Prehistoric Planet: um (baita) exercício de especulação

A semana é boa quando você acaba sendo agraciado com 40 minutos diários de Mesozóico. Agora que terminamos de ver Prehistoric Planet, a série mais do que hypada da Apple TV+, que tal refletirmos sobre a origem do estilo especulativo da série?

Quando saíram os primeiros sinais do que era Prehistoric Planet, escrevi um texto a respeito de como a nova série de documental viera para repaginar (e talvez até substituir) a clássica ‘Caminhando com Dinossauros’. Era uma aposta óbvia: em mais de 20 anos, nenhuma outra produção sobre dinossauros conseguiu atingir o mesmo nível e impacto, e Prehistoric Planet parecia estar aqui exatamente para isso. E, embora muita gente siga comparando as duas séries, percebi que a grande inspiração da produção da Apple TV+ não era o clássico de 1999, mas sim um… livro.

Capa do livro “All Yesterdays” – A melhor dica de livro que você vai receber hoje.

All Yesterdays é um livrinho simpático e aparentemente inofensivo. Creditado aos paleoartistas John Conway e C.M. Kosemen e ao paleontólogo Darren Naish. A proposta da obra é realizar uma releitura das representações paleoartísticas do Mesozoico, assumindo dinossauros como seres vivos e não gigantes sanguinários com tendência a berrar e mostrar os dentes 24 horas por dia. Sentiu uma semelhança com Prehistoric Planet? Calma que é só metade da história.

Um Allosaurus e um Camptosaurus apenas se encarando, sem segundas intenções. Porque o predador não precisa estar caçando e a presa não precisa estar fugindo 100% do tempo.

Desde o chamado “Renascimento dos Dinossauros”, nos anos 1970-80, uma tendência dos paleoartistas foi representar esses animais como organismos complexos e atléticos, mas magrelões secos, verdadeiros sacos de ossos. Isso não é de se surpreender, uma vez que tecidos moles raramente são preservados, restando aos paleoartistas reimaginar essas criaturas tendo apenas os ossos como base.

Greg Paul é um dos maiores nomes da paleoarte e do Renascimento dos Dinossauros, e suas representações hiper-atléticas e zero gordura destes animais seguem sendo uma das mais influentes e reproduzidas nos últimos 40 anos. Por esse motivo que dinossauros magros são tão comuns na paleoarte. Aqui, um Tyrannosaurus apelão apostando corrida.

Em All Yesterdays, os autores reforçam que os dados científicos publicados devem ser utilizados ao máximo na reconstrução de tecidos moles, incluindo aí músculos, tecidos conjuntivos, penas, chifres e escamas. Com isso, temos uma nova interpretação dessas criaturas, reforçando ainda mais a visão dos mesmos como animais, e não monstros. Um exemplo que ilustra bem o caso é o dos bracinhos dos abelissaurídeos.

Um Majungasaurus agita seus bracinhos num claro sinal de comunicação. Já viu um abelissaurídeo fazendo isso em algum lugar?

Se existem evidências de que os diminutos braços dos abelissaurídeos possuem uma articulação que permite a rotação do membro em vários ângulos e, ainda por cima, cicatrizes musculares que indicam uma alta possibilidade de movimentos, por que não imaginá-los como órgãos de comunicação? E, seguindo essa lógica, porque não reconstruí-los com cores chamativas? Esse é o espírito de All Yesterdays, que foi muito bem encarnado em Prehistoric Planet

O jeito Carnotaurus de dizer “Oi gata, tá afim de ver uma Netflix?”. Cena do episódio 5.

Aliás, qualquer semelhança entre essas obras está longe de ser coincidência: o já citado paleontólogo Darren Naish é o principal consultor científico da série, e John Conway e outros paleontólogos/paleoartistas fortemente ligados ao “movimento” também deram assistência em sua criação.

Confia.

E é exatamente por isso, por conta dessa pegada “especulativa mas baseada no maior número possível de trabalhos científicos”, que Prehistoric Planet está sendo considerada a produção mais fidedigna sobre a vida no Mesozoico (e essa constatação não é apenas minha, mas a de muitos paleontólogos de respeito). Nada de dinossauros se matando como kaijus saídos do quinto dos infernos, mas sim animais bem adaptados ao seu ambiente.

Inclua no balaio da especulação mosassauros utilizando “estações de limpeza” em recifes de corais, Dreadnoughtus disputando direitos reprodutivos com sacos infláveis a la fragata, Quetzalcoatlus fazendo voos intercontinentais, um “Troodon” ateando fogo na floresta para tirar suas presas de seus esconderijos, Triceratops buscando minerais dentro de cavernas, e por aí vai.

Outro momento All Yesterdays: elasmossaurídeos fazendo display com o pescoço fora d’água, presente tanto na série como no livro. Cena do episódio 1.

Nenhum comportamento exibido na série “veio do nada”: com uma equipe de consultores tão grande e experiente, tais suposições foram baseadas ou em evidências fósseis ou por “phylogenetic bracketing“, um maneira de inferir traços em organismos a partir de sua posição num cladograma. Um assunto muito interessante que renderia horas e horas de discussão e, no mínimo, um novo post sobre.

Um exemplo resumido de phylogenetic bracketing: é de se assumir que cuidado parental seja uma condição ancestral em dinossauros, uma vez que tanto as aves (dinossauros modernos) quanto os crocodilos (parentes vivos mais próximos) possuem esse traço. Cena do episódio 4.

Pra cimentar esse jeitão “tão real que parece até de verdade”, temos o estilo documental. Cinegrafistas gravaram as tomadas de paisagens nos quatro cantos do planeta, para então inserirem os dinosauros de CGI nelas (e que CGI, senhoras e senhores… os efeitos são, no mínimo, ABSURDOS). Esse trabalho de câmera (que, inclusive, foi utilizado 23 anos atrás em Caminhando com Dinossauros) resultou numa abordagem muito mais realista, sem os maneirismos permitidos e artificiais de produções 100% animadas (como o caso de Planet Dinosaur).

Dinossauros de CGI em meio a cavalinhas de CGI fugindo de pterossauros de CGI. Ao fundo, nuvens de CGI. Planet Dinosaur pode parecer ser tudo, menos realista.

E, por fim, temos o estilo narrativo. Cada episódio é focado num ecossistema, com vinhetas que mostram como bicho X lida com a vida no ambiente Y: no fim das contas, um episódio se resume a sequências dramáticas sem muita conexão umas com as outras. Essa pegada tornou-se meio que um padrão nas produções recentes, como Planeta Terra II e Nosso Planeta, para citar apenas dois exemplos.

E é exatamente aqui que encontro o calcanhar de Aquiles de Prehistoric Planet (e devo ressaltar que essa é apenas a minha opinião). Ao assistir a série, notei que não existem praticamente nenhuma explicação de como as especulações foram feitas: elas simplesmente estão lá, assumidas como verdade absoluta. Isso é uma falha grave num documentário cuja intenção é transmitir conhecimento. Para entender melhor qualquer comportamento exibido, você ou deve ter conhecimento prévio sobre o assunto ou precisa pesquisar um bocado na internet.

