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Sobre penas e escamas: a nova roupa do rei

Recentemente uma nova publicação causou uma acalorada discussão entre amantes dos dinossauros na internet. Trata-se de um assunto muito mais polêmico que mamilos. Claro, só poderíamos estar falando de PENAS em dinossauros. Ou talvez, nesse caso, a ausência delas.

Polemica

No início do mês Phill Bell e colaboradores, incluindo os Phill Currie, Robert Bakker e Pete Larson (alguns paleontólogos de renome na área), publicaram um artigo na revista Biology Letters intitulado Tyrannosauroid integument reveals conflicting patterns of gigantism and feather evolution, ou, traduzindo: “O integumento de tiranosauróides revela um padrão conflituoso entre gigantismo e a evolução das penas”. Esse artigo foi amplamente noticiado pela mídia geral e foi justamente a causa de uma grande reviravolta na internet. Em especial, entre fãs de dinossauros (e, mais significativamente,  entre aqueles fanáticos por Jurassic Park).

Obviamente, esse foi mais um caso em que a mídia leiga deitou e rolou. Dinossauros… tiranossauro… e penas. Ingredientes mágicos pra escrever besteiras vender notícias/atrair leitores! Um monte de gente que simplesmente não entende nada desses assuntos resolveu escrever sobre isso e pipocaram manchetes como: “O Tiranossauro não tinha penas!”, “Tiranossauro era coberto de escamas, como um lagarto” ou “Jurassic Park estava certo!”. É claro que o corpo das notícias não foi melhor do que isso.

tyrannosaurus-rex-conway-1024x1024Um efeito em cadeia teve início e monte de outras pessoas prontamente compartilhou (sem ler, claro) nas redes sociais a notícia. Uma parte dessas mesmas pessoas, então, começou a advogar a manchete jornalística como a descoberta paleontológica do ano e a verdade definitiva sobre os tiranossauros.

Quando abri minha linha do tempo no Facebook, ela se parecia com isso:
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Depois de me inteirar sobre o assunto, mais uma vez lamentei sobre como uma divulgação mal feita de um resultado de estudo científico pode ser danosa. Um artigo tão legal, sendo mal compreendido e passando a ser usado quase como um “argumento bíblico” por algumas pessoas que não querem, de forma alguma, se desapegar de ideias ultrapassadas. Foi um verdadeiro desfile de falácias. E é por isso que viemos tentar esclarecer um pouquinho esse assunto!

Primeiramente, não podemos deixar de falar, que no mesmo dia que o artigo de Bell e colaboradores foi publicado, um outro artigo magnífico sobre um filhote de ave (Enanthiornithine) do Cretáceo preservado em âmbar de Myanmar saiu do prelo no periódico ‘Gondwana Research‘. Um artigo de grande impacto no meio paleontológico, que passou praticamente despercebido pela mídia e consequentemente, o público geral. Uma pena (me perdoe o trocadilho).

Para não propagar a injustiça, seguem aqui algumas fotos e o link do artigo para quem tiver interesse em ler sobre o assunto:

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Agora, quanto às penas em tiranossauros, é importante começar desde já dizendo que, de tudo que o artigo diz, a única coisa que ele NÃO diz é que tiranossauros não tinham penas. Pronto, falei. Pois é, poderíamos encerrar a postagem aqui.

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O que o artigo trás, na verdade, é a descrição formal de algumas impressões de pele com evidências de escamas em certas partes do corpo de diferentes espécies de tiranossaurídeos (incluindo Tyrannosaurus rex, Daspletosaurus, Tarbosaurus, Gorgosaurus e Albertosaurus) e, a partir disso, os autores discutem a possibilidade de uma evolução paralela dessas espécies gigantes mais tardias, em relação às espécies de tiranossauróides emplumados mais basais (considere aqui os penosos asiáticos Yutyrannus e Dilong – clique nos nomes para acessar os artigos originais com imagens dos fósseis). Basicamente, o que os autores argumentam, é que as espécies tardias  (a maior parte de depósitos da América do Norte) não teriam uma extensa cobertura  de penas como os tiranossauróides basais chineses (NÃO QUE ELES NÃO POSSUIAM PENAS!). A justificativa principal do artigo é que a evolução do gigantismo poderia ter desfavorecido a manutenção de uma extensa cobertura de penas em Tyrannosaurus rex, Daspletosaurus, Tarbosaurus, Gorgosaurus e Albertosaurus. Os autores justificam sua hipótese alegando uma suposta redução na importância das penas na manutenção de calor corpóreo devido à:

1) Homeotermia inercial por gigantismo (i.e. inércia térmica);

2) Uma hipotética atividade metabólica mais alta em algumas espécies tardias ou;

3) A ocupação de ambientes com pressões seletivas distintas. As espécies asiáticas mais basais, por exemplo, habitavam regiões mais florestadas.

Todas argumentações muito pertinentes, que implicam necessariamente na reversão (ou modificação) de um caráter basal do grupo, que É a presença de uma extensa cobertura de penas (veja a figura abaixo). Os autores deixam em aberto a questão sobre se as escamas de espécies mais derivadas seriam ou não produto de uma modificação das penas primitivas observadas em Yutyrannus e Dilong, já que as escamas em Aves atuais não são homólogas às escamas ‘reptilianas’ (ou seja, não têm a mesma origem embrionária), mas sim são resultado de penas modificadas.

Relações de parentesco entre Yutyrannus, Dilong e Tyranosauridae.
Relações de parentesco entre Yutyrannus, Dilong e Tyranosauridae.

Os autores concluem o artigo da seguinte forma:

“Our results, therefore, reveal an intriguing counterintuitive pattern between size and integumentary evolution within Tyrannosauroidea that can only be tested by future fossil discoveries.” – “Nossos resultados, portanto, revelam um intrigante padrão contraintuitivo entre tamanho e evolução tegumentar dentro de Tyrannosauroidea que só pode ser testado por futuras descobertas de fósseis.”

A última frase resume tudo. Uma proposta que somente poderá ser testada com futuras (e melhores ou mais completas) descobertas de fósseis.

Ótimo. Agora que ficou claro tudo o que o artigo quer dizer e aquilo que ele não quer dizer, existem algumas outras coisas que podem ter sido mal interpretadas nele. A primeira, e mais importante, é a imagem sobre as impressões de pele com escamas (figurada alguns parágrafos acima). A imagem dá a impressão – errada! – de que as regiões ‘escamosas’ sinalizadas foram encontradas todas em um mesmo indivíduo/espécime ou que foram encontradas em diferentes fósseis de uma mesma espécie (no caso, como amplamente argumentado por quem não leu o artigo direito: Tyrannosaurus rex). Mas não, ela reúne todas as evidências de impressões de peles das VÁRIAS espécies citadas no texto (veja esta imagem que demonstra mais honestamente o que conhecemos sobre o tegumento de Tyrannosaurus rex, Tarbosaurus e Albertosaurus, respectivamente – de cima para baixo).

2838737845_fa89d35c4a_zSão conhecidas apenas pequenas áreas preservadas de pele para cada espécie, o que nem de longe justifica que o padrão escamoso observado possa ser extrapolado para o corpo inteiro do animal/dos animais. Desde quando, por exemplo, a imagem ao lado seria uma justificativa para avestruzes serem escamosos?

A ausência de penas em algumas partes do corpo do animal não é uma evidência suficiente para afirmarmos que todo o animal era (ou a maior parte dele era) escamoso.

Agora, o oposto (ou seja, que penas estavam presentes nesses organismos, mesmo que ainda não tenhamos encontrado evidências diretas da sua presença) se pode afirmar com certo embasamento lógico. Por quê?!

É importante compreender um princípio básico da Ciência, aqui adaptado à Biologia Evolutiva: é mais parcimonioso supor que um caracter (no caso, penas) se manteve ao longo da evolução de um grupo de organismos, do que que ele tenha sido perdido, revertido ou alterado em linhagens sucessivas. Da mesma forma, por inferência com base nos parentes mais proximamente relacionados, – mais basais ou derivados – (phyllogenetic bracketing), é mais parcimonioso afirmar que as penas estavam presentes em Tyrannosauridae do que que estivessem ausentes.

