mostra espanhóis modernos replicando as brincadeiras suicidas do pessoal que vivia do outro lado do Mediterrâneo há quase 4.000 anos. Contemplai:

É de cair o queixo.
Mas não pensem que esse é o único detalhe significativo da pintura, nobres leitores. Knossos é o lar de um palácio altamente labiríntico, o que leva muita gente a associar o mito grego do Minotauro sentado no fundo de seu labirinto (não confundir com o do Fauno, por favor) com lembranças longínquas das “touradas” de Creta na Idade do Bronze. Em uma das misturas mais legais já feitas entre arqueologia e ficção, a escritora britânica Mary Renault recontou a história de Teseu, o herói ateniense que matou o Minotauro, como se ele fosse membro de uma trupe profissional de “saltadores de touros”.
Viagens literárias à parte, o aspecto ritual da relação dos antigos cretenses com os touros parece mesmo bastante provável. Em todo o Mediterrâneo antigo, os bovinos machos (e não-castrados, claro) eram comumente usados para representar a força viril do deus dominante do panteão, seja o Zeus grego, o El de Canaã (Palestina) e, sim, o bom e velho Javé, o Deus da Bíblia. (Lembram do Bezerro de Ouro, aquele que quase matou Moisés do coração?)
Outro detalhe que me intriga: os construtores de Knossos não eram gregos. Falavam um idioma até hoje desconhecido e escreviam com a chamada Linear A, ainda não decifrada. Mas a iconografia minoica (como é conhecida a civilização, em homenagem ao mítico rei Minos) influenciou pesadamente a arte grega posterior, sem falar no aparente impacto da religião minoica. Como é que essa transmissão cultural se deu se os gregos romperam quase totalmente com o passado minoico no fim da Idade do Bronze? Vai saber.
A dica veio do blog do arqueólogo israelense Aren Maeir.

Em defesa da arqueologia

“O passado é um outro país; eles fazem as coisas de modo diferente por lá.” A frase é do romancista britânico L.P. (Leslie Poles) Hartley (1895-1972) e, se é que ela peca em algum ponto, é por simplificar o problema. O passado são muitos países diferentes, com um espectro de variação consideravelmente mais radical do que o que existe hoje entre Nova York e um vilarejo do Irã. Este é um blog sobre arqueologia e, portanto, um blog sobre esses inúmeros outros países. Sejam bem-vindos.
Como o título do post indica, meu principal objetivo neste nosso primeiro contato é fazer uma defesa da pesquisa arqueológica. Sou o tipo do sujeito que não se sente muito a vontade com variantes da pergunta “mas pra que serve isso?”. É melhor gostar das coisas (e das pessoas, claro), por elas mesmas, sem justificativas de utilidade e praticidade. Mas devo dizer com a máxima convicção que a arqueologia não é só diversão de “grande caçadores brancos” com mentalidade do século 19. Não é “coleção de selos”, como diz uma caricatura mal-ajambrada da superioridade da física sobre as demais ciências.
Bueno, o que ela é, então? Acho que é sempre produtivo colocar as coisas em termos evolutivos (ok, fellas, eu já tenho um blog de biologia evolutiva; podem imaginar o tamanho do meu vício). A arqueologia é a ciência da história da adaptação das sociedades humanas. E é especialmente adequada para entender as dimensões da adaptação dos grupos humanos ao ambiente e entre si porque depende apenas secundariamente da evidência escrita, que é essencial para a pesquisa histórica.
Um viés a menos
Isso é importante porque, para colocar a coisa em termos simples, artefatos, construções e restos mortais de pessoas e animais não têm interesses ideológicos e, portanto, não tentam te embromar quando vocês os desenterra. É claro que isso não exime os arqueólogos de enfrentar outros vieses e outras distorções — a começar pelos próprios pressupostos teóricos que eles estão usando para escavar e interpretar o que escavam –, mas ao menos força qualquer interpretação a levar em conta a realidade física encontrada em cada sítio.
E, claro, a arqueologia é a única ferramenta para entender culturas desaparecidas que nunca deixaram uma linha escrita. Por coincidência ou não, essas culturas — essencialmente todas as que habitaram a Terra antes do ano 4000 a.C., e muitas das que vieram depois — são cruciais para entender as mudanças mais fundamentais das sociedades humanas, aquelas que deixaram as cicatrizes mais fundas no presente. A origem da agricultura e da criação de animais; a gênese das cidades; o uso dos metais; as primeiras classes sociais; o nascimento das línguas ancestrais das que falamos hoje — são todos eventos ou processos que só podem ser investigados com a ajuda da arqueologia.
Grande coisa, dirá você — essas coisas já ficaram milhares de anos para atrás. Peço licença para discordar. A mão da história jaz sobre todos nós com peso avassalador, e foram esses eventos aparentemente insignificantes do passado remoto que influenciaram (fico tentado a dizer “determinaram”, mas nada no passado é tão simples) cada detalhe do mundo moderno. Mais importante ainda, e voltando ao tema da adaptação, podemos pensar em cada sociedade do passado como um experimento natural que carrega lições valiosas.
Manual de sobrevivência
Para dar alguns exemplos rápidos: quais sociedades sobrevivem e quais perecem em momentos de mudança climática extrema? O que acontece com civilizações que detonam seu próprio ecossistema? Como os impérios nascem e morrem? Por que alguns povos caminharam na direção da complexidade política e outros permaneceram como bandos de caçadores-coletores? O que tudo isso significa para o nosso futuro como espécie (eu apostaria que muito)?
Acho que não é exagero dizer que estamos passando por uma época em que essas perguntas, e possíveis respostas científicas a elas, estão florescendo como nunca. O mais legal é que, para enfrentar esse desafio, os arqueólogos são forçados a trabalharem da maneira mais transdisciplinar possível. Bons dados e boas ideias surgem das encruzilhadas da linguística com a biologia evolutiva, da modelagem matemática com a geofísica, da sociologia com a antropologia biológica. É preciso ser eclético sem ser superficial, enxergar os padrões mas evitar que elas sejam inventados pela sua própria imaginação hiperativa.
Em resumo, é, sim, uma aventura. No melhor sentido da palavra. Vocês me acompanham?
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Uma nota rápida sobre o nome e o visual do blog, antes de nos despedirmos. Eu sei, estou careca de saber, que o bom e velho Henry “Indiana” Jones Jr. não é exatamente o sujeito adequado para refletir como é a arqueologia na vida real. PelamordeDeus, o cara é praticamente um ladrão de tumbas. Contexto arqueológico? Não trabalhamos. (Também nem dava. Toda vez que o principal artefato era tocado, o sítio inteiro desabava…)
E, no entanto, pataquadas à parte, Indy e companhia bela conseguiram inculcar em jovens mentes impressionáveis (tipo a minha aos nove anos de idade) o essencial: o passado pode ser uma aventura. E o passado importa. Portanto, é uma honra colocar a surrada fedora na cabeça, nem que seja metaforicamente. Vamos em frente.

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