Um jardim murado

Enquanto continuo brigando pra voltar a publicar com frequência por aqui, eis algo que vos pode divertir e/ou interessar minimalmente: um conto que publiquei na revista Pesquisa Fapesp em 2006, que se inspira nos famigerados hobbits da ilha de Flores.
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“Droga de GPS”, xingou Sean.
Em retrospecto, tinha sido uma péssima idéia desde o começo. Todo mundo estava de folga no fim de semana, e boa parte do pessoal tinha corrido para pegar o primeiro vôo para Jacarta, ou mesmo para Bali (apesar dos alertas de bomba). Mas ele tinha decidido “conhecer a floresta um pouquinho melhor”.
“A gente passa dia e noite curvado dentro desses muros de calcário. Eu adoro esse trabalho, mas tem um monte de espécies por aí que a gente deveria conhecer antes que elas entrem para o registro fóssil, moçada”, dissera então.
Ele se lembrava de que Pete, o paleoantropólogo-chefe, tinha rido e sacudido a cabeça.
“Companheiro, agora eu sei por que você entrou nesse negócio de caçar hominídeo. Você é uma droga de sonhador, isso sim.”
E agora já passava das três e, depois do que tinha parecido um cochilo inocente encostado a um tronco, ele estava inegavelmente perdido. Nem adiantava tentar achar o leste pela posição do Sol debaixo de um dossel daqueles. “Tenho de encontrar uma clareira. Não deve ser tão difícil com tanta madeireira por aí hoje em dia”, pensou.
Sean escolheu uma direção qualquer e foi em frente. Os pássaros ficaram estranhamente quietos depois de um tempo, até que ele viu um trecho de céu aberto e escutou o que parecia ser uma voz de criança a algumas dezenas de metros de distância. Talvez fosse uma família de lavradores, levando a vida dura da floresta tropical.
Ele então entrou na clareira e olhou para baixo – havia uma depressão não muito funda, cheia de grama baixa, moitas e pequenas flores. “Eles não chamam esse lugar de Flores à toa”, sorriu Sean consigo mesmo.
O antropólogo viu os meninos cujos gritos escutara: tinham uns cinco ou seis anos, pelo jeito. Estavam de costas para ele e andavam nus pela grama, com bastões na mão. Ele os saudou em indonésio (usando as poucas palavras que conhecia) e, por alguma razão, aquilo pareceu assustá-los. Correram e gritaram de novo, e três garotos ligeiramente mais velhos, também com algum tipo de bastão, saíram de trás de uma moita mais alta, caminhando rápido na direção de Sean. Não pareciam lá muito contentes.
E então, quando chegaram perto o suficiente para que ele visse o rosto deles, o mundo de Sean virou pó.
Sean não precisava medir suas mandíbulas nem plotá-las ao lado de uma amostra de povos do resto do mundo para saber, para sentir nos próprios ossos que eles ficavam de fora da variação normal do Homo sapiens — que, literalmente, eles não eram humanos modernos. As cabeças eram tão pequenas — Sean, um australiano grandalhão, quase seria capaz de cobri-las inteiras com as duas mãos. E os “garotos mais velhos” tinham tanto pêlo no corpo — tanto quanto um europeu adulto — que só podiam ser “gente grande”.
O antropólogo estava tão atordoado que precisou de um tempo para perceber que um triângulo de bastões com pontas de pedra acabara de cercá-lo. Sons (aquilo eram palavras?) saíam das bocas nervosas dos ilhéus. Sean respirou fundo. “Pelamordedeus, não me vá estragar tudo, companheiro”, resmungou. Limitou-se a levantar as mãos, palmas viradas para fora, e a sorrir, tentando não olhar os lanceiros direto nos olhos.
Por alguma razão, isso pareceu acalmar os ilhéus. Um deles veio até Sean, uma figura minúscula, de ar digno, e olhou fundo nos olhos cinzentos do antropólogo. Ele também sorria.
Seja como for, os juvenis (ou crianças?), depois daquele olá assustador em indonésio, tinham se acalmado e estavam se aproximando de novo. Meninos são meninos em qualquer lugar: o menorzinho cutucou o traseiro de Sean com a lança e saiu correndo e rindo (sim, eles riam). Ele logo voltou para inspecionar o gigante de cabelo vermelho. Sean tocou o rosto dele e, devagarzinho, abriu a boca do menino. Havia linhas de crescimento nos dentes: o garoto claramente tinha passado por maus bocados, mas, no geral, parecia saudável.
O sol poente deu a Sean uma boa idéia de onde diabos estava, afinal de contas, e ele sentiu um impulso esquisito para voltar para a base o mais rápido possível. Passava das oito e uma chuva furiosa estava encharcando o mundo quando chegou. Não conseguia ligar o telefone, ainda não. Sean secou o cabelo e decidiu que precisava de uma boa leitura. O terceiro chimpanzé estava em cima da cama, e ele retomou o livro de onde tinha parado na noite anterior. Coincidência ou não, o tema era a Tasmânia.
“Uma vez que os únicos barcos dos tasmanianos eram jangadas que só serviam para jornadas curtas, eles não tiveram nenhum contato com outros humanos desde que o aumento do nível do mar separou a Tasmânia da Austrália há 10 mil anos. Confinados no seu universo particular por centenas de gerações, eles sobreviveram ao mais longo isolamento da história humana moderna – um isolamento que só foi retratado de forma parecida pela ficção científica. Quando os colonos brancos da Austrália finalmente encerraram esse isolamento, não havia na Terra dois povos menos equipados para entender um ao outro do que os tasmanianos e os brancos.”
Sean leu sobre a caçada, o confinamento e o extermínio lento e sistemático de cada homem, mulher e criança tasmaniana. Leu sobre os cientistas vitorianos enlouquecidos que mutilaram, enterraram, escavaram e voltaram a enterrar os restos daquela gente como se fossem troféus, como curiosidades que só se prestavam aos shows de horrores ou aos museus. Leu sobre Truganini, que tão horrorizada estava com tal destino que fez seus guardiões brancos prometerem que seu corpo seria jogado em mar aberto. Uma promessa que, claro, eles não cumpriram.
Sean estremeceu. Não conseguia tirar os olhos e os dentes minúsculos do menino da cabeça. Seu O senhor dos anéis também estava lá (ótima coisa para carregar quando se procura hobbits, pensou ele, embora não desse jeito tão literal). Sabia exatamente onde abrir o livro: era tão amargamente apropriado. Ele quase podia ouvir a voz de Gildor Inglorion falando com Frodo: “O vasto mundo está à volta de vocês: podem se cercar por dentro, mas não podem cercá-lo para fora para sempre”.
“Dane-se. Eu pelo menos posso tentar”, respondeu Sean.
Quando seus colegas voltaram, não ouviram nem uma palavra sobre o encontro na floresta. A equipe ficou desapontada ao saber, alguns anos mais tarde, que o governo indonésio tinha declarado o sítio parte de um santuário inviolável de vida selvagem, proibindo futuras escavações. Aparentemente, havia uma espécie muito ameaçada de primata ali. À boca pequena, as pessoas comentavam que Sean era muito amigo dos lobistas.