Não vou nem me estender muito, mas ainda existem ainda outras questões não discutidas no artigo, como a ação de aspectos tafonômicos, que causam desvios preservacionais no registro fossilífero. Inúmeras adversidades naturais (ação de decompositores, exposição prolongada da carcaça, aspectos geoquímicos da fossilização, etc.) poderiam ter desfavorecido a preservação de penas. Os tipos de depósito em que as espécies mais tardias (de Tyrannosauridae) são encontradas, são bastante diferentes do de Dilong e Yutyrannus, que pelas condições de preservação excepcionais pode ser considerado um lagerstätte.

Aos paleobiólogos interessa ainda investigarem possíveis variações ontogenéticas (é provável que em estágios mais juvenis, Tyrannosauridae tivessem uma cobertura mais extensa de penas); e geográficas (espécies de latitudes mais altas apresentariam esse mesmo padrão sugerido no artigo?).

Mais uma vez: o que o artigo de Bell e colaboradores quis dizer, apenas, é que a cobertura de penas nas espécies de Tyrannosauridae citadas no artigo (Tyrannosaurus rex, Daspletosaurus, Tarbosaurus, Gorgosaurus e Albertosaurus) provavelmente seria mais restrita do que em espécies mais basais, de Tyrannosauroidea, e outros Coelurosauria. Não  que elas estivessem definitivamente ausentes! Aceitem: a presença de penas (seja lá em qual extensão pelo corpo) em Coelurosauria (Eumaniraptora, Oviraptorosauria, Therezinosauroidea, Alvarezsauridae, Ornithomimosauria, Compsognathidae e Tyrannosauroidea) já não é mais um assunto em discussão. É um fato amplamente aceito por paleontólogos especialistas em dinossauros.

Fãs de Jurassic Park, por favor, não deixem a emoção sobrepor a razão! E aos outros fãs de dinossauros: leiam sempre os artigos originais ou procurem fontes confiáveis de informação.

Fanboys, vocês ainda não se livraram do T. rex com penas...
Fanboys, vocês ainda não se livraram do T. rex com penas… Arte de Raul Martin.

Algumas leituras adicionais sobre essa questão:

T. rex, Feathers, Scales, and Science
Prejudices skin in the evolution of Tyrannosauridae
Those scales are scales?

Revenge of the scaly Tyrannosaurus 

Não deixe de assistir também o vídeo do nosso colega Pirulla sobre o assunto:

Município de Coração de Jesus, uma experiência além do tempo

Olá a todos! Seguindo a vertente de postagens relacionadas à divulgação científica e sua importância, temos aqui outra narrativa acerca da divulgação da descoberta do Tapuiasaurus macedoi em sua cidade natal, o município de Coração de Jesus! Este texto, redigido pelo Me. Natan Santos Brilhante, traz uma perspectiva complementar à postagem prévia sobre o assunto (veja aqui). Espero que gostem!


Sob a mira de olhares curiosos e intrigados, forasteiros em um veículo branco com logotipo (representado pela silhueta de um Tamanduá-bandeira) de uma instituição pública conduziram diversas expedições de coleta de fósseis no norte do estado de Minas Gerais. Os trabalhos na região duraram vários anos, mais precisamente de 2005 até 2012. Entretanto, na perspectiva dos habitantes, quais seriam os motivos que trariam por tanto tempo pesquisadores do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (MZUSP)1 para uma cidade modesta e longínqua?

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Veículo oficial do MZUSP no afloramento. Fonte: Natan Santos Brilhante

Logo MZUSP Atualizado
Logo em evidência, o mesmo visto na porta dianteira do veículo oficial do MZUSP. Fonte: Arquivo Laboratório de Paleontologia-MZUSP

Talvez o município de Coração de Jesus seja considerado simples em comparação com as grandes metrópoles brasileiras. Contudo, é uma cidade extremamente rica em cultura, hospitalidade e vivacidade. Em meio a toda a sua diversidade, nunca faltaram pessoas com disposição e prontidão em ajudar, seja para desatolar o veículo quando este enfrentou chuvas torrenciais nas estradas de barro do município, ou para servir com capricho uma boa refeição para toda a equipe depois de um dia exaustivo de trabalho.
 
Outras situações inusitadas fazem parte das boas lembranças, e ocupam as páginas do diário de campo, como o deslocamento de um bloco de grandes dimensões e peso, localizado em área de difícil acesso. Esse material só pôde ser transportado para o alto do barranco graças ao auxílio de um “carro de boi” , gentilmente disponibilizado por José Adão Pereira de Souza, o “Zezinho”, responsável pela descoberta dos primeiros ossos fossilizados expostos na região por ação do intemperismo*.
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“Carro de boi”, comumente usado para auxiliar em atividades de zonas rurais. Fonte: Natan Santos Brilhante

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Moradores do município de Coração de Jesus ajudando a equipe de pesquisa do MZUSP a transportar os materiais. Fonte: Natan Santos Brilhante

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Fragmentos de ossos fossilizados (esbranquiçados) aflorando em meio aos sedimentos por ação do intemperismo. Fonte: Natan Santos Brilhante

E o que falar da amizade do Sr. Israel Cruz e da Sra. Marylene Ferreira que abriram as porteiras da Fazenda Santa Tereza para os pesquisadores trabalharem e que, no entardecer, os acolhia com tanto carinho em sua casa para oferecer um bolo caseiro acompanhado de suco de coquinho azedo***. Vale lembrar ainda do Sr. Amilcar, que nos recebeu em sua residência semelhante a uma “casa de taipa”, a alguns quilômetros dos afloramentos. Sua atitude cordial possibilitou o abastecimento de água para as etapas de coleta, resguardando o uso de recurso potável destinado ao nosso consumo e, consequentemente, evitando a nossa desidratação diante do sol forte e de temperaturas com médias diárias acima dos 40 graus (na sombra). Curiosamente, ele sempre lembrava com precisão o nome de integrantes da equipe que por lá passaram há anos (memória invejável para qualquer taxonomista, não?!).
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Um dos pontos de coleta de fósseis nos domínios da Fazenda Santa Tereza. Fonte: Arquivo Laboratório de Paleontologia-MZUSP

Estes foram apenas alguns dos eventos e personagens que fizeram parte das muitas histórias de bastidores que ocorreram durante os trabalhos de campo.
Tal empenho e esforço renderam frutos, ou melhor… fósseis, de dinossauros saurópodes e terópodes, que foram (e continuam sendo) dedicadamente estudados por pesquisadores nacionais e internacionais. Entre as descobertas mais emblemáticas está a espécie Tapuiasaurus macedoi, a partir de um exemplar que detém o mais bem preservado crânio de titanossauro da América do Sul. Essa descoberta recebeu destaque na comunidade científica e na mídia por meio da publicação de um artigo na PLoS ONE4 em 2011 e, mais recentemente, na Zoological Journal of the Linnean Society5 em 2016.
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Coleta de fósseis de dinossauros nos arredores do município de Coração de Jesus. Fonte: Arquivo Laboratório de Paleontologia-MZUSP

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Equipe de pesquisa do MZUSP protegendo e preparando a retirada dos fósseis no afloramento para serem transportados. Fonte: Arquivo Laboratório de Paleontologia-MZUSP

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Crânio do espécime MZSP-PV 807 (Tapuiasaurus macedoi). A barra de escala representa 10 cm. Fonte: Arquivo Laboratório de Paleontologia-MZUSP

