Um dinossauro pescoçudo nanico é o mais novo dinossauro brasileiro

Os maiores animais a caminharem em terra firme foram os dinossauros saurópodes, apelidados de pescoçudos. Algumas espécies de pescoçudos,  como o Argentinosaurus ou o Patagotitan, encontrados na Argentina, podiam ultrapassar 30 metros de comprimento. Verdadeiros colossos capazes de fazer a terra tremer! Mas nem todos os saurópodes eram assim… Existiram centenas de espécies desses dinossauros em quase todos os continentes e, apesar da maioria ser conhecida pelo seu grande tamanho, algumas formas adotaram uma tendência contrária. Existem alguns casos de pescoçudos anões, formas com a altura de um cavalo ou de um camelo, como Magyarosaurus ou Europasaurus, encontrados em ambientes de ilhas antigas. Via de regra, essas formas anãs são encontradas em ambientes de ilhas, pois devido a restrição de área e recursos, a miniaturização do corpo pode ser uma vantagem. Porém, para nossa surpresa, fósseis de uma nova espécie de dinossauro pescoçudo anão foram encontradas aqui no interior do Brasil, em um lugar que esteve bem longe do mar durante toda a Era dos Dinossauros. Essa espécie de dinossauro foi descoberta na cidade de Ibirá, no interior de São Paulo, e se tornou uma das menores espécies de dinossauros pescoçudos conhecidas do mundo!

Reconstituição da nova espécie de dinossauro anão de Ibirá. Arte por Matheus Gadelha.

Por mais de 15 anos o Prof. Marcelo Fernandes (UFSCar) e seu grupo de pesquisa, eu inclusa, têm coletado fósseis no Noroeste Paulista, em uma localidade onde são encontrados abundantes fósseis de dinossauros. As rochas e fósseis dessa localidade datam do Período Cretáceo e têm aproximadamente 80 milhões de anos. Dentre os fósseis recuperados estão restos de dinossauros carnívoros, crocodilos, tartarugas e vários outros animais da “Era dos Dinossauros”. Muitos restos de dinossauros herbívoros foram encontrados na localidade, mas até o momento nenhuma espécie de pescoçudo havia sido nomeada para a região.

Eu procurando por fósseis no sítio onde foram encontrados fósseis do pequeno pescoçudo em Ibirá, SP. Foto por Tito Aureliano.

Fui eu quem trabalhou pela primeira vez, durante a minha graduação, com os fósseis do pequeno dinossauro pescoçudo de Ibirá. Àquela época, o dinossauro não ganhou nome, mas foi reconhecido como diferente das outras espécies descritas para o Brasil até então. Muito tempo se passou, mais fósseis desse pequeno dinossauro foram encontrados e, finalmente, alguns anos atrás, a missão de liderar a descrição da espécie desse misterioso dinossauro nanico foi dada ao paleontólogo Bruno Navarro, atualmente estudante de doutorado no Museu de Zoologia da USP, e especialista em dinossauros saurópodes. Bruno, Marcelo e eu contamos com a ajuda de uma excelente equipe de colaboradores nesse processo e, no último dia 15 de setembro, apresentamos formalmente essa nova espécie de dinossauro ao mundo científico.

O colega Bruno Navarro em Ibirá, SP, procurando por fósseis. Foto do arquivo pessoal de Bruno.

Comparando os fósseis do pequeno dinossauro de Ibirá com materiais de outros animais do mesmo grupo encontrados no Brasil e no mundo, foi possível concluir que ele pertencia à família dos saltassauros, um grupo de titanossauros que inclui algumas espécies de já de tamanho bastante reduzido. Além disso, o pequeno dinossauro de Ibirá apresentava várias características únicas, não compartilhadas com seus parentes mais próximos, logo, uma nova espécie poderia ser batizada. O nome escolhido foi Ibirania parva. Ibirania é a junção das palavras Ibirá – cidade onde a espécie foi encontrada – e ania que em grego significa “caminhante, peregrino”. Já parva é o latim para ‘pequeno’. Como a palavra Ibirá vem do Tupi para “Árvore” – é possível traduzir o nome desse dinossauro como “o pequeno peregrino das árvores”.