Existe evidência fóssil da língua-pegajosa-armadilha-de-cupim do Mononychus? Não, embora a gente pode supor sua existência por outros detalhes anatômicos. Sei disso por ter visto o documentário? Não. É porque dei um Google depois de assistir. Cena do episódio 2.

O jeitão polido que Prehistoric Planet emula das outras séries de peso da BBC impede um maior teor científico ou mesmo um jargão mais pesado em cada episódio. Isso podia ter sido evitado se houvessem maiores explicações ao longo da narração, ou no mínimo um episódio especial apenas sobre a “ciência da série”. Ou ainda, imitando outros documentários modernos, colocando um “making of” de 10 minutos após a exibição, para deixar claro como foi feita a reconstrução. Infelizmente, o mais próximo disso foram vídeos de 4-5 minutos, lançados como bônus no serviço de streaming e também no canal da Apple TV+, explicando um único caso por episódio. Complicado.

Mesmo com essa ressalva (que considero bem relevante), estou com a maioria: Prehistoric Planet é uma obra excepcional, digna de ser considerada uma das maiores, senão a maior, produção do tipo já feita. O simples fato de trazer essas especulações tão bem baseadas em evidências ao público amplo através de uma produção de altíssimo nível já é louvável e garante um destaque. Na verdade, eu gostei tanto que já estou me preparando para reassisti-la e trabalhar em análises de cada episódio, porque tem pano pra gente discutir aqui!

Porque não é todo dia que somos brindados com Tarbosaurus tirando uma sonequinha <3 Cena do episódio 2.

Link para meu texto anterior: https://www.blogs.unicamp.br/colecionadores/2022/04/20/de-caminhando-com-dinossauros-ate-prehistoric-planet/

Prehistoric Planet está na Apple TV+: https://tv.apple.com/us/show/prehistoric-planet/umc.cmc.4lh4bmztauvkooqz400akxav

O conteúdo bônus da série pode ser visto aqui: https://www.youtube.com/watch?v=FIeCzBCLJww&list=PLx-VtE7KiW8zKg7VkRGBV5gguBncOPe-a

Você pode adquirir o ebook de All Yesterdays na amazon.com.br por R$ 20,00: https://www.amazon.com.br/All-Yesterdays-Speculative-Dinosaurs-Prehistoric-ebook/dp/B00A2VS55O/ref=sr_1_1?keywords=all+yesterdays&qid=1653761942&sprefix=all+yester%2Caps%2C227&sr=8-1&ufe=app_do%3Aamzn1.fos.4bb5663b-6f7d-4772-84fa-7c7f565ec65b

De ‘Caminhando com Dinossauros’ até ‘Prehistoric Planet’

por Juan Vitor Ruiz

Com a nova série da Apple TV+ chegando, que tal voltar no tempo e percorrer os caminhos traçados até a nova produção?

Foi numa noite de outono em 1999 que espectadores britânicos do canal BBC One tiveram uma experiência que, até então, era o mais próximo possível de entrar numa máquina do tempo. Uma paisagem rural tipicamente inglesa se transformava conforme o narrador descrevia uma viagem ao passado, para então, subitamente, presenciarmos uma disputa entre dois tiranossauros em carne e osso. Seis anos antes, Jurassic Park já havia apresentado os dinossauros mais palpáveis e realistas que o mundo já vira, mas dessa vez era diferente. O que estava sendo exibido na TV não era um filme hollywoodiano, uma obra claramente fictícia: era um documentário de natureza como qualquer outro, mas ambientado há centenas de milhões de anos.

O documentário em questão, a minissérie em 6 episódios Caminhando com Dinossauros (Walking with Dinosaurs), foi mais uma joia na coroa da BBC, que possui até hoje a fama de produzir o que há de melhor no gênero de documentários de história natural. Os avanços tecnológicos nos anos 1990 permitiram inserir as criaturas mesozóicas digitais (e alguns closes de bonecões animatrônicos bem trabalhados) em tomadas de paisagens naturais sem soar artificial ou exagerado.

A cabeçona animatrônica de um Utahraptor. Se envelheceu melhor ou pior que os dinos de CGI, é um ponto a ser discutido

Some isso a um roteiro elaborado, uma trilha sonora que remete a filmes de terror clássicos da Hammer, as locações absurdamente sensacionais (incluindo campos de basalto no Chile, florestas pluviais na Tasmânia e montanhas na Nova Zelândia) e uma narração dramática feita pelo shakespeariano Kenneth Branagh, e temos um épico que bateu recordes de audiência, levou 3 Emmys (incluindo o de melhores efeitos visuais) e, mais importante, estabeleceu um novo gênero. Sim, os efeitos visuais podem ter envelhecido mal aos nossos olhos treinados de 2022, mas uma coisa é certa: Caminhando com Dinossauros mostrou que é possível assumir computação gráfica como real, aliar ficção à nãoficção e trazer dinossauros não-avianos e outros seres pré-históricos para a TV de forma completamente crível.

Uma das locações mais impressionantes de toda a série são os recifes e florestas de coníferas da Nova Caledônia vistos no episódio 3, A Cruel Sea

Mais de 20 anos depois, porém, o alto nível de Caminhando com Dinossauros não foi batido por nenhum outro documentário. O criador da série, Tim Haines, seguiu produzindo documentários derivados que, mesmo com certo apreço da crítica e público, acabaram tornando-se reféns da própria genialidade do original, repetindo a mesma fórmula, mas sem aquele gás de inovação. Fora do nicho da BBC, foram produzidas um monte de cópias descaradas (um monte mesmo), algumas até com o seu valor de entretenimento, mas a maioria descartável (do ponto de vista de científico/paleontológico, claro), meras paródias sem muito valor criativo e científico.

O tiranossauro tipicamente estressadinho de Dinosaur Revolution (2011): apenas mais uma tentativa de criar um mundo mesozoico através de CGI (uma das piores, em minha opinião)

Talvez Planet Dinosaur (2011), também da BBC, tenha sido a última reencenação mesozoica de calibre, ainda que bem limitada dentro de suas próprias premissas. Diferentemente de Caminhando com Dinossauros, essa série foi inteiramente reconstruída através de computação gráfica. Sendo uma animação completa, e aliada ao seu estilo de fotografia frenético e trilha sonora com pegada eletrônica, Planet Dinosaurs parece mais um videogame do que um documentário. Nada daquela atmosfera palpável e sombria que havíamos visto 12 anos antes.

Planet Dinosaur possui bastante embasamento científico e uma diversidade notável de dinossauros, mas o climão de game não tornou essa série tão memorável
De 2015 pra cá, porém, tivemos mudanças, e os documentários de natureza estão vivendo uma nova era de ouro, impulsionados pelos avanças tecnológicos, pelos serviços de streaming e, claro, pelas redes sociais. E, de novo, a BBC está no centro de tudo: a famosa e viral sequência a la Mad Max de um bebê iguana sendo perseguido por dezenas de cobras é de um de seus documentários, Planet Earth II (2016). Um ano depois, Blue Planet II (2017) se tornou o programa mais assistido na Grã Bretanha (mais do que o reality The X Factor, acreditem) e foi tão assistido na China que bugou a internet por lá. Narrativas mais elaboradas e uma grande ênfase na fotografia e trilha sonora estão tornando os documentários cada vez mais cinematográficos, atraindo um público crescente que não mede esforços em compartilhar os melhores momentos nas redes. Nessa toada, uma hora ou outra alguém ia trazer um novo documentário sobre dinossauros.
É aqui que pediram um Deinocheirus?