Infelizmente, nem sempre cabem agradecimentos em uma revista científica a cada pessoa que, direta ou indiretamente, colaborou com o desenvolvimento da pesquisa. Eventualmente, estas serão retratadas em outros meios de comunicação, como internet, jornais e rádio. Outra questão recorrente é a falta de acesso e de linguagem adequada a este tipo de conteúdo por público o qual a vida acadêmica não faz parte da sua realidade.
Então, como retribuir o apoio tão caloroso? Como mostrar à população a importância e a seriedade do que está sendo realizado nos arredores da sua cidade? Ou o porquê de estar sendo realizado. Como resposta, cito a seguir alguns dos trabalhos promovidos por alunos, funcionários e professores do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo, em parceria com o Museu de Ciências da USP – Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária2 e o Instituto Butantan3.
As atividades contaram também com o apoio da Prefeitura local e ocorreram a partir de duas frentes principais:
(1) Montagem da exposição itinerante “Cabeça Dinossauro: o novo titã brasileiro”
Abordou temáticas como Paleontologia, Evolução e Dinâmica da Terra, e foi uma remontagem (e recontextualização) de uma exposição com o mesmo título, montada para o Museu de Zoologia da USP, em 2011.
A exposição permaneceu aberta de terça-feira a domingo, durante todo o dia, entre os meses de maio e agosto de 2012. Adentro, o público pôde contemplar fósseis originais e réplicas de diferentes regiões e contextos geológicos, assim como dioramas, vídeos informativos e “paleoarte”. Entre os vídeos, destaca-se um feito com os depoimentos de algumas pessoas da cidade, sobre suas impressões ou sua participação na descoberta dos fósseis.
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Vista geral da exposição “Cabeça Dinossauro: o novo titã brasileiro”, em sua primeira montagem itinerante. Fonte: Arquivo Laboratório de Paleontologia-MZUSP

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Painel com informes e material a respeito do vasto universo da Paleontologia. Fonte: Arquivo Laboratório de Paleontologia-MZUSP

Após poucos dias de abertura, a exposição já havia recebido milhares de visitantes, alcançando não apenas os Corjesuenses, mas também cidadãos de municípios próximos e de outros estados . Para se ter ideia em números, a exposição foi visitada por mais de 9 mil pessoas, em uma cidade de pouco mais de 20 mil habitantes!
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Dia de visita. Interação entre o público e a exposição. Fonte: Arquivo Laboratório de Paleontologia-MZUSP

Acreditamos que este tipo de realização estimule uma prática de grande importância para a região: o turismo. Afinal, a rotatividade intensa de pessoas pode ser uma importante fonte para a economia regional, uma vez que a cidade está distante de grandes centros urbanos e o comércio se restringe basicamente aos seus próprios habitantes.
(2) Projeto de extensão “Paleontologia sob a perspectiva da Educação Patrimonial: aproximando os fósseis da população de Coração de Jesus”
Foi de caráter educativo e teve o intuito de permitir o reconhecimento do patrimônio fossilífero da região, assim como apresentar questões científicas relacionadas à Paleontologia, relevância desta ciência para o mundo e valor do Patrimônio Geopaleontológico. Foram efetivadas as seguintes atividades:
I. Curso de Formação Continuada de Professores – visou um melhor entendimento do patrimônio fossilífero regional e do conteúdo da exposição itinerante por parte de professores, de modo que eles pudessem promover visitas direcionadas com seus alunos, utilizando ferramentas da Educação Patrimonial e o conhecimento obtido a partir de estudos regionais. Esse evento ocorreu em março de 2012, teve duração de uma semana (40 horas) e contou com a participação de 118 professores e funcionários de escolas públicas estaduais e municipais, tanto de áreas urbanas quanto rurais, divididos em duas turmas.
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Curso sendo ministrado para a formação continuada de professores. Fonte: Arquivo Laboratório de Paleontologia-MZUSP

II. Oficinas nas escolas – promoveu monitorias e oficinas para desenvolver dobraduras e desenhos relacionados à Paleontologia, assim como o contato com fósseis e réplicas. Essa etapa incluiu também a iniciativa “Converse com um Paleontólogo”, promovendo o diálogo direto entre alunos das escolas e profissionais e estudantes de pós-graduação em Paleontologia para discutir e esclarecer dúvidas a respeito da atuação do paleontólogo e a relevância da sua área de estudo. Participaram mais de 600 alunos de 10 escolas públicas (urbanas e rurais), em maio de 2012.
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Colaboradores do Laboratório de Paleontologia do MZUSP em diálogo aberto com alunos de escolas públicas. Fonte: Arquivo Laboratório de Paleontologia-MZUSP

III. Formação de Monitores – prestou treinamento técnico para o atendimento ao público na exposição citada acima, de maio a julho de 2012. Os mediadores eram alunos do Ensino Médio, selecionados a partir de uma parceira junto às escolas. O curso abordou conceitos relacionados à Museologia, Paleontologia e Patrimônio Geopaleontológico, totalizando 24 horas.
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Monitores atendendo o público na exposição “Cabeça Dinossauro: o novo titã brasileiro”. Fonte: Arquivo Laboratório de Paleontologia-MZUSP

IV. Curso de Extensão Universitária – foi ministrado para 16 graduandos em agosto de 2012. Para transmitir ideias gerais sobre o que é a Paleontologia, a sua importância, e o quão promissoras são as descobertas regionais.
Foram desenvolvidos também diversos materiais didáticos para complementar, ilustrar e relembrar muitas das informações transmitidas em sala de aula pelos colaboradores do projeto educativo, como o livreto “Cabeça DINOSSAURO – o novo titã brasileiro”.
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Material educativo. Fonte: Arquivo Laboratório de Paleontologia-MZUSP

Além dessas práticas, foram também doadas réplicas do “tapuiassauro” para o Centro Cultural José Alves Macedo, um núcleo histórico-cultural sediado na praça central da cidade. Essa instituição foi fundada e é administrada por Ubirajara Alves Macedo, personagem folclórico e um tanto excêntrico da região, que foi homenageado pela sua colaboração na descoberta e na divulgação inicial dos fósseis com o sobrenome da sua família posto no epíteto específico da espécie supracitada (Tapuiasaurus macedoi).
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A praça central da cidade pode ser facilmente reconhecida pela presença de uma icônica estátua, Sagrado Coração de Jesus, que remete ao nome herdado pelo município. Fonte: Natan Santos Brilhante

Por meio dessas ações de ensino e divulgação, foi possível mostrar à população da cidade de Coração de Jesus a importância dos trabalhos paleontológicos, conscientizando e educando os moradores em como proceder diante de novas descobertas, valorizando assim os ideais de preservação e valorização do patrimônio geopaleontológico. Esperamos com isso resgatar não somente o patrimônio fossilífero, mas também, com empenho, incentivar as futuras gerações de paleontólogos(as) e demais entusiastas da ciência.
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Monitores transmitindo conhecimento aos visitantes da exposição “Cabeça Dinossauro: o novo titã brasileiro”. Fonte: Arquivo Laboratório de Paleontologia-MZUSP

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Alunos de escolas públicas do município de Coração de Jesus durante uma visita à exposição “Cabeça Dinossauro: o novo titã brasileiro”. Nota-se a curiosidade e o entusiasmo em suas expressões faciais ao bordarem a temática Paleontologia. Fonte: Arquivo Laboratório de Paleontologia-MZUSP

* A história mais completa sobre a descoberta dos fósseis no município de Coração de Jesus foi relatada em uma matéria do Estadão, um jornal do estado de São Paulo, o qual, na época (2010), dedicou um caderno especial a essa temática. A reportagem contou também com uma série de entrevistas de alguns dos moradores e dos pesquisadores que estiveram à frente das descobertas na região.
*** Coquinho azedo (Butia capitata): planta típica do cerrado rica em vitamina A, C e potássio.
 
Endereço eletrônico de algumas das reportagens sobre o assunto:
I. http://ciencia.estadao.com.br/noticias/geral,um-dinossauro-no-coracao-de-jesus,609332
II. http://topicos.estadao.com.br/tapuiassauro
III. http://tv.estadao.com.br/geral,dinossauros-do-brasil-o-trabalho-dos-paleontologos,242506
IV. http://tv.estadao.com.br/geral,dinossauros-do-brasil-entrevista-com-alberto-carvalho,244709
Endereço eletrônico das instituições mencionadas:
1 – http://www.mz.usp.br
2 – http://biton.uspnet.usp.br/mc/
3 – http://www.butantan.gov.br
Endereço eletrônico dos artigos científicos a respeito do Tapuiasaurus:
4 – http://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0016663
5 – http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/zoj.12420/abstract


Natan Santos Brilhante

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Formação acadêmica: Graduado em Ciências Biológicas pela Universidade do Grande ABC, Licenciatura Plena e Bacharelado; Mestre e doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Zoologia do Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Experiência profissional: elaboração e execução de exposições, treinamento e medeio de monitores, atendimento ao público, expedições de campo (paleontologia e herpetologia) e outros trabalhos técnicos devido a sua colaboração junto ao Laboratório de Paleontologia e à Museologia do Museu de Zoologia da USP, de 2008 a 2013. Após esse período, ingressou no Museu Nacional/UFRJ e, desde então, segue como colaborador no Setor de Paleovertebrados do Departamento de Geologia e Paleontologia.
Área de estudo: Zoologia, com ênfase em Paleontologia de Vertebrados. Atua principalmente nos seguintes temas: Taxonomia de arcossauros fósseis e recentes, curadoria de coleções, coleta e preparação de fósseis de vertebrados.