Reconstituição artística de Ibirania parva por Hugo Cafasso.

Desde o princípio era possível notar que os fósseis desse pescoçudo de Ibirá eram muito pequenos quando comparado a outros titanossauros, mas ao estimar o tamanho aproximado de um dos espécimes analisados, nos surpreendemos. Ele teria entre 5 e 6 metros de comprimento e seria da altura de uma vaca, o que o colocaria entre as menores espécies de saurópodes já descritas do mundo! Para checar se o tamanho reduzido seria porque o  espécime era apenas um jovem quando morreu, resolvemos analisar o tecido ósseo fossilizado do dinossauro ao microscópio. Essas amostras foram analisadas pelo paleontólogo Tito Aureliano, atualmente estudante de doutorado da Unicamp. A partir da análise do tecido ósseo foi possível concluir que Ibirania realmente era uma espécie de titanossauro anão, já que os fósseis pertenciam a um animal adulto no momento de sua morte, ou seja, ele não cresceria mais ao longo de sua vida.

Tamanho estimado de Ibirania parva comparado a um humano de 1,80m. Em destaque as partes descobertas do esqueleto.
Vértebra dorsal de Ibirania parva. Imagem de Navarro et al. (2022). Escala = 10cm.

No interior de São Paulo, durante o final do Período Cretáceo, há 80 milhões de anos, caminharam muitos dinossauros pescoçudos de grande tamanho, e até gigantes, como o Austroposeidon. Mas havia algo de especial na região de Ibirá, que favoreceu a existência de pescoçudos nanicos. Diferente de outros anões que viviam em ilhas tropicais onde hoje é a Europa, como Magyarosaurus ou Europasaurus, Ibirania vivia no interior do Brasil, em um ambiente semi-árido com períodos chuvosos intercalados por secas intensas. Foi esse ambiente hostil, com recursos limitados periodicamente, que selecionou esses pequenos dinossaurinhos herbívoros, que ao invés de migrar, provavelmente permaneciam residentes na região.

Ibirania é a primeira espécie comprovadamente anã das Américas e viveu em um contexto muito diferente dos outros dinossauros pescoçudos anões já encontrados. Ela acrescenta novas informações sobre a evolução dos titanossauros e também sobre a ocorrência de nanismo em dinossauros saurópodes. Ibirania recebeu o apelido carinhoso de “Bilbo”, em referência ao hobbit de “O Senhor dos Anéis”, por ser um nanico entre gigantes. Se você quiser saber todas as descobertas que este ‘dinossauro-Hobbit’ já forneceu, assista à playlist: https://www.youtube.com/watch?v=_kH96sPGjfg&list=PLHPifkNwYyYYNFP-wvUXNti7NGkfNQ8hz.

O estudo foi publicado na revista Ameghiniana e pode ser acessado AQUI.

Assista também ao vídeo de divulgação:

Referência:

A. Navarro, B., M. Ghilardi, A. ., Aureliano, T., Díez Díaz, V., N. Bandeira, K. L., S. Cattaruzzi, A. G., V. Iori, F., M. Martine, A., B. Carvalho, A., Anelli, L. E., A. Fernandes, M., & Zaher, H. (2022). A NEW NANOID TITANOSAUR (DINOSAURIA: SAUROPODA) FROM THE UPPER CRETACEOUS OF BRAZIL. Ameghiniana, 59(5), 317-354. https://doi.org/10.5710/AMGH.25.08.2022.3477

Prehistoric Planet, o guia de episódios

Breves considerações sobre cada capítulo, do litoral da Zelândia às florestas congeladas do Polo Norte.