Eis que, nas últimas semanas, a Apple TV+ nos presenteou com o teaser, sneak peek, trailer, sinopse e data de estreia do que está prometendo ser a maior produção do tipo desde Caminhando com Dinossauros (finalmente!)

WTF?! Especulações são parte importante de qualquer reconstrução paleoartística, desde que muito bem embasadas no que já sabemos. O time de paleontólogos consultores, incluindo o tetrapodólogo Darren Naish (ele mesmo historicamente bem crítico e criterioso), garante que nada muito viajado apareça no produto final. Inclusive, muito do livro All Yesterdays parece estar na série, incluindo o display de bracinhos dos abelissaurídeos.

Anunciada há cerca de 3 anos, Prehistoric Planet traz um time que vai fazer qualquer dinonerd se arrepiar: David Attenborough na narração (segundo uma fonte, ele foi convidado para narrar Caminhando com Dinossauros mas negou, alegando que seria um falso-documentário, hmm…), Hans Zimmer assinando a trilha sonora, Mike Gunton (Life, Planet Earth II, The Green Planet) como co-produtor executivo e, o que acho mais interessante, o absurdamente prolífico Jon Favreau também assumindo a produção executiva. Não é coincidência, então, que os efeitos visuais (lindos, pelo que já foi exibido) foram realizados pela Moving Picture Company, responsável pelo visual dos recentes Mogli e O Rei Leão, ambos dirigidos por Favreau.

O homem que quis fazer um pouco de tudo.

Além disso, nada foi muito divulgado a respeito dos episódios em si, mas tenho alguns palpites. A série, que se passa durante o Cretáceo, segue a fórmula comum dessas grandes produções com o título “Alguma Coisa Planet”, com (provavelmente) cada um dos cinco episódios focando num ecossistema (litorais, desertos, água doce, florestas e “mundos congelados” são indicados no site da Apple TV+ e, agora, no novo trailer). Será uma oportunidade interessante de ver os bichões interagindo não apenas entre si, mas com o meio, trazendo uma perspectiva mais ecológica (e que não é muito retratada nesses documentários).

Um Qianzhousaurus (?) chinês é mais um indicativo de que, contrário à maioria das produções do tipo, a série vai viajar ao redor do mundo ao invés de se centrar unicamente na América do Norte.

Mas, talvez o mais importante, é que Prehistoric Planet está sendo lançado num momento perfeito para atualizar nossa visão dos dinossauros. Desde Caminhando com Dinossauros, na virada do milênio, foram tantas descobertas e reinterpretações publicadas em artigos científicos, debatidas por pesquisadores e trazidas à vida por paleoartistas (e me refiro à paleofauna em geral) que soa meio estranho que dinossauros e afins permaneçam sendo representados pela maioria dos veículos de mídia mais de acordo com nossa visão noventista do que com o que sabemos hoje.

Um documentário com o escopo e alcance de Prehistoric Planet poderá realmente surtir mudanças em como esses animais são representados mundo afora a partir de então. Digo, tivemos que esperar até 2022 para vermos um tiranossauro emplumado numa grande produção!

Como uma visão pessoal, não espero que essa nova série supere Caminhando…, um divisor de águas que possui um enorme valor sentimental para mim e, suspeito, milhares de outras pessoas mundo afora. Mas Prehistoric Planet chegou, e estamos diante da oportunidade de repaginar e atualizar a tão clássica Caminhando com Dinossauros, com grande potencial de que, no futuro, Prehistoric Planet seja vista com o mesmo ar de admiração e soberania.

Aqui está um react recente que o Tito publicou no canal dos Colecionadores de Ossos:

Mais indicações de leitura e vídeo:

A separação dos continentes em uma visão histórica

Texto por Mário G. F. Esperança Júnior

As paisagens que reconhecemos à nossa volta possuem uma história bastante dinâmica. Por exemplo: rios mudam de curso, lagos secam, mares retraem e avançam sobre os continentes… Em um intervalo de tempo mais amplo, montanhas são formadas e erodidas, oceanos se fecham, novas espécies de organismos surgem enquanto outras são extintas. Evidências geológicas mostram que esses processos são recorrentes e se sucederam por todo o planeta desde seus primórdios.

No sul do Brasil, afloram rochas do período Permiano, intervalo que compreende de 298 a 252 milhões de anos atrás. Essas rochas são ricas em fósseis da extinta Flora Glossopteris, plantas as quais também são encontradas em depósitos sedimentares da África, Antártida, Austrália e Índia. Atualmente, estas regiões estão separadas por extensos oceanos, que são barreiras intransponíveis para grande parte dos organismos terrestres, incluindo as plantas. Sendo assim, pode-se deduzir que tais áreas estiveram unidas durante o Permiano, e mais tarde se afastaram até chegarem em suas localizações atuais. Dessa forma, as floras e faunas que antigamente colonizaram regiões contíguas, passaram a ser encontradas na forma de fósseis em lugares distantes.

A evolução desse pensamento científico levou muitos anos até chegar aos moldes que hoje conhecemos. Mas para entendermos a sucessão dos fatos que nos levam a resposta acerca de tais semelhanças fossilíferas, precisamos voltar alguns séculos atrás…

As primeiras ideias

Com a chegada dos europeus ao continente americano no século XV e com a confecção dos primeiros mapas em escala global, notou-se que a costa oeste da África e leste da América do Sul possuem contornos semelhantes, assim sugerindo que tais continentes estivessem em algum momento unidos. Àquela época, contudo, perduravam as ideias bíblicas de que a Terra seria jovem, e o conhecimento científico limitava-se à observação direta do meio devido à ausência de tecnologia capaz de comprovar tais fenômenos. Somente no século XVII é que surgiram as primeiras evidências acerca de uma idade para a Terra. Ao observar intrusões de granitos, bem como o ciclo de erosão e deposição de sedimentos, o naturalista escocês James Hutton deduziu que havia muito tempo envolvido nesses processos, concluindo que a Terra seria muito antiga, “sem vestígio de um começo, nem perspectiva de um fim” (Hutton, 1788). Décadas mais tarde, o matemático irlandês Lord Kelvin calculou a idade do planeta, que estaria entre 20 e 400 milhões de anos, dado o presente equilíbrio térmico e fluxo de calor da superfície. Esse cálculo foi posteriormente refinado, mas somente no final do século XIX, com a descoberta da radioatividade por Henri Becquerel e o subsequente desenvolvimento das técnicas de datação radiométricas, é que se chegou à atual idade de 4,56 bilhões de anos. Essa escala de tempo é grande o suficiente para explicar processos naturais muito lentos para a humanidade, porém recorrentes na história da Terra.