Discutindo a nova filogenia dos dinossauros

Há algumas semanas, um estudo publicado na prestigiosa revista ‘Nature’ chamou a atenção do mundo e veio abalar as estruturas de um consenso secular na paleontologia de dinossauros. O estudo publicado na revista Nature foi desenvolvido por Baron (Universidade de Cambridge) e colaboradores, e contou com uma amostragem abrangente de espécies basais de dinossauros e outros Dinosauromorpha.

A novidade do estudo de Baron e colegas é que uma nova topologia para a árvore evolutiva dos dinossauros foi obtida, onde os dinossauros ornitísquios (que incluem desde os estegossauros até os dinossauros “bico de pato”, veja imagem a seguir) caem como grupo irmão dos dinossauros terópodes (grupo de dinossauros que inclui basicamente todos os dinossauros carnívoros), formando um clado denominado de ‘Ornithoscelida’. Esse resultado altera completamente o consenso tradicional sobre a evolução dos dinossauros, que colocava os dinossauros terópodes e sauropodomorfos (grupo dos dinossauros herbívoros de pescoço e cauda longa)  juntos, formando o clado clássico conhecido como Saurischia.

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Dinossauros ornitísquios. Arte de Franz Anthony (http://franzanth.com/).
Dinossauros terópodes. Arte de Franz Anthony.
Dinossauros terópodes. Arte de Franz Anthony.
Dinossauros sauropodomorfos. Arte de Franz Anthony.
Dinossauros sauropodomorfos. Arte de Franz Anthony.
Cladograma de acordo com a filogenia clássica dos dinossauros. Imagem por Darren Naish.
Cladograma de acordo com a filogenia clássica ou mais convencional dos dinossauros. Imagem por Darren Naish.
Cladograma ilustrando a filogenia proposta por Baron et al. (2017), separando os dinossauros terópodes e sauropodomorfos e sustentando o clado denominado de 'Ornithoscelida'. Imagem por Darren Naish.
Cladograma ilustrando a filogenia proposta por Baron et al. (2017), separando os dinossauros terópodes e sauropodomorfos e sustentando o clado denominado de ‘Ornithoscelida’ (Theropoda + Ornitischia). Imagem por Darren Naish.

A filogenia  tradicional dos dinossauros, que se sustenta há quase 130 anos, sempre partiu do princípio de que dinossauros terópodes e sauropodomorfos formavam um grupo monofilético, ou seja, que consistiam de um agrupamento verdadeiro, que reunia uma espécie ancestral e todos os seus descendentes.

Apesar do trabalho de Baron desafiar a proposta convencional das relações evolutivas dos dinossauros, o ordenamento que ele propõe em seu artigo não é muita novidade. Propostas alternativas, incluindo essa de Ornithoscelida, sempre existiram e foram consecutivamente testadas ao longo do tempo.  O que acontece é que, nos últimos anos, novas espécies de dinossauros basais foram descobertas e descritas e pudemos ter acesso a novas informações sobre como se deu o seu processo evolutivo  de certos aspectos morfológicos dos dinossauros. Isso deu mais resolução à nossa compreensão sobre a evolução desse grupo. O que Baron fez foi reunir essa informação em uma ampla matriz de dados morfológicos e testá-la. O resultado foi que, com a nova amostragem de táxons basais de dinossauros, o arranjo filogenético que melhor explica o que observamos é a união de Theropoda e Ornithischia em um mesmo grupo: Ornithoscelida.

As grandes propostas alternativas sobre a evolução de Dinosauria.
As grandes propostas alternativas sobre a evolução de Dinosauria.
Já posso queimar toda a minha bibliografia sobre dinossauros? Foto de Darren Naish.

Não preciso nem dizer que isso causou um reboliço na paleontologia e uma acalorada discussão entre paleontólogos, né?

Mas, calma, você não precisa sair por aí queimando todos os seus livros sobre dinossauros. Toda nova proposta que muda drasticamente uma ideia merece ser testada e reavaliada antes de definitivamente adotada.

Com a ascensão desse trabalho, vários paleontólogos do mundo todo se reuniram para analisar minuciosamente a matriz de dados morfológicos usada por Baron e colegas. Há muito tempo precisávamos de uma amostragem abrangente, incluindo mais táxons basais de Ornithischia e isso o trabalho de Baron tem de positivo! Porém, onde aparentemente o trabalho de Baron falha, é na matriz de dados em si. Muitos colegas paleontólogos do mundo têm apontado falhas na codificação da matriz filogenética apresentada no estudo publicado na Nature, e eles já estão trabalhando em uma réplica. Nos próximos meses, uma publicação reunindo paleontólogos de diversas nacionalidades deverá ser publicada reavaliando a matriz de dados de Baron.

“Alegações extraordinárias exigem evidências extraordinárias” Carl Sagan

A hipótese de Ornithoscelida não pode ser totalmente desconsiderada, já que a topologia filogenética obtida por Baron e colaboradores explica muito bem a distribuição de alguns caracteres morfológicos em dinossauros. O caracter mais claro para exemplificar essa questão talvez seja a presença de estruturas tegumentárias (i.e. penas e estruturas similares à penas) tanto em Ornithischia quanto em Theropoda. Estruturas as quais ainda não foram encontrada em fósseis de Sauropodomorpha (o que não significa que eles definitivamente não as possuíam!!!).

Fóssil de Psittacosaurus, um dinossauro Ornithischia, com estruturas tegumentárias possivelmente homólogas às penas.
Fóssil de Psittacosaurus, um dinossauro Ornithischia, com estruturas tegumentárias possivelmente homólogas às penas encontradas em dinossauros terópodes.

Alguns paleontólogos argumentam que, apesar de explicar bem a distribuição de alguns caracteres, essa proposta filogenética não sustenta tão bem outras questões anatômicas muito importantes, como a pneumaticidade nos ossos, observada tanto em Theropoda como em Sauropodomorpha – mas não em Ornithischia -, ou mesmo o clássico formato do quadril trirradiado.

A questão, pelo visto, continuará sendo quais caracteres morfológicos evoluíram independentemente ou não…

Presença/ausência de pneumaticidade óssea em Ornithodira.
Presença/ausência de pneumaticidade óssea em Ornithodira.
Pneumticidade em vértebra de um dinossauro terópode. Característica também presente em Sauropodomorpha.
Pneumticidade em vértebra de um dinossauro terópode. Característica também presente em Sauropodomorpha.

Outra grande crítica ao trabalho de Baron foi que a sua proposta filogenética aponta a origem dos dinossauros como sendo europeia, o que para a grande maioria dos paleontólogos não faz sentido algum.

A lição maior do trabalho de Baron é que ainda temos muito o que investir no estudo de dinossauros basais. Vamos aguardar o trabalho sobre a revisão da matriz de dados que sustenta Ornithoscelida ser publicado e torcer para novas descobertas de dinossauros basais sejam feitas!