Ainda dá pra falar da série? Depois de discorrer sobre as expectativas da produção e minhas primeiras impressões, chegou a hora de revisitar os cinco episódios de Prehistoric Planet. A série da AppleTV+ possui uma abordagem padrão dos documentários de natureza atuais, com cada episódio focado num ecossistema, o que garante uma salada de diversidade para a tela, tanto de criaturas como de seus habitats e condições climáticas. Somadas, elas perfazem o mais assombroso esforço paleoartístico conjunto já realizado.

Resolvi rever toda a série e fazer comentários breves, apenas minhas impressões, a respeito de cada episódio. Para deixar a leitura mais dinâmica, decidi trazer uma referência aos documentários prévios da BBC para cada capítulo. Em alguns casos, esses momentos claramente serviram de inspiração à algumas sequências de Prehistoric Planet (ou a coincidência é muito braba, quem garante?). Cabe a você identificá-las enquanto assiste (e depois dizer se concorda comigo!)

Sem mais delongas, Prehistoric Planet, capítulo por capítulo:

Episódio 1 – Costas (Coasts)

Prehistoric Planet não é uma série sobre dinossauros, é uma série sobre a fauna de nosso planeta durante o Maastrichtiano, o finalzinho do período Cretáceo. “Costas” deixa isso claro desde o princípio: os Tyrannosaurus são os únicos dinossauros num episódio que está cheio de pterossauros, plesiossauros e tartarugas.
Um episódio que se destaca por ser simplesmente o primeiro, aquele que, se assistirmos a série na ordem, representa o início da nossa viagem ao tempo. Tudo é novo, você não sabe o que esperar. Quem veio pelos clichês do gênero se surpreende com peixinhos limpando a pele de um mosassauro, amonites bioluminescentes, Tuarangisaurus engolindo pedra, e por aí vai. Prehistoric Planet não apenas almeja mostrar a vida do Cretáceo como nunca antes vista, mas se orgulha em fazer isso.

Amonite bioluminescente do episódio 1, “Costas”.

Sequência favorita: no Norte da África, bebês Alcione (A Voz do Samba) precisam fazer um voo dos rochedos onde eclodiram às florestas seguras, passando por um verdadeiro corredor aéreo de predadores. Tudo aqui funciona: as paisagens são lindas, a diversidade de pterossauros impressiona, os comportamentos especulativos são sensacionais (os filhotes “caindo” durante o voo é o ponto alto) e, principalmente, o trabalho dos cinegrafistas é, no mínimo, realista. Filmar aves em voo não é tarefa fácil, ainda mais durante perseguições, e essa dificuldade é transposta em Prehistoric Planet: perceba como as imagens do Barbaridactylus em voo são tremidas, como eles saem e entram do enquadramento, às vezes fora de foco, tal qual um falcão seria filmado hoje em dia. Sublime.

O que não gostei: aqui temos os únicos momentos de toda a série em que o CGI claramente me pareceu CGI. Alguns movimentos dos répteis marinhos não me soaram naturais, especialmente a ausência de qualquer mudança de direção da cabeça dos mosassauros. Mas nada foi mais artificial do que quando as imagens de recifes de corais reais deram lugar, abruptamente, a recifes de CGI.

Parece que, enquanto assistia a Blue Planet, alguém mudou de canal e colocou em Procurando Nemo.

Momento “já vi isso na BBC”:

Episódio 2 – Desertos (Deserts)

O episódio sobre as regiões desérticas do planeta vem como um perfeito antídoto pra quem sentiu falta de dinossauros no episódio anterior: temos aqui o maior número de cabeças por minuto de projeção – só a sequência do oásis asiático tem mais figurantes que uns 3 episódios juntos. Lawrence da Arábia, versão cretácea.