A comprovação da existência de um tempo profundo talvez tenha sido um dos principais fatores para o estabelecimento de uma teoria que explicasse o encaixe dos continentes percebido séculos antes. Tais ideias foram fomentadas no início do século XX com o trabalho do geólogo austríaco Eduard Suess (Fig. 1), ao notar a presença das folhas fósseis do tipo Glossopteris na América do Sul, África e Índia. A coocorrência das mesmas plantas em áreas distantes e separadas por oceanos é um indicativo de que essas massas de terra já estiveram conectadas, por fim denominando essa antiga região como Terra de Gondwana (Suess, 1885). A fim de explicar tal observação, Suess deduziu que o resfriamento do planeta causaria o adensamento de certas áreas que consequentemente afundariam formando os oceanos. Entre essas regiões, haveria pontes de terra permitindo o intercâmbio da fauna e flora, sendo que estas conexões mais tarde submergiriam resultando no padrão geográfico atual. Essa teoria, no entanto, não foi bem aceita por não existirem evidências físicas de tais fenômenos. Nos anos subsequentes, propuseram-se, ainda, que uma massa de terra primária poderia ter sido partida em continentes menores devido à expansão volumétrica do planeta (Mantovani, 1889), e também que a movimentação das mesmas seria fruto da força das marés – hipóteses que foram rejeitadas por físicos e matemáticos.

Fig. 1. Autores de importantes trabalhos na construção da geologia moderna. Da esquerda para a direita: James Hutton, Eduard Suess, Alfred Wegener, Arthur Holmes e John Tuzo Wilson. Modificado de commons.wikimedia.org.

Foi assim que, em 1915, o meteorologista alemão Alfred Wegener propôs que as massas continentais outrora estivessem amalgamadas no supercontinente Pangeia (Fig. 2), dadas semelhanças não somente entre os fósseis, mas também com as rochas e estruturas geológicas encontradas nos dois lados do Atlântico (Wood, 1980). Por exemplo, a presença de fósseis de Mesossauros, antigos répteis marinhos encontrados na América do Sul e África, também apontavam para tal proximidade. Além disso, a ampla presença de rochas glaciais, denominadas de tilitos, sugeria uma união de diversas áreas próximo ao polo sul. Com essas e outras evidências, propôs-se a teoria do afastamento, ou deriva dos continentes, fenômeno que seria decorrente da rotação da Terra (Wegener, 1915). Contudo, a explicação de Wegener sobre o motor responsável pela deriva não foi bem aceita pela comunidade científica. O verdadeiro mecanismo responsável pela afastamento dos continentes só foi estabelecido anos mais tarde pelo geólogo inglês Arthur Holmes. Conforme a ideia apresentada, existiriam fluxos convectivos verticais abaixo dos continentes, constantemente alimentados pelo calor gerado por elementos radioativos do interior da Terra. Tais fluxos arrastariam as massas continentais continuadamente, ocasionando na formação de assoalho oceânico nas regiões em que as correntes quentes sobem, e na criação de montanhas na borda em que o fluxo frio desce (Holmes, 1931). Entretanto, as evidências do processo descrito por Holmes surgiram somente anos depois com a ampliação do conhecimento sobre o fundo oceânico.

Fig. 2. Configuração atual dos continentes (à esquerda) e uma definição atualística da Pangeia durante o período Permiano, com os contornos dos continentes modernos (à direita).
 

Nesse sentido, o conhecimento a respeito da Dorsal Mesoatlântica exerceu um papel fundamental no entendimento da deriva continental. Esta cadeia de montanhas submarina foi inicialmente identificada em 1872, em uma expedição liderada pelo naturalista escocês Charles W. Thomson com o objetivo de investigar a área por onde passariam cabos submarinos de telégrafo, ligando a Europa à América do Norte. Mas foi somente após a Segunda Guerra Mundial que realmente se intensificaram as pesquisas sobre o assoalho marinho, o que incluiu os primeiros mapeamentos do fundo oceânico realizados por sonar (Heezen et al., 1959). Com isso, constatou-se que a Dorsal Mesoatlântica, em quase sua totalidade, inclui um vale em rifte – regiões de vulcanismo intenso em que terremotos são frequentes. Além disso, datações do assoalho marinho mostraram que o mesmo é composto por rochas vulcânicas jovens. Dessa maneira, a formação da litosfera oceânica é o resultado da atividade vulcânica recente desses riftes, que pouco a pouco afastam porções mais antigas, expandindo o oceano (Heezen, 1960; Dietz, 1961). Assim, ao menos parte das ideias de Holmes já possuía alguma comprovação no início da década de 60.

O nascimento de uma teoria unificadora

No entanto, existia uma interessante questão em aberto: já que o assoalho dos oceanos é criado ao longo das dorsais, haveria algum mecanismo capaz de destruí-lo? Com o avanço do mapeamento do fundo marinho durante a década de 60, o geólogo canadense John Tuzo Wilson constatou que certas falhas geológicas, dorsais e fossas submarinas se interconectam formando grandes placas. Assim, a litosfera seria dividida em diversas placas rígidas que se movimentam e submergem sob os arcos vulcânicos ao envelhecerem e resfriarem. À medida que o oceano é destruído, os continentes circundantes se aproximam e eventualmente colidem formando cadeias de montanhas, a exemplo dos Himalaias (Wilson, 1963; 1965; 1966). Dessa forma, a abertura e fechamento dos oceanos seria um encadeamento cíclico, e portanto, repetitivo ao longo da história da Terra (Fig. 3). Mais tarde, esse processo foi denominado, em sua homenagem, de Ciclo de Wilson – uma importante contribuição ao que hoje conhecemos por Teoria da Tectônica de Placas (Fig. 4).

Fig. 3. O Ciclo de Wilson. 1 – Desenvolvimento de rifte sobre um continente estável; 2 – Com a continuidade do processo, surge um oceano com uma dorsal entre duas massas de terra; 3 – O oceano se expande afastando os continentes; 4 – A litosfera oceânica esfria e adensa, afundando na astenosfera e resultando numa fossa adjacente a um arco vulcânico; 5 – O oceano é consumido, reaproximando os continentes; 6 – Os continentes colidem formando uma única massa de terra com uma cadeia montanhosa; 7 – As montanhas são erodidas.

Atualmente, o avanço tecnológico permite inferir temperaturas para o interior da Terra através de tomografia sísmica. Com isso, comprovou-se a existência de regiões quentes próximas às dorsais, enquanto que as temperaturas são mais baixas onde antigas placas oceânicas afundaram. Essa ascensão de material quente e descida de rochas frias demonstra o processo de convecção proposto por Holmes no começo do século passado. O desenvolvimento da tecnologia permitiu, também, mensurar com grande precisão a taxa de afastamento dos continentes (e portanto, a taxa de expansão do assoalho oceânico). No caso do Atlântico, o afastamento varia de 1,8 centímetro por ano, próximo à Islândia; até 3,5 centímetros ao ano, entre o Brasil e o sul da África (Grotzinger e Jordan, 2013), velocidades realmente lentas para a percepção da humanidade. Entretanto, distâncias consideráveis podem ser alcançadas, levando-se em consideração o amplo intervalo de tempo que compreende a fascinante história da Terra.

