Show do Zilhão

zilhones.jpgDireto do túnel do tempo, e em tempos de genoma neandertal (quase) completo, achei que seria legal compartilhar com vocês uma entrevista que fiz na era G1 com o arqueólogo português João Zilhão, da Universidade de Bristol. Presciente, Zilhão falava há mais de uma década da hibridização entre neandertais e humanos, e levou muita incredulidade na cacunda até ser vingado pelos dados recém-publicados na “Science”.
Confira o papo ou, se preferir, ouça diretamente a gravação dele clicando aqui (como eu fiquei contente que isso ainda existe!).
Como alguém que estuda os artefatos, o registro arqueológico deixado pelos neandertais há muito tempo, professor, o que representa agora a possibilidade de ter nas mãos o genoma completo da espécie daqui a dois anos? E o sr. concorda com a idéia de que esses dados vão trazer informações que o registro arqueológico apenas é incapaz de revelar?
João Zilhão – Bom, eu não sou especialista em genética, e penso que o principal objetivo do estudo visando à reconstituição do genoma neandertal não é tanto o conhecimento dos neandertais em si mesmos, porque obviamente quando se seqüencia o genoma de um indivíduo está-se longe de poder estar seguro de até que ponto as variações que encontramos são representativas de toda a população ou toda a espécie à que ele pertence.
Mas o objetivo fundamentalmente é ter um termo de comparação que permita compreender melhor o genoma da humanidade atual. Há problemas de representatividade estatística, do material disponível das amostras, que fazem com que um estudo como este, pelo menos no horizonte tecnológico previsível, tenha um alcance limitado para o conhecimento e o estudo dos neandertais em si mesmos. Em todo caso, evidentemente, a confirmar-se a possibilidade técnica de fazer esta reconstituição, representa do ponto de vista tecnológico um feito impressionante, e dará seguramente informações interessantes, importantes para o estudo da evolução humana, e do sempre polêmico tema da relação entre os neandertais e o homem moderno, digamos assim.

Ainda em relação ao genoma, os primeiros dados parecem sugerir uma coisa que me pareceu muito intrigante, que é a suposta entrada de genes de humanos anatomicamente modernos no DNA neandertal, e aliás se arriscam até a dizer que haveria uma assimetria, no sentido de homens, do sexo masculino, anatomicamente modernos para mulheres neandertais. Eu gostaria de saber como o sr. vê essa possibilidade, porque parece o tipo de coisa que nós vemos acontecer em situações de contato entre povos diferentes, quando um desses povos leva a pior, digamos, como aconteceu na chegada dos europeus à América.