Hadrossauros nômades (duas vezes!), pequenos especialistas do deserto, duelos de saurópodes e até mesmo lagartinhos garantem uma sequência mais impressionante que a outra, ainda que, como de costume, pouco seja explicado para além do que os dinossauros estão fazendo. Prehistoric Planet não almeja ser o tipo de documentário didático cheio de informações sobre o mundo, daqueles que a professora passava pra gente na escola. É uma obra muito mais contemplativa, artística. E, nesse quesito, a série acerta em cheio.

Mononykus retratato no episódio “Desertos”.

Sequência favorita: mais uma vez, temos a prova da qualidade audiovisual de Prehistoric Planet logo de cara. No meio do deserto, Dreadnoughtus se reúnem para disputar acesso às fêmeas de maneira extremamente violenta, praticamente uma versão terrestre de elefantes-marinhos. O grande macho líder está sujo de areia; no inevitável embate com um concorrente, a gente consegue enxergar o pó lançado ao ar a cada tranco que o bicho dá, um detalhe mínimo, mas que nos lembra do altíssimo nível da animação. Sem falar os efeitos sonoros bizarríssimos usados durante toda a sequência. Fino, coisa fina.

O que não gostei: embora seja um comportamento notável (e visto e revisto em outros documentários com o caso das sépias-gigantes do sul da Austrália), a cena das estratégias reprodutivas peculiares do Barbaridactylus perde ponto pelo antropomorfismo exagerado, em minha opinião (mais sobre isso, abaixo).

Momento “já vi isso na BBC”:

Episódio 3 – Água Doce (Freshwater)

Após rever a série inteira, confirmei minhas impressões iniciais: esse é meu episódio favorito. Acredito que aqui temos um ótimo equilíbrio entre criaturas “wtf?!” pulando (literalmente) na tela e bichos mais conhecidos vistos sob uma nova perspectiva. Se, por um lado, os famosos Velociraptor e Tyrannosaurus fazem uma reprise, somos brindados com um Deinocheirus flatulento e um grupinho fofo de Masiakasaurus (talvez um dos únicos bichos que não foi exibido na divulgação prévia do documentário).

Mas preciso dizer, o tema do episódio é ainda mais vago que os demais: apesar de se referir como “água doce”, a tal da água só tá ali pra servir de plano de fundo e conectar frouxamente minidramas do mundo natural. A ausência de crocodilos, um grupo extremamente diverso durante o Cretáceo, também não faz muito sentido.

Mãe Quetzalcoatlus e seu ninho, no episódio “Água Doce”.

Sequência favorita: os pterossauros em Prehistoric Planet roubam todas as cenas. Mesmo com uma bela sequência envolvendo uma mãe Quetzalcoatlus, porém, nada bate a arrepiante descida de três Velociraptor num desfiladeiro, atrás de… mais pterossauros, disparada minha cena favorita de toda a série. O negócio é tão bem feito que realmente parece algo filmado hoje em dia; o fato de o “ataque final” ter sido filmado numa tomada longa em plano aberto, com os bichinhos bem pequeninos e distantes, é só uma pequena parte disso. Quem já viu as inúmeras cenas de leopardos-das-neves em documentários sabe que não é fácil filmar caçadas completas em escarpas e penhascos, e a emulação dessa limitação técnica em Prehistoric Planet foi só mais uma nota do seu primor técnico.

E, convenhamos, ver os Velociraptor usando suas penas como vantagem para saltos mais longos é simplesmente impagável.

O que não gostei: a sequência dos Elasmosaurus, que fecha o episódio, é um tanto confusa geograficamente (ora parece que eles sobem o rio, ora que estão descendo), e não chega no mesmo nível de tudo o que foi mostrado antes. Não é necessariamente ruim, mas, para mim, serviu como um anticlímax.