Fig. 4. As placas tectônicas e alguns exemplos dos estágios do Ciclo de Wilson (conforme fig. 3). 1 – Grande Vale do Rifte (África); 2 – Mar do Japão; 3 – Oceano Atlântico (fotografia da porção emersa da Dorsal Mesoatlântica, Islândia); 4 – Andes (Vulcão El Cotopaxi, Equador); 5 – Mar Mediterrâneo; 6 – Himalaias (Ásia); 7 – Eurásia central. Modificado de commons.wikimedia.org (autores: Ævar Arnfjörð Bjarmason, peterhartree, David Ceballos, Shivam Maini).

Referências

Dietz, R.S. 1961. Continent and ocean-basin evolution by spreading of the sea floor. Nature 190, 854-857.

Grotzinger J., Jordan T.H. 2013. Para entender a Terra. 6. ed. Porto Alegre: Bookman.

Heezen, B.C., Tharp, M., Ewing, M. 1959. The floors of the ocean, I. The North Atlantic. Geological Society of America, Special Paper 65.

Heezen, B.C. 1960. The rift in the ocean floor. Scientific American 203, 98-110.

Holmes, A. 1931. XVIII. Radioactivity and Earth Movements. Transactions of the Geological Society of Glasgow 18(3), 559–606.

Hutton, J. 1788. X. Theory of the Earth; or an Investigation of the Laws observable in the Composition, Dissolution, and Restoration of Land upon the Globe. Earth and Environmental Science Transactions of The Royal Society of Edinburgh 1(2), 209 – 304.

Mantovani, R. 1889. Les fractures de l’écorce terrestre et la théorie de Laplace. Bulletin de la Société des sciences et arts de l’Ile de la Réunion, 41–53.

Suess, E. Das Antlitz der Erde. 1885. Leipzig: Freytag.

Wegener, A. 1915. Die Entstehung der Kontinente und Ozeane. Braunschweig: Vieweg.

Wilson, J.T. 1963. A possible origin of the Hawaiian islands. Canadian Journal of Physics 41, 863-870.

Wilson, J.T. 1965. A new class of faults and their bearing on continental drift. Nature 207, 343-347.

Wilson, J.T. 1966. Did the Atlantic close and then re-open? Nature 211, 676-681.

Wood, R.M. 1980. Coming Apart at the Seams. New Scientist 85, 252-254.

Cetáceos e seus “modos à mesa”: um guia de como filtrar sua comida

Nas últimas postagens você teve a oportunidade de conhecer alguns grandes cetáceos fósseis predadores, como Basilosaurus isis e Ankylorhiza tiedemani. Mas não só de caçadas sanguinolentas vivem esses animais. Bom, isso se você não for um cardume de lulas, peixes ou crustáceos...

Na postagem de hoje, vamos contar sobre como as baleias foram por um caminho um pouco diferente e se tornaram alguns dos maiores seres viventes do planeta, alimentando-se por filtração. Caso você seja parte do cardápio, é bom por sebo nas canelas, ou melhor, nas nadadeiras, porque a fome aqui é gigantesca.

Um balaio de baleia

Antes de qualquer coisa, é importante entender quem são as baleias filtradoras:

Em inglês, o termo whale (baleia) pode ser usado popularmente para se referir a qualquer espécie de cetáceo, seja este pequeno ou grande, com dentes ou não. Porém, também existe uma palavra para se referir especificamente às baleias filtradoras : baleen (algo como “barbas” ou “barbatanas”, em português).

Baleen” refere-se particularmente aos Mysticeti ou “misticetos“, no bom português. Misticetos são os cetáceos dos grupos Balaenopteridae, Balaenidae, Eschrichtiidae, Neobalaeninae e alguns outros grupos fósseis. Estes grupos possuem barbatanas (ou barbas) no lugar dos dentes, que servem para filtração, e é por isso, que esses cetáceos são chamados de “baleias filtradoras” ou “baleias de barbatana” aqui no Brasil.

Também há nomes populares específicos para diferenciar certos grupos. Rorqual, por exemplo, refere-se somente às baleias da família Balaenopteridae, que incluem baleias-azuis, baleias-fin, baleias-sei, baleias-de-bryde, baleias-de-rice, baleias-minke e baleias-jubarte. Baleias verdadeiras, por sua vez, é o nome usado para denominar as Balaenidae, representas pelas baleias-francas-austrais, baleias-francas-do-atlântico-norte, baleias-francas-do-pacífico, e as baleias-da-groenlândia.

As outras duas famílias, Eschrichtiidae e Neobalaeninae, não ocorrem no Brasil, e normalmente são chamadas pelos nomes das espécies que as representam: baleia-cinzenta (Eschrichtiidae) e a rara baleia-franca-pigméia (Neobalaeninae).

Algumas espécies de baleias filtradoras (CASTRO & HUBER, 2012).

Modos à mesa 

Cada grupo de baleia filtradora possui características anatômicas diferentes que refletem modos únicos de filtrar a água para se alimentar. Porém, pelo menos uma coisa é comum entre elas: as barbatanas, estruturas compridas e enfileiradas, feitas de queratina (mesmo material que forma nossos cabelos e unhas), presentes na boca desses animais. Tais barbatanas acabaram por substituir os dentes dos misticetos ao longo de sua evolução.

File:Humpback whale baleen.jpg
Barbatanas. Imagem de Randall Wade (Rand) Grant, sob licença CC BY 2.0.

As barbatanas funcionam como uma escumadeira ou peneira, que permite que a água abocanhada durante a alimentação seja expulsa da boca, com a ajuda da língua, e que o alimento fique preso enquanto a água sai.

As rorquais possuem pregas na região ventral, que se expandem como o papo de um pelicano, permitindo com que elas possam abocanhar (engolfar) grandes quantidades de água com cardumes inteiros de pequenos peixes ou krill (um tipo de camarãozinho). Já as baleias-verdadeiras, são mais corpulentas, não possuem pregas ventrais e a sua boca é em forma de arco. Elas basicamente se alimentam filtrando a água enquanto nadam com a boca aberta.

As barbatanas das baleias-verdadeiras podem ter entre 2 metros de altura, até 5,2 metros de altura!

As baleias-cinzentas, por sua vez, abocanham a areia do fundo marinho filtrando-a em busca de crustáceos enterrados. Elas possuem sulcos na garganta em vez de pregas ventrais. As baleias-franca-pigméia, por fim, possuem uma mistura de características: boca em forma de arco como a das baleias verdadeiras, sulcos ventrais na garganta como as baleias-cinzentas e estilo de alimentação como as rorquais.

Diferenças entre as formas de filtração das rorquais (baleia-azul) e das baleias verdadeiras (baleia-franca). A água entra na boca e depois é expulsa com a ajuda da língua ao pressionar o céu da boca, fazendo a água passar pelas barbatanas (CASTRO & HUBER, 2012).