Zilhão – Bom, já como um primeiro ponto, registro com muito agrado que tenha apanhado esse pormenor, um parágrafo importante do artigo da “Nature”, que passou quase silenciado nos comentários que a respeito dele foram feitos na imprensa internacional. E é, do meu ponto de vista, a única coisa inovadora que há nesse artigo, porque, de resto, o que eles apresentam é uma estimativa do período de divergência que eram coisa já conhecida, já sabida.
Do ponto de vista dos resultados concretos o mais interessante é essa passagem. Que embora apresentada a título de especulação, é aparentemente suficientemente forte para que eles tenham arriscado a publicar nesse artigo. E é um resultado muito interessante porque vai ao encontro do que, com base no registro fóssil e no material arqueológico, e também com base no estudo do ADN [DNA] nuclear da humanidade atual, vem ganhando cada vez mais peso de uns cinco anos para cá, a noção de que, no momento do contato entre neandertais e modernos, como não podia deixar de ser, houve processos de miscigenação entre as duas populações.
A especulação avançada pela equipe do Päabo é que, nesse processo de miscigenação, terão sido mais freqüentes os casos de acasalamento entre homens, entre aspas, modernos, e mulheres neandertais do que o inverso, ou seja, o acasalamento entre homens neandertais e mulheres modernas. Bom, há que esperar pela confirmação. Se se confirmar que essa foi a regra geral, é interessante do ponto de vista da modelização da forma como o processo de miscigenação se deu, explicaria em particular por que é que não há ADN mitocondrial [que só é transmitido de mãe para filho] dos neandertais nas populações atuais.
Em todo caso, independentemente da direção predominante da troca, o importante é o facto do intercâmbio genético, independentemente do facto de ele ter sido sexualmente desequilibrado. Uma vez que estamos a falar da reprodução sexual, a partir do momento em que há cruzamento e há produção de descendência, significa que há recombinação do genoma dos dois lados, independentemente do que diz respeito à componente moderna ter sido predominantemente de origem masculina e a componente neandertal de origem feminina. O que é importante é que a descendência é necessariamente mista.
A não ser que nós especulemos que os mestiços resultantes desses cruzamentos não deixavam descendência fértil ou eles próprios só se cruzavam com neandertais puros, ou consigo mesmos, com outros mestiços, e que portanto nunca chegou a entrar um contributo genético neandertal nas populações modernas – o que é uma especulação que eu penso, enfim, desprovida de fundamento, completamente irrealista – a implicação é de que há genes neandertais que passaram para a humanidade moderna, e existe a possibilidade, ou é legítimo supor, que no presente sobreviveram alguns desses genes.
Mudando um pouco de assunto para o lado realmente arqueológico, parece ter havido muitas idas e vindas recentemente no debate sobre a convivência entre humanos anatomicamente modernos e neandertais na Europa, principalmente em relação à escala de tempo dessa convivência. Na sua opinião, com base nos dados que nós temos hoje, qual teria sido a ordem de grandeza temporal dessa convivência?
Zilhão – O que os dados parecem demonstrar cada vez mais é que esse período de convivência, na escala regional, terá sido muito curto. Eu sou da opinião que não pode ter demorado, dada a forma de funcionamento das sociedades de caçadores-coletores, e num quadro em que aceitamos a miscigenação como normal, não parece razoável esperar que as duas populações tenham convivido na mesma região sem se misturar. Portanto, a miscigenação, o acasalamento transformaria aquilo que era inicialmente duas populações separadas numa única população, herdando em proporções que há que estudar e podem ter variado, de lugar para lugar, percentagens diferentes de cada população.
E quando olhamos para as datações disponíveis, criticadas como deve ser e lidas como deve ser, rejeitando aquelas que por diversas razões não podem ser aceitas, o quadro que obtemos é bastante claro. É bastante claro até certo ponto porque a datação por radiocarbono tem uma margem de incerteza, e essa margem de incerteza é maior do que o período de coexistência, na escala regional, entre as duas populações.
Então, o que acontece? Vemos que os últimos neandertais e os primeiros modernos numa mesma região datam todos, por exemplo, da volta de 36.500 anos antes do presente, em anos de radiocarbono [que não correspondem exatamente aos anos de calendário]. Mas quando a gente diz “à volta de” queremos dizer um intervalo de tempo de mil anos. Ora, em mil anos, passa-se muita coisa. E quando se diz que é muito curto estamos a dizer que é da volta de mil anos. Mas, na verdade, utilizar “curto” para qualificar um intervalo de tempo dessa duração é um bocado forçar o sentido das palavras, mas é isso que quer dizer efetivamente.
Isso na escala regional. Não quer dizer que na escala continental não tenha havido regiões da Europa onde o processo do contacto foi, digamos assim, mais tardio, onde a chegada de grupos de homens modernos se deu significativamente mais tarde, tão mais tarde que o radiocarbono detecta a diferença, do que em outras regiões da Europa. É o caso, nomeadamente, da Península Ibérica.
O ponto de vista consensual da comunidade arqueológica de que houve uma sobrevivência, no conjunto da Península Ibérica, ao sul da depressão do rio Ebro, ou ao sul, mais ou menos, dos Pirineus – na província de Valência, Andaluzia, a Meseta, e portanto Portugal – até cerca de 30 mil, 32 mil anos de radiocarbono. O que é uma sobrevivência de pelo menos 5.000 anos a mais em comparação com o que se passa ao norte dos Pirineus, em França, na Romênia, na Itália ou na Europa Oriental.
Voltando à questão do contato e do sinal arqueológico que ele pode deixar, um dos fenômenos mais intrigantes do fim da Era do Gelo na Europa é o aparecimento da cultura chatelperroniana entre os neandertais, que parece mostrar o mesmo tipo de adornos, colares, cultura simbólica complexa que os humanos modernos mostravam. Muita gente vê isso como prova do contato entre os povos, até como uma forma de aculturação dos neandertais pelos modernos, mas até onde sei o sr. discorda. Qual seria então a melhor forma de explicar o fenômeno do chatelperroniano entre os neandertais?
Zilhão – Mais uma vez, é um problema empírico. É concebível, é legítimo supor que o aparecimento de objetos de adorno e de uma cultura simbólica entre os neandertais é o resultado de um processo de aculturação, mas para que isso acontecesse, nós temos de ter modernos, com sua própria cultura simbólica, nas imediações, no tempo em que começa esse fenômeno entre os neandertais. Por que do contrário não há aculturação – para haver aculturação, tem de estar situado ali, ao lado, na mesma época, grosso modo.
Na minha opinião, o que os dados arqueológicos mostram de forma absolutamente convincente é que a emergência desse comportamento simbólico entre os neandertais é anterior – e é anterior de vários milhares de anos – à mais antiga evidência fóssil ou arqueológica da presença de homens modernos na Europa, e portanto a explicação de aculturação não pode funcionar, tem de se arranjar outra.
E sobretudo, se tivermos em conta que esses objetos de adorno que aparecem no castelperronense, ou chatelperroniano, de França são completamente diferentes daqueles que caracterizam as mais antigas culturas simbólicas em África ou no Próximo Oriente. Em África, os mais antigos objetos de adorno que se conhecem são conchas marinhas, de caracol marinho, que existe nas costas da África do Sul e que aparece perfurado, como de um colar ou de um adorno de outro tipo, numa gruta chamada Blombos, na África do Sul, com uma cronologia de uns 75 mil anos.