Assista o vídeo sobre essa questão em nosso canal. Entrevistamos o paleontólogo argentino Diego Pol, um dos especialistas envolvidos na re-avaliação da matriz de dados do trabalho de Baron:

Captura de Tela 2017-05-01 às 14.21.54

Leia mais sobre o assunto:

TetZoo: https://blogs.scientificamerican.com/tetrapod-zoology/ornithoscelida-rises-a-new-family-tree-for-dinosaurs/
Theropoda Blog: http://theropoda.blogspot.com.br/2017/03/ornithoscelida-20-saurischian-paraphyly.html
The Theropoda Database Blog:
1)https://theropoddatabase.blogspot.com.br/2017/03/ornithoscelida-lives.html
2) https://theropoddatabase.blogspot.com.br/2017/03/ornithoscelida-tested-adding-taxa-and.html

Referências:

Baron, M. G., Norman, D. B. & Barrett, P. M. 2017. A new hypothesis of dinosaur relationships and early dinosaur evolution. Nature doi:10.1038/nature21700

Com um frango no quintal

Talvez uma das facetas mais importantes que um pesquisador pode desempenhar é a de divulgar a ciência, tanto o conhecimento por ele produzido quanto por seus pares. A divulgação cientifica possibilita a aproximação de duas esferas tidas como tradicionalmente distantes que é o conhecimento popular e o conhecimento cientifico, Por meio da divulgação os pesquisadores nutrem a esperança de que pelo menos partes do conhecimento cientifico comece a integrar o conhecimento popular (e.g., teoria da gravidade, relatividade, alguns fatos sobre dinosauros, etc). A divulgação cientifica feita pelos próprios cientistas é relativamente rara e no mínimo controversa, visto que pesquisadores divulgadores são vistos como “estranhos no ninho” por seus pares (ver postagem). No entanto, cada vez mais os orgãos de fomento brasileiros estão reconhecendo a importância de divulgar os resultados das pesquisas por eles financiadas. Portanto, vem  se tornando cada vez mais comum a necessidade de direcionar parte do recurso solicitado, via projeto a um destes orgãos, a divulgação direta de seus resultados.
Com o intuito de ilustrar a importância da divulgação da ciência para a comunidade não-cientifica trago os relatos de dois pesquisadores que estiveram envolvidos no projeto de divulgação do Tapuiasaurus realizado em sua “cidade natal”, Coração de Jesus.
Esta primeira postagem foi feita pela doutoranda Mariana Galera Soler e a segunda postagem será uma contribuição do doutorando Natan Santos Brilhante.
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A divulgação da ciência não é uma novidade da nossa sociedade. Desde o século XVIII há extensos registros de ações de profissionais e amadores da ciência buscando apresentar os seus resultados para plateias, muitas vezes selecionadas. Longe de ser uma ação altruísta, o processo de comunicação dos resultados de uma pesquisa é fundamental para a validação desta pesquisa pelo público que, em última instância, atende funções econômicas (financiamento público e privado) e profissionais (formação de novos profissionais e apoio social à pesquisa).
Já na contemporaneidade, a partir da década de 1970 houve um forte movimento intitulado public undestanding of science, que tem resultado nas ações de divulgação que conhecemos atualmente, como centros de ciência mega-interativos, clubes de ciências, jogos, livros, filmes etc. Neste período a divulgação científica passou a ter um caráter de essencialmente educativo. Fala-se no meio acadêmico em letramento científico ou alfabetização científica, ou seja, informar as pessoas de modo que elas possam tomar suas decisões de acordo com os conceitos científicos vigentes. Em uma sociedade imersa em ciência e tecnologia, como vivemos atualmente, parece um discurso coerente.
No entanto, ao mesmo tempo que falamos em sociedade do conhecimento, hiperconectividade, redes sociais, ao abrirmos os jornais nos deparamos com uma chamada “crise dos direitos humanos”, novos muros estabelecendo fronteiras físicas, além dos “fatos alternativos” e da pseudociência. Conhecemos o corpo humano e o universo em um nível de detalhamento que era impensável no século XIX, mas questionamos a ciência que nos deu acesso a estas informações de uma forma que jamais pensávamos no pós-guerra.

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“Vivemos em uma sociedade extremamente dependente de ciência e tecnologia, em que quase ninguém sabe nada de ciência e tecnologia” – Carl Sagan. Fonte da imagem: http://bigthink.com/words-of-wisdom/carl-sagan-on-science-and-technology

 
Então, põe-se em questão: como falar de ciência para públicos que interessados em likes no Instagram?
Atualmente falar de ciência parece cool, então vou focar em exemplos da Paleontologia. Desenhos de dinossauros estampam camisetas e geralmente grandes bilheterias no cinema. Mas, o que é mesmo um fóssil? Um dinossauro é tão antigo quando meu tataravô? Eu posso ter um fóssil em casa? Quando Pedro Alvares Cabral chegou no Brasil ainda existiam preguiças gigantes?
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“Em minhas veias corre o sangue dos Dinossauros. Dos dinossauros eu te digo!”. Um dos meus memes favoritos sobre dinossauros! Por que divulgação científica também pode ser feita com likes e curtidas. Fonte: http://www.ifunny.com/pictures/veins-flows-blood-dinosaurs/

Estas questões podem parecer bobas para quem é da área, mas não são triviais para a maioria das pessoas. No contexto mais óbvio, o escolar, embora sejam assuntos apontados nos parâmetros curriculares de todos os níveis da Educação Básica brasileira, são temas pouco explorados pelos livros didáticos e na formação dos profissionais da Educação, de forma que a informação sobre paleontologia não está evidente e os conteúdos paleontológicos aparecem dispersos nos currículos escolares, quando aparecem.
Espaços para aprender sobre Paleontologia no Brasil também são escassos. Por exemplo, em todo o estado de São Paulo há menos de uma dezena de museus que possuem fósseis em exposição. Há também alguns centros de ciência, como o Catavento Cultural (em São Paulo/SP), Sabina – Parque Escola do Conhecimento (Santo André/SP) ou o Museu de Ciência e Tecnologia da PUCRS (Rio Grande do Sul / RS), mas dada as dimensões brasileiras ainda são ações esparsas. O Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro/RJ) é uma instituição diferenciada neste aspecto, dado ao espaço oferecido a uma exposição permanente sobre as diferentes faunas paleontológicas brasileiras, como também por ações educativas desenvolvidas pela equipe e alunos do museu.
Estas são ações pontuais e, geralmente, circunscritas a capitais e regiões de grande circulação de pessoas. No entanto, quem usa t-shirt com a estampa do “T-rex”, em geral, tem acesso a um museu ou a internet e pode descobrir mais facilmente que aquele personagem tão bravo do “Jurassic Park” não passa de um frangão desengonçado e carniceiro. Voltando a sociedade hiperconectada, a informação paleontológica nas redes sociais está disponível, e é possível dar likes no Instagram de diversos museus, seguir canais no Youtube de divulgadores científicos. O desafio é descobrir onde está a informação qualificada sobre a Paleontologia. E, neste sentido, as instituições e os termos “estudos comprovam” apresentam um peso de qualificadores.
No entanto, esta é uma questão já bem explorada por outros textos. Gostaria aqui de discutir uma outra situação: como nos comunicar com quem encontra fósseis nos seus quintais? Com quem está a margem destas grandes instituições, cuja ciência se aprende tanto na prática cotidiana quanto na escola. Como falar em tempo geológico, para aqueles que contam os períodos do ano entre as épocas de chuva e seca?
Para esta questão, trago um outro referencial que ainda é pouco explorado na Paleontologia brasileira, que é o conceito do fóssil como um patrimônio. Embora legalmente reconhecido como tal desde a década de 1940, e esta ser uma legislação bastante conhecida pelos paleontólogos, a dimensão cultural dos fósseis ainda é pouco explorada nas ações educativas.
Entender o fóssil como um patrimônio natural, implica em contextualizar estes materiais por meio de uma linguagem clara e objetiva, buscando estabelecer relações entre as populações locais onde os fósseis foram encontrados e as equipes que pesquisam. Para além questões biológicas e geológicas diretamente relacionas aos fósseis, a utilização do referencial da educação patrimonial em Paleontologia fornece subsídios para que esses materiais façam parte da identidade local e sejam entendidos como um patrimônio natural a ser preservado. Para que sejam efetivas estas práticas, ou seja, para que a população local seja agente na conservação de sítios paleontológicos e também possam compartilhar seu conhecimento, até mesmo indicando novos afloramentos, abrindo suas casas e propriedades ou históricos da região, é fundamental que as ações atendam as demandas específicas dos grupos locais.
Não há apostilas ou fórmulas. Há estudos de caso que demonstram que a parceria entre populações locais e paleontólogos podem ser frutíferas para ambos. Um exemplo ocorreu no ano de 2012, no município de Coração de Jesus (MG). Nesta localidade foram encontrados fósseis de dinossauros terópodes e saurópodes da Bacia São-franciscana que datam do Período Cretáceo Inferior, com idades em torno de 120 milhões de anos. Esta região tem sido objeto de estudo da equipe de paleontologia do Museu de Zoologia da USP (SP), desde 2005.
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Em destaque, município de Coração de Jesus, no norte do estado de Minas Gerais. Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Cora%C3%A7%C3%A3o_de_Jesus_(Minas_Gerais)