Momento “já vi isso na BBC”:

Episódio 4 – Mundos Congelados (Ice Worlds)

Ainda hoje, mesmo dentro da academia (experiência própria), muitas pessoas vivem sob o antigo dogma de que dinossauros são lagartões de sangue frio, limitados a uma existência em áreas tropicais, úmidas e quentes. Um episódio inteiro dedicado à fauna cretácica das altas latitudes joga um banho de água fria (RÁ!) nessa visão, nos apresentando uma coleção extraordinária de dinossauros na neve. Como padrão quando o tema é regiões sazonais, o quarto episódio se desenrola no ritmo das estações, começando no início da primavera e terminando com as nevascas de inverno.

E sim, aqui temos o recorde de ornitísquios de Prehistoric Planet, com cinco formas diferentes dando as caras. O Olorotitan provavelmente reina soberano, e sua sequência é facilmente uma das mais bonitas de toda a série.

Troodontídeo usando fogo para caçar durante o episódio “Mundos congelados”.

Sequência favorita: embora o duelo final entre Pachyrhinosaurus e Nanuqsaurus seja o clímax perfeito, em termos técnicos e narrativos, para mim, toda e qualquer coisa que envolva a Antártida já é um destaque, então fico com o jovem Australopelta em busca de um refúgio no inverno. Além de possuir ecos diretos de Espíritos da Floresta de Gelo, meu episódio favorito de Caminhando com Dinossauros, acho que devemos lembrar que sempre é bom ver representações dos raríssimos anquilossauros gondwânicos.

O que não gostei: nada realmente problemático, mas achei a sequência original envolvendo Edmontosaurus e Dromaeosauridae um tanto genérica e previsível. Os Dromeosaurídae, por outro lado, são os Maniraptora mais bonitos da série (desculpa, Corythoraptor).

Momento “já vi isso na BBC”:

Episódio 5 – Florestas (Forests)

Das selvas do que é hoje a Argentina às florestas decíduas autunais do Extremo Oriente, o Planeta Pré-histórico era um Planeta Verde (Green Planet, ah lá o Attenborough fazendo jabá pra ele mesmo). Ao tratar de florestas, esse talvez seja o mais didático dos episódios, com brevíssimas menções à sucessão ecológica, papel ecológico do fogo e mudança de estações.

Mesmo assim, esse foi o com o qual menos me identifiquei (e veja abaixo o porquê). Pelo menos temos o Brasil, representado aqui pelo belíssimo Austroposeidon, da região de Presidente Prudente, SP.

Anquilossaurídeo que aparece no episódeo “Florestas”.

Sequência favorita: eu tenho uma queda por Abelisauridae, posso passar horas vendo as proporções bizarras de bichos como o Majungasaurus, Aucasaurus e, claro, o Carnotaurus. Mas também posso fazer isso com os Azhdarchidae, e como torci o nariz pra um pequeno detalhe envolvendo o Carnotaurus, minha sequência favorita ficou com o gigante Hatzegopteryx dando um rolê pelas florestas pré-históricas da Transilvânia. Os pequenos Zalmoxes são um detalhe à parte. O único contra é essa cena ter acabado tão rápido!

O que não gostei: criaturas antropomorfizadas têm sido comuns (infelizmente) em boa parte dos documentários atuais, e em Prehistoric Planet, não poderia ser diferente. Na minha interpretação, esse episódio traz mais momentos emotivos do que todos os outros. É o Carnotaurus visivelmente frustrado, o bebê Therizinosaurus admirado com o adulto e a mãe Triceratops apreensiva com sua filhote perdida na caverna. Passa a impressão de que o simples fato de os Triceratops adentrarem uma caverna não seja espetacular o bastante, precisa ser inserido um drama narrativo (e que nos distrai do que realmente é importante). Ainda que não chegue a um nível Disney de bobose, esses artifícios narrativos soam um bocado exagerados (e a trilha sonora contribui muito com isso), caminhando na contra mão do realismo proposto pela série.