Vamos a encontrar depois, no Próximo Oriente, num abrigo ou gruta do Líbano e outro no sudeste da Turquia, muito próximo, em níveis com 40 mil, 45 mil anos de idade. O mesmo tipo de adorno, exatamente o mesmo. Uma espécie diferente, um caracol mediterrâneo, mas o mesmo tipo de concha. A diferença só é apreciativa para um especialista na classificação de moluscos marinhos.
Ou seja, durante 30 mil ou 40 mil anos, não há, em África ou no Próximo Oriente, em associação com o homem moderno, nenhum outro objeto de adorno que não sejam conchas marinhas, ou, em algumas zonas do interior da África, contas pequeninas, pequenos discos com alguns milímetros de diâmetro, feitos a partir de casca do ovo da avestruz. É tudo o que há.
Ora, na Europa, os adornos que aparecem entre os neandertais são completamente diferentes, são dentes de animais perfurados. São caninos de raposa, incisivos de bisonte [bisão] ou de bovídeos selvagens, são falanges de rena, são fósseis – ou então, quando são conchas marinhas, como no caso de culturas neandertalenses da Itália e da Grécia, são tubos de uma concha alongada, que eles cortavam nas duas extremidades e faziam uma espécie de tubo, que são muito diferentes de tudo que é conhecido entre as culturas simbólicas do homem moderno.
Essa diferença não é um problema de que uns faziam adornos com o que tinham à mão, e o que tinham à mão eram conchas marinhas, e outros tinham dentes de animais…
Não é mera questão de matéria-prima.
Zilhão – Não, todos eram caçadores, todos tinham a opção de fazer pendentes com dentes de animais, mas os homens modernos não o fizeram. E não o fizeram até chegarem à Europa. Os primeiros objetos de adorno desse tipo que se conhecem são posteriores ao contato com os neandertais, e pertencem à chamada cultura aurignacense. Essa cultura aurignacense representa precisamente a combinação, a junção de adornos que anteriormente só se conhecem entre os neandertais e adornos que anteriormente só se conhecem entre homens modernos. E ela data exatamente do momento do contacto, é a cultura que aparece a seguir ao momento do contacto.
Por isso, eu penso que a explicação mais lógica, em qualquer outro contexto que não estivesse tão viciado pelos preconceitos que no passado houve contra os neandertais, em qualquer outro contexto que se fosse falar do contacto entre duas culturas aborígenes da América do Sul, do Brasil, por exemplo, ou da América do Norte numa situação arqueológica desse tipo, a interpretação é óbvia. A cultura aurignacense representa a fusão de duas culturas, na qual uma delas contribuiu com seu componente.
Portanto, vejo que, em vez de aculturação – a aculturação é cronologicamente impossível – o que há que explicar é o padrão que vemos no aurignacense como mais uma prova, juntamente com a prova genética e a prova dos fósseis, de que do contato resultou uma miscigenação também ao nível da cultura, não só da biologia.
E no nível dos utensílios de pedra não há vestígios, aparentemente não se vê nenhuma contribuição neandertal, o aurignacense é muito diferente do castelperronense. Da fusão resultou uma cultura em que a tecnologia da pedra é aquela trazida pelos homens modernos, mas em que a simbologia da representação do indivíduo ou do grupo social resulta de uma fusão de duas tradições diferentes, a dos modernos, remontando a 30 mil, 40 mil anos e a dos neandertais, mais recente, mas com toda a probabilidade, tendo emergida a neandertal de forma independente.
Mas fala-se muito de uma “Grande Explosão Criativa” na fabricação de artefatos, surgimento da arte e do comportamento simbólico etc. na Europa desse período. Diante desses dados o sr. diria então que há uma aura de mito em torno dessa explosão? Ela teria sido muito menos repentina do que se diz?
Zilhão – O problema com esse conceito da explosão criativa é que ele amalgamava processos que, vistos com a cronologia mais refinada, mais precisa que temos hoje em dia, nós sabemos que ocorreram de forma escalonada, e não simultânea.
Há um elemento novo, que se tenta amalgamar com essa história dos objetos de adorno, que é a arte figurativa. Mas ela, ao contrário do que muitas vezes se diz, não aparece ao mesmo tempo. Ela data do final do período aurignacense, mais de 5.000 anos após o contacto. São as estatuetas de marfim das jazidas do sul da Alemanha e a arte parietal [pintada ou gravada em paredes de caverna] da gruta de Chauvet, em França, da ordem dos 31 mil, 32 mil anos. Não há nada mais antigo do que isso. Parece ser algo que surge relativamente tarde e relativamente de repente. E há que ter uma explicação para isso.
Mas, dada a cronologia do processo, a arte figurativa não é algo que possa ser considerado uma propriedade dos humanos modernos que chegavam à Europa, que era um sintoma do que eles tinham e os outros não tinham, e por isso acabaram por predominar. Utilizar a arte figurativa para raciocinar sobre o que aconteceu no momento do contacto é a mesma coisa que nós estarmos a utilizar a invenção dos computadores, ou das apresentações Powerpoint, para explicar o que aconteceu na Babilônia há 5.000 anos.
Isso é o mais intrigante, e o mais difícil de explicar: qual o gatilho desses eventos, desse aparecimento da capacidade simbólica que surge “de repente”.
Zilhão – Penso que a explicação virá a ser encontrada no interior de uma família de explicações que têm que ver com a demografia e a organização social. Neste caso, eu penso que essas coisas aparecem quando se tornam necessárias. Ora, o que são os objetos de adorno? São formas de identificação da pessoa como pessoa, do grupo etário a que pertence, o estatuto social que tem, ou a etnia com a qual tem a lealdade.
Ora, esse tipo de necessidade só existe em sociedades onde, por um lado, existe a probabilidade de no cotidiano virmos a encontrar outra pessoas que nunca conhecemos, nunca vimos, nem sequer falam a mesma língua que nós.
Quando isso acontece, a existência de adornos que transmitem instantaneamente uma informação sobre a pessoa se tornam um passaporte ou um documento de identidade. Esses elementos, então, traduzem a emergência de patamares de densidade populacional que criam situações em que a identificação é muito importante.
A explicação da arte tem a ver com o mesmo tipo de fenômenos, mas num patamar ainda mais elevado, em que aparecem questões ligadas à apropriação do território, na qual o território, por meio dos antepassados míticos ou totêmicos, pertencem a esta gente e não àquela. E se não apareceu antes, é porque não fazia falta (risos).
A explicação alternativa é que essas coisas não apareciam porque a humanidade não tinha a capacidade cognitiva para isso. Mas se vamos por esse caminho diremos que os computadores também só apareceram no século 20 porque antes a humanidade não tinha a capacidade cognitiva – pelo contrário, a prova de que o inventou é que tinha a capacidade cognitiva para o fazer anteriormente.
Deixei a questão mais complicada para o final. Na opinião do sr., que tipo de mente tinham os neandertais? Era uma mente fundamentalmente igual à nossa?
Zilhão – (Suspiro) Como arqueólogo, só posso dizer que os dados não suportam o ponto de vista de que a mente neandertal e a dos humanos modernos funcionassem de maneira diferente. Não há qualquer prova de que isso fosse assim. Agora, a gente não pode viajar no tempo, só podemos raciocinar com base no que chegou até nós, então certeza absoluta nunca vamos ter.
A especulação sobre possíveis diferenças é legítima, até interessante. Agora, como tudo que tem a ver com o conhecimento, há que distinguir entre o que é ciência e o que é especulação. Se eu for escrever um artigo científico, só posso dizer que não há qualquer diferença visível. Mas, se eu tiver a intuição de que uma diferença existe, é inteiramente legítimo que defenda esse ponto de vista, mas devo fazê-lo num romance, numa novela, ou num filme de ficção científica, ou de ficção pré-histórica (risos).
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Motivação