De forma que, passados sete anos em que a população local convivia com a chegada de uma pick-up branca com emblema de uma universidade de outro estado, pessoas estranhas saiam cedo, iam para a área rural do município e voltavam sujos de terra e com o carro cheios de rochas cobertas por gesso, muitas histórias foram criadas e situações com a equipe. Dizia-se de tudo um pouco: havia um tal dinossauro na cidade, que foi vendido para os EUA há centenas de milhares de reais, os donos das terras onde os fósseis foram encontrados ganharam dinheiro e as equipes de paleontólogos eram apelidados de “osseiros”.  Depois de tanto tempo sem entender bem o que estava acontecendo, as relações entre a população e a equipe começaram a se tornar mais difíceis, ao ponto do prefeito da época ligar para o Museu de Zoologia e pedir explicações.
Bem, tais explicações vieram na forma de um projeto educativo e uma exposição itinerante. Como não era possível levar e fazer uma montagem do fóssil original, foi montada a exposição “Cabeça Dinossauro: o novo titã brasileiro”, ao redor da réplica completa do dinossauro Tapuiassaurus macedoi. As ações educativas seguiram quatro linhas: (i) Curso de Formação Continuada de Professores, em que os conhecimentos gerados a partir dos estudos na região foram compartilhados com professores; também foram abordadas ferramentas da Educação Patrimonial, para que os professores e alunos pudessem explorar a exposição e o patrimônio fossilífero regional. Participaram 118 professores e funcionários das escolas públicas estaduais e municipais, urbanas e rurais. (ii) Oficinas nas escolas, que discutiram o trabalho do paleontólogo, por meio de desenhos, dobraduras, interação com réplicas e fósseis e roda de conversa entre alunos e profissionais, intitulada “Converse com um Paleontólogo”. Em maio de 2012, foram realizadas oficinas para 10 escolas públicas (urbanas e rurais), envolvendo mais de 600 alunos. (iii) Formação de Monitores, como parte da parceria com as escolas, em que foram escolhidos 20 alunos do Ensino Médio os quais atuaram como mediadores na exposição entre os meses de maio e julho de 2012. Estes alunos realizaram um curso de formação (duração de 24 horas), em que se discutiram conceitos relacionados à Paleontologia, museus e patrimônio geopaleontológico. E, (iv) Curso de Extensão Universitária, abordando aspectos gerais da Paleontologia e ratificando a importância científica das descobertas regionais. Participaram do curso 16 estudantes, em agosto de 2012.
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Exposição “Cabeça Dinossauro: o novo titã brasileiro”, em sua primeira montagem itinerante, em Coração de Jesus (MG), maio de 2012. Na foto, um grupo de estudantes da cidade é atendido na exposição por dois monitores (também estudantes da cidade que participaram do projeto educativo). Foto: Mariana Galera Soler

 
Durante todo este projeto, que durou cerca de 6 meses, os “osseiros” acabaram sendo pessoas conhecidas na cidade. Quando saíamos nas ruas (e aqui me incluo, pois fui coordenadora deste projeto e também uma das “osseiras” que estava na coleta dos fósseis) éramos convidados para entrar nas casas, conversar com as pessoas sobre o tal dinossauro. De elementos estranhos, passamos a fazer parte da história daquele local, materializado na forma do “tal dinossauro” entrar nas propostas de letra para um novo hino da cidade ou da “explicação” de uma lenda local***.
De porteiras fechadas nas regiões dos afloramentos, fomos recebidos com café e biscoito de toalha e conhecemos uma Coração de Jesus absolutamente nova para nós. Os resultados não foram “apenas” a divulgação dos resultados da pesquisa paleontológica, as pessoas de Coração de Jesus sabiam nossos nomes e se interessavam pelo nosso trabalho, já não éramos mais os “osseiros”. E de muitas histórias que podem ser contadas, uma frase de um professor no último dia do curso registrou fundamentalmente esta parceria: “Obrigado por ter nos ajudado a descobrir que a nossa cidade é mais importante do que parece”.
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Nas visitas as escolas realizávamos diferentes oficinas, entre elas a construção de dinossauros de origamis. Na imagem, um dos alunos das escolas rurais de Coração de Jesus (MG) com seus dinossauros. Foto: Mariana Galera Soler

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Exposição de trabalhos dos alunos em escola rural do município de Coração de Jesus. A atividade de “criar fósseis” com a impressão de folhas em argila foi uma das oficinas propostas para os professores durante o curso. Ao fundo, algumas reconstituições dos animais extintos encontrados na região, também feitas em argila por alunos. Foto: Mariana Galera Soler

Este é apenas um caso, mas existem outros. Embora escassos, projetos focados em populações locais e tratando os fósseis como um patrimônio e em parceria com as pessoas são um caminho possível para além da divulgação da ciência mais óbvia, cheia de fórmulas prontas e high tech de comunicar uma ciência neutra e fechada em si, tratando os fósseis como todos sendo um dinossauro sem penas que corre como um guepardo. Projetos locais e contextualizados são um caminho para a preservação do património fossilífero in situ e para que a ciência não seja apenas um conjunto de resultados empilhados, assépticos e descontextualizados, e produzida por homens brancos, de meia idade e jaleco branco (eventualmente, com a língua de fora).
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Não basta ser monitor tem que participar! Alunos do Ensino Médio foram indicados por seus professores para atuar como monitores na exposição. Para tanto participaram de um curso sobre Paleontologia e também de diversas atividades práticas, entre elas ajudar na montagem da própria exposição. Foto: Marcia Fernades Lourenço

 
*** Coração de Jesus teve nos anos 1960 – 70 certa notoriedade na região e grandes investimentos públicos que geraram, por exemplo, a construção de um espaço esportivo e complexo de piscinas bem estruturados. Contudo, esse projeto foi abandonado e o município voltou a ser apenas mais um dos pequenos lugares na borda do Vale do Jequitinhonha. Para explicar esta “perda de status”, os mais velhos costumavam dizer que no passado alguém havia enterrado a cabeça de um burro na cidade e por isso ela não “ia para frente”. Com a descoberta do crânio (“cabeça”) de um dinossauro (bicho antigo que viveu há muito tempo), diversas pessoas relacionaram o fóssil a “cabeça do burro” e viram nesta descoberta a chance da cidade voltar a progredir.


Mariana Galera Soler

Formação: Bió18109741_1315265438526683_809310084_nloga pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto (USP/RP) e Mestre em Museologia pela USP/SP. Estudante de doutorado em História e Filosofia da Ciência, com especialização em Museologia pela Universidade de Évora / Portugal.
Área de estudo: comunicação e divulgação científica; museus de história natural; exposições e coleções científicas.
 Mas onde entra Paleontologia em tudo isso? Desde a graduação trabalhei o Laboratório de Paleontologia da USP Ribeirão Preto. Depois fui ao Museu de Zoologia da USP / São Paulo, onde trabalhei na curadoria da coleção paleontológica, além de participar de outras atividades do Laboratório de Paleontologia.
Bem tudo isso já faz algum tempo! Também já fui professora de biologia e ciências e, nos últimos seis anos, atuei na coordenação do setor educativo do Museu Biológico do Instituto Butantan. O que não quer dizer que eu deixei a Paleontologia de lado. Continuo trabalhando no gerenciamento da base de dados paleontológicos brasileira LUND (www.lund.fc.unesp.br/lund) e atuei em alguns trabalhos de divulgação e exposições paleontológicas, em que uma das histórias conto aqui nesse texto.
 