Mas sempre foi assim? Como será que as barbatanas surgiram? As formas de alimentação sempre foram as mesmas desde o começo da evolução dos misticetos? Como as espécies transicionais se alimentavam? Essas são perguntas que o registro fossilífero pode ajudar a responder…

Comendo com hashi, os “palitinhos japoneses

Os basilossaurídeos foram os primeiros cetáceos totalmente aquáticos. Eles eram grandes caçadores, inclusive de outros cetáceos, e tinham a boca cheia de dentes diferentões, como já citamos AQUI. A pergunta inevitável é: como essas “baleias primitivas” foram de caçadoras dentadas para as banguelas filtradoras que temos na atualidade? Bom, alguns achados fósseis das últimas décadas possibilitaram entender parte desse processo: 

Em 2016, Felix G. Marx junto com outros colegas, analisaram estranhas ranhuras encontradas em dentes fósseis de um grupo de baleias “primitivas” chamadas de Aetiocetidae, comuns no Oligoceno.

Crânio de aetiocetídeo (MARX et al., 2016).

Eles analisaram um fóssil específico, encontrado em rochas da região de Washington, EUA. O espécime, datado do Oligoceno Superior demonstrou afinidade aos misticetos, mas possuía um padrão de desgaste nos dentes muito diferente, não compatível com a presença de barbatanas. Felix e colegas, depois de muitas análises, associaram os desgastes horizontais nos dentes a uma alimentação por sucção, sugerindo que as barbatanas dos misticetos teriam surgido mais tarde, próximo à origem das baleias filtradoras modernas. O que isso significa? Que antes de filtrar, os misticetos provavelmente teriam se alimentado sugando o alimento, como se faz quando comemos macarrão com hashi!

Figura 5. Padrões de desgaste em dentes, sugerindo alimentação por sucção em um aetiocetídeo (MARX et al., 2016).

As ranhuras horizontais observadas nos dentes foram comparadas com outros animais que também se alimentam por sucção na atualidade, como belugas, algumas baleias-bicudas, morsas e certas espécies de focas. Pelo padrão de desgaste, a língua deveria funcionar como um pistão, fazendo pressão para que a água e a(s) presa(s) fossem sugados rapidamente para dentro da boca, o que deveria causar estes desgastes.

Etapas de sucção mostrando a língua de um Aetiocetidae funcionando como um pistão. Ilustração por David Hocking.

Também foram observadas marcas em alguns dentes, relacionadas com a expulsão da água e sedimentos que eventualmente eram sugados junto com o alimento. Os Aetiocetidae deveriam ficar com a boca meio aberta enquanto expulsavam tudo aquilo que não era alimento. Essas marcas são semelhantes às encontradas em certas espécies de mamíferos marinhos citados anteriormente, que também se alimentam por sucção.

Mas e agora? Onde as barbatanas aparecem nessa história, se os primeiros misticetos ainda tinham dentes e sugavam a comida, ao invés de morder tudo que passava pela frente? Mais uma vez, o registro fossilífero pode nos ajudar a entender essa história, mas agora vamos contar com a ajuda de análises em animais atuais para entender outra parte dessa saga evolutiva única.

Comendo com garfo e colher

Alguns autores sustentam que as barbatanas teriam aparecido em alguns misticetos extintos que ainda possuíam dentes. Eles descrevem que essa teria sido uma “fase de transição” evolutiva, em que esses cetáceos teriam exibido uma alimentação mista: de predadores ativo por sucção, que também seriam capazes de realizar filtragem. Achados fósseis do Oligoceno Superior, publicados em 2008, por Thomas A. Deméré e colegas, permitiram o reconhecimento de marcas no céu da boca de espécies fósseis de Aetiocetidae, que indicariam uma alimentação por filtração.

Aetiocetus weltoni, um Aetiocetidae mostrando a hipótese de ocorrência simultânea de dentes e barbatanas (Ilustração de Carl Buell) (DEMÉRÉ et al., 2008).

O material descrito por Thomas pertence a uma espécie denominada Aetiocetus weltoni. Nos fósseis foram encontradas ranhuras de inervação no palato (céu da boca) semelhantes àquelas observadas nas baleias filtradoras atuais. As inervações saem da região dos alvéolos dentários (local onde se encaixam os dentes) exatamente como nos misticetos atuais. Segundo os autores, isso seria uma evidência de que a espécie fóssil teria tido barbatanas.

Palato de baleia atual sem dentes, mostrando os sulcos de inervações (a-b) e palato de Aetiocetus weltoni mostrando os sulcos de inervações junto com a dentição (MARX et al., 2016).

Inicialmente achava-se que as barbatanas poderiam ter surgido a partir de estruturas rígidas no céu da boca dos misticetos basais, chamadas de “cristas córneas palatinas”, também presentes nos artiodáctilos (cabras, bois, camelos, hipopótamos, etc.), grupo no qual os cetáceos são aparentados. Porém, as inervações encontradas nos fósseis observados por Thomas e colegas reforçaria outra hipótese.

Thomas e colegas observaram fetos de baleias filtradoras atuais e notaram que, apesar de “banguelas” quando adultas, a sua sequência de dentes se desenvolve em sua fase fetal. O seu crescimento é que é interrompido pela ação de alguns genes. Quando tais genes se ativam, os dentes são reabsorvidos pelo organismo, mantendo somente as inervações no palato geradas durante o seu crescimento inicial.

Vista lateral de um feto baleia-fin (Balaenoptera physalus) com corte mostrando botões de dente na mandíbula superior (MARX et al., 2016).

Durante a reabsorção dentária, queratina é secretada e é isso que forma as placas de barbatana no lugar dos dentes reabsorvidos. Essas placas crescem constantemente enquanto o filhote se desenvolve e, ao longo da vida, são desgastadas e desfiadas, ficando com a aparência que conhecemos.

A ordem dos talheres

Alguns autores, todavia, alertam: assim como a origem das penas em dinossauros não-avianos não marca a origem do vôo, o aparecimento dos canais de inervação no palaro dos misticetos não necessariamente indicaria a presença de barbatanas. Em vez disso, esses sulcos inervados em alguns aetiocetídeos fóssei poderiam, por exemplo, ter fornecido condições anatômicas e fisiológicas iniciais para o aparecimento posterior das barbatanas. 

Felix G. Marx e colegas, em seu trabalho de 2016, apontam que a presença de dentes alternados, como os observados no fóssil descrito por Thomas e colaboradores em 2008, acabariam danificando as barbatanas, se essas estivessem presentes. Os mesmos autores também observam que a mandíbula das baleias filtradoras atuais é mais larga, o que permite com que as barbatanas não sejam danificadas durante o fechamento da boca do animal. Além disso, misticetos atuais também possuem uma adaptação muscular especial que permite com que a mandíbula rotacione levemente durante a oclusão, o que também dificulta o dano às barbatanas.  Em aetiocetídeos, por sua vez, o tamanho da mandíbula e sua forma de abertura indicam que, qualquer barbatana, se presente, seria danificada durante o fechamento da boca.

Esquema de fechamento da boca e a acomodação das barbatanas nas baleias verdadeiras (Balaenidae) e nas rorquais (Balaenopteridae) em comparação com o fechamento da boca dos Aetiocetidae possivelmente sem barbatanas (MARX et al., 2016).