Ocasionalmente — muito ocasionalmente — eu me pergunto por que eu entrei nessa. Ah, foi por isso:
“Examinando os últimos 30 anos, ele sentiu que podia dizer que seu estado de espírito mais permanente, ainda que muitas vezes encoberto ou suprimido, tinha sido desde a infância o desejo de voltar. De caminhar no Tempo, talvez, como os homens caminham em longas estradas; ou de examiná-lo, como os homens podem ver o mundo de uma montanha, ou a terra como um mapa vivo debaixo de uma aeronave. Mas, de qualquer modo, ver com olhos e ouvir com ouvidos: ver a face de terras antigas e mesmo esquecidas, contemplar os homens de antanho caminhando e ouvir suas línguas tal como eles as falavam, nos dias antes dos dias, quando falas de linhagem esquecida eram ouvidas em reinos há muito destruídos nas costas do Atlântico.”
J.R.R. Tolkien, claro — em “The Lost Road and Other Writings” (a tradução é minha). Valeu, Professor. Daqui a pouco eu volto.
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Meu reino por um cavalo

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Não é à toa que Ricardo III não conseguia arrumar um cavalo no meio dessa pusta confusão aí de cima. Bagunça à parte, arqueólogos liderados pelo britânico Glenn Foard acabam de tornar o cenário menos confuso ao finalmente identificar o local onde Ricardo tombou durante a batalha de Bosworth, evento que elevou a então relativamente obscura família galesa Tudor ao trono da Inglaterra e encerrou a chamada Guerra das Rosas (ui!) em 22 de agosto de 1485.
Com a ajuda de detectores de metal, a equipe achou uma série de artefatos dos exércitos que participaram da batalha em Fen Lane, Leicestershire, entre eles 28 balas de canhão e pequenos javalis de prata que eram o emblema dos partidários de Ricardo III. O rei, morto em combate, mas imortalizado na peça homônima de Shakespeare, perdeu a vida nas mãos das forças de Henrique Tudor, futuro Henrique VII, pai de Henrique VIII e avô da poderosa Elizabeth I.
O jornal britânico “The Guardian” traz mais detalhes sobre os achados.
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Guerra santa