She sells seashells on the seashore – Mary Anning, a Colecionadora de Ossos

Olá a todos, hoje 08/03/2017, se comemora o dia internacional da mulher. Uma data criada para concientizar e proporcionar uma concientização da importância do Homo sapiens do sexo feminino (sim… mulheres e homens são da mesma espécie, ao contrário do que certos pesquisadores dizem por ai…) em nossa sociedade. Nada melhor para comemorar esse dia do que relambrarmos um pouco sobre um grande paleontologa que sofreu muito por causa de sua religião, condição financeira e sexo. Estou falando de Mary Anning! O texto abaixo, escrito pelo estimado Giovanne Mendes Cidade (e uma versão deste texto já foi publicada no finado blog do Grupo Fossilis), retrata um pouco sobre a história e contribuições dessa valorosa mulher. Espero que gostem!


Uma pessoa que nasceu numa família pobre do interior, recebeu pouca educação formal e teve que trabalhar desde criança para ajudar a sustentar a família. Este certamente não é o perfil da maioria dos paleontológos, ou mesmo dos cientistas em geral que nós conhecemos. Quando se acrescenta que a pessoa em questão era uma mulher, e que viveu na Inglaterra do século XIX, tudo parece ainda mais estranho. E quando, ainda por cima, ficamos sabendo que os achados dela representam alguns dos mais importantes de todos os tempos para a Paleontologia, isso começa a parecer incrível.
E quando percebemos que, apesar de toda essa história fantástica, muitas pessoas que atuam na área podem nunca ter ouvido falar da pessoa em questão… aí, sim, tudo parece inacreditável.

Figura 1
Figura 1: Mary Anning com seu cachorro, Tray, nos afloramentos de Lyme Regis, Inglaterra (pintura de cerca de 1842)

A pessoa em questão é Mary Anning (1799-1847), considerada por alguns a “maior coletora de fósseis que o mundo já conheceu”. Nascida na pequena cidade da Lyme Regis, no litoral sul da Inglaterra, Mary Anning era filha de um carpinteiro chamado Richard, que teve dez filhos – embora apenas a própria Mary e um irmão, Joseph, sobreviveram até a idade adulta. A família era pobre, e para piorar as coisas a Inglaterra não vivia os seus melhores dias na época. No entanto, a família de Anning tinha um pouco de sorte: a cidade em que viviam, Lyme Regis, era (e ainda é) uma região rica em fósseis. Lá, a Formação Blue Lias, datada do Jurássico, aflora em costões rochosos ao redor da cidade, especialmente perto da praia, com seu sedimento formado principalmente por calcário e folhelho. No século XVIII, a região se tornou um grande destino turístico e, de quebra, os fósseis que apareciam na região começaram a ser explorados em grande escala. Essa exploração, no entanto, era feita principalmente por habitantes da própria região que coletavam os fósseis para vendê-los. A princípio, os fósseis eram vendidos apenas como curiosidades para os turistas; depois, enquanto a geologia e a paleontologia iam se consolidando como ciências, já no século XIX, eles passaram a atrair o interesse dos nobres da época que atuavam como pesquisadores.
Assim, o pai de Mary, Richard, atuou como coletor e vendedor de fósseis para aumentar a renda da família, e ensinou a prática aos filhos. É claro que, nos dias de hoje, comercializar fósseis é uma prática condenável; mas, vivendo em uma época em que a importância dos fósseis ainda não era bem conhecida – e, sobretudo, vivendo em uma época de situação econômica ruim, sendo obrigado a ver a sua família com dificuldades e tendo um dos maiores depósitos de fósseis do fundo dando sopa no seu quintal, com gente interessada em dar dinheiro por eles – quem poderia culpá-los?
No entanto, aconteceu que o pai de Mary morreu em 1800, deixando a mulher e os dois filhos; Joseph com 14 anos e Mary com 11. E é aí que a história de Mary Anning começa a ficar impressionante. Apesar da pouca idade, ela e o irmão continuaram com as atividades do pai. Só que Mary faria muita mais do que apenas coletar fósseis para vender.
Em 1811, Joseph encontrou um crânio de um tipo que eles nunca tinham visto por ali. Meses depois, Mary encontrou todo o resto do esqueleto do mesmo animal. Eles foram vendidos a colecionador por 23 libras (cerca de 88 reais, hoje). Aqueles fósseis representavam, simplesmente, um dos primeiros achados de Ictiossauros do mundo – a espécie Temnodontosaurus platyodon, descrita por Conybeare em 1822 e que continua válida até os dias de hoje. Embora esse não tenha sido exatamente o primeiro fóssil do grupo a ser encontrado, o espécime coletado por Joseph e Mary foi justamente o que primeiro chamou a atenção da comunidade científica para os Ictiossauros, que anos depois viriam a ser reconhecidos como répteis aquáticos.
Depois disso, Joseph se afastou um pouco da atividade de coletas de fósseis, e Mary Anning se tornou praticamente a única responsável pelo “negócio da família” por assim dizer. Nos anos que se seguiram, ela realizou descobertas ainda mais incríveis, entre elas: outro esqueleto do mesmo ictiossauro, Temnodontosaurus platyodon, em 1821; um esqueleto parcial de Plesiosaurus dolichodeirus (novamente descrita por Conybeare em 1824), simplesmente o primeiro plesiossauro a ser descoberto no mundo, entre 1820 e 1821; em 1828, ela encontrou o esqueleto parcial do pterossauro Dimorphodon macronyx , o primeiro pterossauro descoberto fora da Alemanha, descrito formalmente por William Buckland em 1829; e, também em 1829, ela encontrou um fóssil de peixe do gênero Squaloraja, um peixe cartilaginoso descrito por Woodward apenas em 1886 com características intermediárias entre tubarões e arraias, para ficar apenas nos achados que ganharam mais destaque.
Figura 2
Figura 2: Desenho e texto de Mary Anning contendo a descrição do fóssil do Plesiosaurus dolichodeirus (1823).

 
Nos invertebrados, suas contribuições também foram importantes. Nas suas investigações sobre os fósseis dos moluscos belemnitas (que, junto com os amonitas, eram os fósseis mais abundantes da região, e portanto os mais vendidos), Mary descobriu que alguns espécimes ainda preservavam suas bolsas de tinta, mesmo depois de milhões de anos de fossilização. A tinta até chegou a ser usada por Mary e outros como material para fazer desenhos dos fósseis no papel, mas a observação de Mary de que as bolsas dos belemnitas eram muito parecidas com a de moluscos viventes – especialmente as sépias – indicavam que os cefalópodes daquela época, como os de hoje, se utilizavam de ejeções de tinta para se defender. Foi ela também quem primeiro desconfiou que aquelas bolas que de vez em quando apareciam nos afloramentos – e que as pessoas chamavam de “pedras de bezoar” – poderiam ser, na verdade, fezes fossilizadas. Em 1829, William Buckland, baseando-se entre outros fatos nas observações de Mary, batizou essas bolas de “coprólitos”.
Figura 3
Figura 3: Um desenho e um texto feito por Mary Anning sobre um fóssil de Plesiossauro.

 
O exemplo acima mostra como Mary Anning realmente fez muito mais do que coletar fósseis para vender. É claro que ela os continuava comercializando, porque, como vocês já devem percebido, apesar de todo o esfoço que ela fazia, dadas as suas condições de vida, seria muito, mas muito difícil, que ela tivesse um projeto aprovado pelo CNPq para ganhar uma bolsa. Muito menos se ela o escrevesse com a tinta fossilizada dos belemnitas.
Mesmo assim, o fato é que ela desenvolveu um real interesse pelos fósseis que coletava, e mesmo sem nenhum tipo de educação formal em anatomia, taxonomia ou qualquer outra disciplina coisa, ela se esforçou para ler toda a literatura científica que pôde, até adquirir um saber em anatomia e em geologia que apenas os gentleman riquíssimos de sua época poderiam ter; além disso, ela se especializou não só em coletar os fósseis, mas em prepará-los; realizava dissecações de animais viventes, principalmente peixes, para comparar seu esqueleto com os fósseis, e era capaz de desenhar ilustrações dos fósseis que coletava. Em suma, Mary Anning fazia tudo o que um bom paleontólogo faz hoje. Com a única diferença de que ela era uma mulher pobre e sem formação universitária vivendo numa sociedade machista e aristocrática – além de pertencer a uma minoria religiosa que era perseguida pela Igreja Anglicana, os Congregacionalistas.
Isto demonstra uma das lições que a história de Mary Anning pode nos ensinar: sobre como pode ser importante o trabalho de pessoas não-acadêmicas, inclusive nos dias de hoje, no esforço de pesquisa e divulgação científicas.
Figura 4
Figura 4: Uma foto de uma praia de Lyme Regis nos dias atuais, mostrando uma impressão de um fóssil de Amonita em primeiro plano.