Felix e demais colegas até tentam dar uma chance ao modelo de barbatanas+dentes. Eles sugerem um cenário em que as barbatanas poderiam estar entre os dentes do animal e que, com o fechamento da boca, elas se dobrariam para dentro, similar ao que ocorre com as baleias-da-groenlândia. Todavia, ainda sim, a presença dos dentes alternados atrapalharia o dobramento e danificaria significativamente as estruturas. Os autores concluem, que as barbatanas não teriam surgido dessa forma. Talvez elas tenham surgido em outros grupos que tivessem uma mandíbula mais larga e/ou uma dentição reduzida ou inexistente.

Um jeito alternativo de comer

A capacidade de gerar sucção é fundamental para a maioria dos vertebrados aquáticos e é amplamente observada entre os mamíferos marinhos atuais. No entanto, até o trabalho de Felix e colegas, ela raramente havia sido associada à evolução dos misticetos. A sucção é muito útil na alimentação subaquática, pois facilita o transporte do alimento até o fundo da boca, onde ele será deglutido. Essa forma de adquirir alimentos provavelmente já estava presente em cetáceos basais, muito antes dos misticetos, mas esse é um comportamento relativamente difícil de se interpretar por meio de fósseis.

O uso de sucção na alimentação e provável ausência de barbatanas nos misticetos basais sugeriria um modelo diferente de evolução da alimentação por filtragem em baleias:

(1) Misticetos basais, incluindo aetiocetídeos, tinham tanto a dentição funcional, quanto a habilidade de usar sucção, herdada de cetáceos anteriores;

(2) A água ingerida por eles, como resultado da sucção, era expelida fundamentalmente com auxílio dos dentes;

(3) algum grupo de misticeto ancestral aprimorou suas capacidades de sucção ao longo do tempo, com o desenvolvimento de mandíbulas mais largas e tecidos moles associados (“calos” ou dobras na gengiva, lábios expandidos, etc.). O aperfeiçoamento desta capacidade teria favorecido a perda da dentição com o tempo;

(4) Com a perda da dentição, as barbatanas teriam evoluído e, gradualmente, sido selecionadas.

Esquema evolutivo das baleias filtradoras. (MARX et al., 2016).

Este cenário seria mais plausível, pois exclui problemas potenciais de interferência entre uma dentição ativa e barbatanas. Ele explica também como os dentes poderiam ter sido perdidos, sem afetar o sucesso da alimentação. Além disso, ele está de acordo com a evidência observada no desenvolvimento de fetos de misticetos atuais, que mostra que o crescimento das barbatanas só se dá quando os dentes são reabsorvidos.

A sucção seguida de filtragem é uma forma de alimentação que pode limitar bastante o tamanho máximo da presa a ser capturada. O aperfeiçoamento dos tecidos moles associados à dentição, em especial a gengiva, é uma forma de lidar com este problema. Primeiro, um mecanismo para prensar a presa deve ter surgido nos misticetos basais e, depois disso, um aparato apropriado de filtragem – isto é, as barbatanas.

Uma adaptação observada nos botos-de-dall (Phocoenoides dalli), espécie vivente de cetáceo, pode ajudar a imaginar como o processo teria acontecido. Esses cetáceos odontocetos (não diretamente aparentados às baleias filtradoras) têm dentes rudimentares e possuem em sua boca, também, pequenos “dentes na gengiva”, semelhantes aos brotos iniciais das barbatanas dos misticetos. Essas estruturas ajudam os botos-de-dall a capturarem suas presas. Pode ser que essa adaptação seja uma pista de como se deu a perda gradual da dentição em misticetos e posterior surgimento das barbatanas.

A origem das barbatanas, adaptação chave das baleias filtradoras modernas (Mysticeti), marca uma transição profunda e única na história evolutiva dos vertebrados. Hoje, ela é um pouco melhor compreendida, porém, como vocês viram, ainda restam detalhes a serem desvendados sobre como esta belíssima crônica evolutiva se desenrolou. A compreensão da evolução dos “modos à mesa” das baleias pode estar, não só nos fósseis, mas em uma combinação entre estudos paleontológicos, genéticos e do desenvolvimento.

Referências:

CASTRO, Peter; HUBER, Michael E. Biologia marinha. AMGH Editora, 2012.

DEMÉRÉ, Thomas A.; MCGOWEN, Michael R.; BERTA, Annalisa; GATESY, John. Morphological and molecular evidence for a stepwise evolutionary transition from teeth to baleen in mysticete whales. Systematic biology, v. 57, n. 1, p. 15-37, 2008.

MARX, Felix G.; HOCKING, David P.; PARK, Travis; ZIEGLER, Tim; EVANS, Alistair R.; FITZGERALD, Erich M. G. Suction feeding preceded filtering in baleen whale evolution. Memoirs of Museum Victoria, v. 75, 2016.

O devorador de baleias ancestrais

Anteriormente falamos aqui sobre um incrível golfinho caçador que dominou as águas do Oligoceno no sul da Califórnia (E.U.A) e suas contribuições para a evolução dos cetáceos (grupo que inclui as baleias e golfinhos). Citamos algumas diferenças entre ele e um grupo de cetáceos muito mais antigo, que incluía também caçadores tão excepcionais quanto, os gigantescos basilossaurídeos. Mas afinal, quem são esses cetáceos com nome de dinossauro?

Basilossaurídeos. Ilustração por Artbyjrc.

Os fósseis mais antigos de basilossaurídeos são encontrados em rochas datadas do final do Eoceno Médio. Eles são encontrados em todo o mundo, incluindo África, Ásia, Europa, América do Norte e do Sul, Nova Zelândia e até mesmo na Antártica. De maneira geral, basilossaurídeos eram cetáceos com o corpo extremamente alongado, algumas espécies chegando a mais de 18 metros de comprimento. Foi por meio de fósseis desses cetáceos “arcaicos” que paleontólogos tiveram as primeiras pistas de que os golfinhos e baleias se originaram de mamíferos inicialmente terrestres.

O entendimento da ancestralidade terrestre só foi possível graças à preservação de ossos vestigiais das patas traseiras. Estas, eram pequenas e provavelmente semelhantes às nadadeiras peitorais dos golfinhos atuais, ou seja, não se conectavam/articulavam mais diretamente com a coluna. Isso demonstra que basilossaurídeos não conseguiriam mais sustentar o seu próprio corpo em terra e, portanto, seriam os primeiros cetáceos completamente adaptados à vida marinha. Também foram os cetáceos mais antigos a mostrar a migração das narinas da ponta do focinho para o topo da cabeça, como vemos hoje nas baleias e golfinhos modernos.

Esqueleto de Dorudon atrox evidenciando as patas traseiras rudimentares e desconexas da coluna vertebral. Foto do Repertório online de fósseis do Museu de Paleontologia da Universidade de Michigan.

Grandes répteis?

A primeira espécie de basilossaurídeo foi descrita em 1834 por Richard Harlan, que batizou-a de Basilosaurus, “Lagarto Rei” em grego antigo. Porém, Harlan havia interpretado aqueles fósseis erroneamente como sendo de um grande réptil marinho. Percebendo esse erro, Richard Owen, em 1839, reavaliou os fósseis do Basilosaurus associando-o aos cetáceos, e dando-lhe um novo nome, Zeuglodon, que significa “Dentes de Jugo”, também derivado do grego antigo.