Fazia tempo que eu não babava tanto com uma descoberta arqueológica (embora nesse caso eu seja obviamente suspeito pra dizer, claro). Está em todas as agências de notícias o achado de pelo menos 650 objetos de ouro e 530 objetos de prata em Staffordshire (centro-oeste da Inglaterra), provavelmente datados do século VII, época em que a área fazia parte do reino anglo-saxão da Mércia. Estamos falando de cerca de 5 kg de ouro puro, indicando que os guerreiros germânicos que conquistaram a Grã-Bretanha depois da queda do Império Romano construíram uma civilização bem mais opulenta do que se imaginava antes.
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Como testemunho da cultura guerreira dos mercianos, a imensa maioria desses objetos ricamente decorados é de uso bélico (ou ao menos cerimonial-bélico; não é muito esperto partir para a porrada coberto de metais preciosos). São bainhas de espadas, cabos de espadas, pedaços de elmos (como a linda peça vista acima, que provavelmente protegia a parte lateral do rosto do usuário).
Mais interessante ainda é a folha de ouro vista abaixo, com a inscrição latina (com errinhos de ortografia) Surge domine et dissipentur inimici tui et fugiant qui oderunt te a facie tua. Na tradução da CNBB: “Levanta-te, SENHOR, que se dispersem os inimigos! Fujam diante de ti os que te odeiam”. CNBB? Sim, a frase é do Antigo Testamento (livro de Números, capítulo 10, versículo 35). Era a frase que, segundo a Bíblia, Moisés pronunciava toda vez que a Arca da Aliança punha os israelitas em marcha no deserto.
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Não é nem um pouco esquisito que ex-bárbaros recém-cristianizados como os mercianos usassem a Bíblia como inspiração para a guerra. A junção entre fé e coragem militar foi aparentemente uma das grandes estratégias da Igreja para conseguir converter as elites bárbaras. E isso aparece até na poesia religiosa em anglo-saxão ou inglês antigo: num dos poemas da época, The Dream of the Rood (“O Sonho do Lenho”), a cruz na qual Jesus foi pregada fala com ele com a mesma linguagem empregada pelos guerreiros anglo-saxões em relação a seus lordes guerreiros.
O porquê da minha empolgação? É muito simples, Comissário. Os cavaleiros de Rohan em O Senhor dos Anéis falam o dialeto anglo-saxão merciano, que Tolkien apreciava muito. Aliás, o próprio nome Mark (Marca dos Cavaleiros) é claramente derivado do reino da Mércia. Westhu hál!