Artefatos que importam: a taça de Nestor

nestor.jpgNão basta ser uma das inscrições mais antigas (datada de algum momento do século VIII a.C.) usando o alfabeto grego: é preciso ter estilo, saca? Poesia. E erotismo. Erotismo sempre é bom. Na tela:
“Sou a taça de Nestor, da qual é bom beber
Quem quer que beber desta taça, imediatamente
será tomado pelo desejo de Afrodite, a de bela coroa”
Veja bem, Afrodite não era a Cristiane Torloni (uma bela coroa), ela só USAVA uma bela coroa.
Esclarecido esse ponto importantíssimo, e falando sério agora, a tradução acima é conjectural — a taça de cerâmica, oriunda da ilha de Ischia, perto de Nápoles, está com alguns caquinhos faltando. Como você pode conferir na transcrição do texto abaixo, os gregos dessa época e lugar ainda escreviam da direita para a esquerda — ainda a influência do alfabeto fenício original.
nestor2.jpg
Especulações sobre o significado dos versos não faltam. Há quem diga que o autor quis fazer uma alusão a Nestor, lendário rei e conselheiro dos poemas de Homero, contrastando a riqueza do sujeito com a simplicidade da taça.
Também já foi apontado que os versos teriam sido escritos durante um banquete, em meio às brincadeiras eróticas entre homens que eram comuns na cultura grega. Mais tarde, a taça foi usada como oferenda no túmulo de um menino.
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Não é a mamãe

Do paleoantropólogo americano John Hawks, de quem sou fã, sobre o papo alucinado de tentar clonar um neandertal algum dia (já que o genoma, como sabem os leitores deste blog, está por aí mesmo):
“Estamos falando de uma população antiga de seres humanos aqui. Não é como as quaggas [espécie extinta de zebras]; eles estão mais para os tasmanianos — um grupo de pessoas cuja cultura não sobreviveu, mas que mesmo assim ainda possui muitos descendentes vivos. A conversa não deveria ser sobre clonagem, deveria ser sobre a consequência lógica: adoção. Quem é que vai se voluntariar para adotar uma criança neandertal, e por que, em vez disso, não está ajudando crianças vivas?”
Parece besta, eu sei, mas a empolgação biotecnológica às vezes borra a fronteira entre o que se pode fazer e o que se deve fazer.
Este blog está em processo de ressurreição. Stay tuned.
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