E se isso não bastasse, ainda é bom lembrar as condições do local em que Mary Anning coletava seus fósseis. As coletas nos costões rochosos de Lyme Regis eram mais produtivas durante o inverno, quando deslizamentos de terra expunham os fósseis – que tinham que ser coletados rapidamente, antes que as ondas do mar os levassem. As rochas ficavam em contato direto com o oceano, e uma onda mais forte poderia facilmente arrastar qualquer um que estivesse se esgueirando pelos penhascos. E de fato, o cachorro de Mary, Troy – que sempre a acompanhava nas suas coletas – infelizmente encontrou este triste destino, e sua dona quase o acompanhou na ocasião. Isso certamente é uma lição, algo a se pensar para caras como eu, cuja maior dificuldade que já encontrei no campo foi sentir um pouco de calor e perceber que as nossas latas de Coca-Cola já tinham acabado.
Apesar de todos os seus grandes achados e de sua história incrível, o fato é que hoje em dia até um paleontólogo fictício como aquele cara do Friends é mais conhecido do público, e provavelmente entre profissionais da área, do que Mary Anning. Isso se deve, em grande parte, ao fato de Mary nunca ter publicado nenhuma de suas descobertas (a única peça que pode ser considerada como uma publicação científica de Mary Anning é uma carta que ela escreveu à revista científica Magazine of Natural History questionando se um fóssil de tubarão do gênero Hybodus, recentemente descrito naquela revista, representaria efetivamente um gênero novo – veja detalhes em Emling, 2009) e, claro, de ter vendido quase todas elas aos pesquisadores. Porque, apesar de todo o interesse e dedicação mostrados por ela, os fósseis sempre lhe foram, sobretudo, aquilo que garantia o seu sustento. Porém, é importante notar que a maioria dos pesquisadores que publicaram pesquisas sobre fósseis encontrados por ela não teve sequer a decência de citar o seu nome em seus trabalhos. Durante a vida, Mary chegou a vender fósseis, se corresponder e trocar ideias e informações com vários cientistas importantes de sua época, entre eles Richard Owen, Louis Agassiz, Henry de la Beche (cujo desenho Duria Antiquor, considerado o primeiro trabalho de paleoarte da história, foi feito baseado nos fósseis encontrados por Anning), Charles Lyell e Adam Sedgwick – os dois últimos, professores de Charles Darwin.
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Figura 5: Na Inglaterra, as famosas “Blue Plaques” são usadas para homenagear lugares em que pessoas ilustres nasceram, residiram ou morreram. Esta placa está no local em que Mary Annig nasceu, em Lyme Regis, e que hoje está convertido em um museu.

 
Todos estes nomes são hoje conhecidos como precursores da geologia e da paleontologia; e todos contaram para isso com os achados de Mary Anning, que por sua vez caiu no esquecimento. E isso é algo que, infelizmente, acontece até hoje; vários fósseis, como se sabe, são encontrados por trabalhadores ou pessoas que estão passando à toa por um determinado lugar, e o pesquisador, depois de pesquisar e publicar seus resultados, se recusa até a citar o nome de quem encontrou o fóssil! Muitos de nós pensamos “Mas o que é que um pedreiro ganha se eu agradecer a ele por ter achado um crânio completo enquanto trabalhava numa obra? Não vai adiantar nada ele colocar isso no Currículo Lattes dele!”.  É evidente que o encontrar do fóssil é uma etapa que faz parte de todo um processo que vai até a publicação. Mas é uma etapa sem a qual, simplesmente, o resto da pesquisa nunca existiria!
Figura 6
Figura 6: “Google Doodle” celebrando o 215º aniversário de Mary Anning, em 2014.

 
Outra reflexão que a história de Mary Anning provocou em mim, particularmente, diz respeito ao o que ser um pesquisador realmente significa. Um cientista é, acima de tudo, alguém que trabalha com um método, com a razão, para obter as respostas às perguntas que faz a si mesmo; mas nada disso faz sentido se não há uma emoção envolvida nisso. O cientista deve gostar do que faz, deve ver sentido naquilo que investiga, deve ter uma convicção de que o ele faz é importante. E, na minha opinião, são essas os motivos que devem mover o cientista a fazer o que faz, muito mais do que atingir um número de publicações ou arranjar empregos e financiamentos. É claro que ninguém pode condenar aqueles que colocam isso como prioridade – como ninguém pode condenar Mary Anning por ter vendido fósseis em sua época – mas eu acredito que, mais importante que preencher nossos currículos e nossas vaidades, o cientista deve trabalhar tendo em mente que o que ele faz é importante, faz sentido para o mundo, e que ele é uma pessoa em que todos depositam a esperança de que seu trabalho fará o ser humano entender melhor o mundo. Os títulos acadêmicos, por exemplo, não são uma coisa para se ficar exibindo para as nossas tias mas, ao invés disso, são apenas etapas na formação de um profissional. O maior objetivo de um cientista em formação, e de um cientista formado também, não deveria ser colecionar títulos ou publicações, mas aprendizado e experiência, coisas que dependem muito mais da própria dedicação individual do que de qualquer outra – como provou Mary Anning, há mais de duzentos anos atrás.
E hoje, especificamente em um 8 de março, a história e a trajetória de Mary Anning se tornam ainda mais significativos pelo Dia da Mulher. Hoje, muito diferentemente da época de Mary Anning, as mulheres possuem bastante espaço na comunidade científica, com várias mulheres se destacando como cientistas em várias áreas, incluindo a nossa Paleontologia. No entanto, ainda há muito que pode ser feito, e a história de Mary Anning nos alerta sobre como o conhecimento que a ciência pode proporcionar à humanidade fica prejudicado quando uma mulher é discriminada simplesmente por ser mulher, ou quando qualquer pessoa é discriminada seja por motivo de gênero, etnia, cor da pele, nacionalidade, ideologias, opiniões ou religião. Por isso, neste dia 8 de março, que Mary Anning seja um exemplo de gana de conhecimento, sim, mas também de que o sexo ou gênero de um cientista simplesmente não têm nada – absolutamente nada – a dizer no que diz respeito à sua capacidade como cientistas.
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Figura 7: Reconstituição do desenho Duria Antiquor (1830), de Henry de la Beche, baseado grandemente em fósseis coletados por Mary Anning.

 
Referência bibliográfica:
Emling, Shelley (2009), The Fossil Hunter: Dinosaurs, Evolution, and the Woman whose Discoveries Changed the World, Palgrove Macmillan, ISBN 978-0-230-61156-6
Para saber mais:
http://www.ucmp.berkeley.edu/history/anning.html
https://www.sdsc.edu/ScienceWomen/anning.html
http://www.macroevolution.net/mary-anning.html
Um vídeo contando a história de Mary Anning:
Referências das Figuras:
[1],[3]: http://www.bbc.co.uk/schools/primaryhistory/famouspeople/mary_anning/
[2] https://en.wikipedia.org/wiki/Plesiosaurus
[4]: http://www.dorsetlife.co.uk/2012/05/from-ancient-to-modern-lyme-regis-fossil-festival/
[5], [6]: http://heavy.com/news/2014/05/mary-anning-215-birthday-google-doodle/
[7]: https://en.wikipedia.org/wiki/Duria_Antiquior


16735619_1201225939972881_1202071666_oGiovanne Mendes Cidade, Bacharel em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Mestre e atualmente Doutorando em Biologia Comparada pela Universidade de São Paulo (USP), campus de Ribeirão Preto. Estuda principalmente crocodilianos fósseis, com ênfase em sistemática, taxonomia, biogeografia e anatomia de crocodilianos do Cenozoico, em especial do grupo dos Alligatoroidea. Também tem interesses diletantes em história da Paleontologia e em filosofia da Ciência como um todo, e da Biologia em particular, além de Evolução.