Rohan e Gondor

runasvarangianas.jpg“Sveinn e Ulfr ergueram esta pedra em memória de Halfdan e em memória de Gunnar, seus irmãos. Eles encontraram seu fim no Oriente.” Bem-vindos à história sangrenta e romântica da Guarda Varangiana, os vikings que viraram os guerreiros mais fiéis do Império Bizantino. Esse epitáfio aqui ao lado, ao que tudo indica, foi criado por dois deles depois que voltaram para seu lar, a Suécia.
A Guarda Varangiana é um dos fenômenos mais esquisitos e fascinantes da história medieval. O crescimento populacional e a tradição guerreira na Escandinávia fizeram com que mercenários de fala germânica se espalhassem pela Europa Oriental, pelo Egeu e até pelo Cáucaso a partir do século X. Um batalhão deles se tornou a guarda pessoal dos imperadores bizantinos, uma unidade de elite que manteve sua identidade étnica, apesar de ter se cristianizado.
Isso explica uma descoberta completamente maluca: inscrições rúnicas em plena catedral (hoje mesquita) de Santa Sofia, em Istambul. A inscrição — hoje ilegível, fora, curiosamente, o nome Halfdan, de novo — está abaixo.
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Não resisti à referência tolkieniana no título. A Guarda Varangiana tinha com Bizâncio uma relação muito parecida com a de Rohan e Gondor: uma cultura guerreira mais “primitiva” aliada a um império antigo e sofisticado. Ademais, as runas que aparecem em O Hobbit (não as de O Senhor dos Anéis, é bom lembrar) são versões das que se vê na inscrição que abre este post.

Carlos II, o Zicado

ResearchBlogging.orgcarlossegundo192.jpgA vida de Carlos II, rei da Espanha morto em 1700, já foi descrita como uma mistura infeliz de infância prolongada além do normal e senilidade precoce. Apelidado por seus súditos de el Hechizado (“o Enfeitiçado”; pessoalmente, eu prefiro a tradução livre “o Zicado”), Carlos só aprendeu a falar aos quatro anos e começou a falar com oito. Relatos da época dão conta de que seus defeitos labiais o impediam de falar e comer direito. (As anomalias bucais são típicas da dinastia do monarca, os Habsburgos, mas aparecem de forma exagerada nele.) Sua cabeça era grande demais; ele sofria de fraqueza muscular, vômitos, impotência e/ou ejaculação precoce. De quem é a culpa? Do inbreeding, ou excesso de consanguinidade, ao longo de 200 anos de reinado dos Habsburgos na Espanha.
A poliesculhambose de Carlos II, acaba de mostrar um grupo de pesquisadores da Galícia na revista “PLoS One”, deriva do fato de que os Habsburgos, como forma de manter suas posses territoriais nas mãos da família, casarem com frequência estarrecedora entre parentes próximos. Por causa de gerações dessa prática, Carlos, o Zicado, que foi o último membro da dinastia na Espanha, era geneticamente equivalente a alguém gerado por um casamento entre pai e filha ou entre irmão e irmã. Confira minha reportagem completa sobre o tema em reportagem desta semana no G1.
Eu adoraria ver esse tipo de análise aplicado a outras dinastias cuja mania de se casar com parentes podia ser ainda mais extrema. Os Habsburgos, que curtiam uma união de prima com primo ou de tio com sobrinha, até que pegavam leve perto dos faraós ou dos Ptolomeus, os macedônios que tomaram conta do Egito da morte de Alexandre, o Grande até a conquista romana. Esses sujeitos costumavam casar irmão com irmã mesmo. Será que há uma correlação entre a decadência das dinastias faraônicas e o período prolongado de inbreeding?
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Em outra notícia arqueológica da semana, americanos identificaram ervas medicinais em amostras de vinho de 5.000 anos e também em outras mais recentes, de 1.500 anos, ambas obtidas no Egito. Já se sabia que a adição de condimentos era uma prática comum no vinho da Antiguidade, em parte porque as más condições de armazenamento transformavam a bebida num vinagre intragável depois de algum tempo.
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Alvarez, G., Ceballos, F., & Quinteiro, C. (2009). The Role of Inbreeding in the Extinction of a European Royal Dynasty PLoS ONE, 4 (4) DOI: 10.1371/journal.pone.0005174

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