Apesar dessa nova avaliação, o nome original dado por Harlan permaneceu devido às regras internacionais da nomenclatura zoológica, que definem que o primeiro nome dado a uma nova espécie é o que deve ser considerado válido.

Evidências de um grande caçador

Nos últimos anos, descobertas de novos fósseis de basilossaurídeos na região do Egito, no continente africano, revelaram relações nada amigáveis entre algumas espécies do grupo. Alguns fósseis indicam que o gigantesco Basilosaurus isis, um animal que atingia até 18 metros de comprimento, seria predador de uma espécie menor de basilosaurídeo conhecida como Dorudon atrox. Essa descoberta deu pistas sobre como os grandes basilossauros do Eoceno Médio e Final eram efetivamente os “reis” dos mares. 

Esqueletos de (A) Basilosaurus isis e (B) Dorudon atrox (VOSS et al., 2019).

Julia M. Fahlke relata em um trabalho publicado em 2012, que fósseis das duas espécies de basilossaurídeos foram encontrados no mesmo sítio fossilífero. Porém, havia algo estranho ali: na localidade eram encontrados fósseis tanto de juvenis quanto de adultos de Dorudon atrox e somente fósseis de adultos de Basilosaurus isis. No mesmo trabalho, Fahlke relata também, que alguns dos crânios de D. atrox possuíam grandes marcas de mordida, que depois de análise detalhada, puderam ser interpretadas como ferimentos letais, ou seja, elas eram a provável causa de morte desses organismos. Quem seriam os responsáveis pelas mordidas?

Isso levou a pesquisadora a propor a hipótese de que adultos de B. isis poderiam, no passado, ter invadido as áreas de parto de D. atrox para atacar seus filhotes. Não havia, no entanto, nenhuma evidência direta para apoiar essa hipótese. Fahlke, então, decidiu digitalizar os fósseis para testar a sua ideia. Ela aplicou técnicas de tomografia computadorizada e obteve modelos tridimensionais (3D) dos crânios fossilizados. Os modelos 3D dos espécimes juvenis de D. atrox foram colocados digitalmente na boca de um B. isis adulto e as marcas de mordidas comparadas com o tamanho e posicionamento dos dentes. Bingo! As marcas de mordida no crânio dos juvenis de D. atrox correspondiam exatamente à dentição de B. isis.

Modelo digital 3D do espécime juvenil de Dorudon atrox (azul) na boca de um Basilosaurus isis adulto (cinza) (FAHLKE, 2012).

O perfil do culpado

A pesquisadora também produziu modelos de argila dos dentes de B. isis e observou que as marcas nos crânios dos juvenis de D. atrox também se encaixavam com as características específicas dos dentes da espécie maior de basilossaurídeo. As marcas variavam ainda de acordo com qual dente fincou no crânio do animal, a posição do ataque, a força aplicada durante a mordida e o estado de desgaste natural dos dentes de B. isis

Foi proposto também, que algumas marcas poderiam ter sido causadas por outros animais como Crocodilus megarhinus, grandes crocodilos marinhos do final do Eoceno do Egito, ou Carcharocles sokolowi, um grande tubarão encontrado mesmo depósito, com dentes de até 9,5 cm. Porém, as marcas analisadas não se encaixavam com as características da arcada e dos dentes dessas espécies. O culpado realmente só poderia ser Basilosaurus isis.

Acreditava-se, até então, que a alimentação dos cetáceos primitivos era limitada a peixes, entretanto, com esse estudo, as primeiras evidências de uma predação mais ampla foram sugeridas. 

Um mundo onde baleia comia baleia (e também tubarão!)

Apesar do excelente trabalho feito por Fahlke, evidências diretas eram necessárias para comprovar definitivamente a relação de predação proposta pela autora. A preservação do conteúdo estomacal desses enormes predadores seria o ideal. 

Eis que, em 2019, Manja Voss e colegas publicaram um trabalho justamente com a peça faltante para a compreensão dessa relação entre presa e predador: o conteúdo estomacal de um B. isis foi encontrado e nele, partes de D. atrox. Voss e colegas relataram evidências de três espécies de vertebrados encontrados no conteúdo estomacal de B. isis. Haviam partes de dois juvenis de D. atrox, dentes de um pequeno peixe ósseo (Pycnodus mokattamensis) e dentes de um grande tubarão (Carcharocles sokolowi).

Fotomosaico de Basilosaurus isis encontrado com conteúdo estomacal preservado (VOSS et al., 2019).

Os autores sugeriram ainda que, devido ao grande tamanho de algumas presas encontradas, B. isis  não deveriam ser capazes de engoli-las inteiras. Considerando o comportamento de cetáceos atuais, eles também não deveriam consumir a carne de carcaças. Eles eram devidamente capazes de atacar animais de grande porte e abatê-los, além de terem dentes apropriados para cortá-los em pedaços. A cena deveria ser terrível.

Muito se comparou B. isis com as grandes orcas (Orcinus orca) da atualidade, pois estas também são de caçadores de topo de cadeia, que consomem animais, incluindo outros mamíferos marinhos e tubarões, às vezes muito maiores do que elas mesmas. A descoberta elucidou um pouco mais sobre a dinâmica dos predadores de topo dos oceanos do início da Era Cenozóica. 

As orcas também caçam filhotes de grandes baleias, assim como consomem parte das presas maiores, dando uma perspectiva sobre como B. isis faziam em sua época. Porém, as orcas caçam em grupo e esse tipo de interação não é possível de ser verificada no registro fossilífero de  B. isis. Pelo menos até o momento…

Restos cranianos de juvenil de Dorudon atrox (VOSS et al., 2019).

Pelas informações adquiridas a partir desses trabalhos, entende-se que B. Isis foram possivelmente os primeiros cetáceos a se alimentarem de outros cetáceos de sua época. Os trabalhos citados aqui também ampliam o conhecimento sobre a evolução da dieta desse grupo de animais, antes interpretados como consumidores exclusivos de peixes. Ainda há muito a se descobrir sobre a  paleoecologia dos cetáceos extintos. O registro fossilífero sempre guarda surpresas e é preciso uma atenção especial e, às vezes, até mesmo criatividade para se desvendar os mistérios guardados nos fósseis.

Referências:

FAHLKE, Julia M. Bite marks revisited — evidence for middle-to-late Eocene Basilosaurus isis predation on Dorudon atrox (both Cetacea, Basilosauridae). Palaeontologia Electronica, v. 15, n. 3, p. 32A, 2012.

MARX, Felix G.; LAMBERT, Olivier; UHEN, Mark D. Cetacean paleobiology. John Wiley & Sons, 2016.

VOSS, Manja., ANTAR, Mohammed Sameh., ZALMOUT, Iyad S., & GINGERICH, Philip D. Stomach contents of the archaeocete Basilosaurus isis: Apex predator in oceans of the late Eocene. PloS one, v. 14, n. 1, p. e0209021, 2019.