Momento “já vi isso na BBC”:

Um breve adendo: a música da série

Eu sou um grande reclamão das trilhas sonoras dos documentários atuais. Para mim, elas são altas, onipresentes e sem inspiração, músicas compostas com o claro e único intuito de gerar emoções. Logo, já esperava que ia encontrar esse problema aqui, mas fui surpreendido positivamente: em algumas sequências, é possível apreciar o silêncio, o som do ambiente e dos animais.

Mas, quando presente, a trilha soa genérica demais. Em alguns casos, até lembra as de um filme de super-herói (a própria música título pode ter saído de um filme da Marvel). Essas características negativas ficaram ainda mais claras quando me lembrei da música de Caminhando com Dinossauros, que de genérica não tem nada, e percebi como ela foi importante para deixar a série de 1999 tão atmosférica, até meio sombria.

Felizmente alguém também notou isso, pois descobri uma sequência de Prehistoric Planet com a música de Caminhando com Dinossauros substituindo a original. Olha a diferença!

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Link para meu texto sobre expectativa da série: https://www.blogs.unicamp.br/colecionadores/2022/04/20/de-caminhando-com-dinossauros-ate-prehistoric-planet/

Link para meu texto sobre primeiras impressões da série, e sua inspiração: https://www.blogs.unicamp.br/colecionadores/2022/06/05/prehistoric-planet-um-baita-exercicio-de-especulacao/ 

Prehistoric Planet está na Apple TV+: https://tv.apple.com/us/show/prehistoric-planet/umc.cmc.4lh4bmztauvkooqz400akxav

Descrição do Austroposeidon magnificus: https://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0163373

Sépias espertas: https://www.youtube.com/watch?v=KT1-JQTiZGc&ab_channel=BBCEarth

Leopardo-das-neves: https://www.youtube.com/watch?v=GgDHvl1wD20&ab_channel=WildFilmsIndia

The Green Planet: https://www.youtube.com/watch?v=3G1arGl8RvA&ab_channel=BBC

Prehistoric Planet: um (baita) exercício de especulação

A semana é boa quando você acaba sendo agraciado com 40 minutos diários de Mesozóico. Agora que terminamos de ver Prehistoric Planet, a série mais do que hypada da Apple TV+, que tal refletirmos sobre a origem do estilo especulativo da série?

Quando saíram os primeiros sinais do que era Prehistoric Planet, escrevi um texto a respeito de como a nova série de documental viera para repaginar (e talvez até substituir) a clássica ‘Caminhando com Dinossauros’. Era uma aposta óbvia: em mais de 20 anos, nenhuma outra produção sobre dinossauros conseguiu atingir o mesmo nível e impacto, e Prehistoric Planet parecia estar aqui exatamente para isso. E, embora muita gente siga comparando as duas séries, percebi que a grande inspiração da produção da Apple TV+ não era o clássico de 1999, mas sim um… livro.

Capa do livro “All Yesterdays” – A melhor dica de livro que você vai receber hoje.

All Yesterdays é um livrinho simpático e aparentemente inofensivo. Creditado aos paleoartistas John Conway e C.M. Kosemen e ao paleontólogo Darren Naish. A proposta da obra é realizar uma releitura das representações paleoartísticas do Mesozoico, assumindo dinossauros como seres vivos e não gigantes sanguinários com tendência a berrar e mostrar os dentes 24 horas por dia. Sentiu uma semelhança com Prehistoric Planet? Calma que é só metade da história.

Um Allosaurus e um Camptosaurus apenas se encarando, sem segundas intenções. Porque o predador não precisa estar caçando e a presa não precisa estar fugindo 100% do tempo.

Desde o chamado “Renascimento dos Dinossauros”, nos anos 1970-80, uma tendência dos paleoartistas foi representar esses animais como organismos complexos e atléticos, mas magrelões secos, verdadeiros sacos de ossos. Isso não é de se surpreender, uma vez que tecidos moles raramente são preservados, restando aos paleoartistas reimaginar essas criaturas tendo apenas os ossos como base.

Greg Paul é um dos maiores nomes da paleoarte e do Renascimento dos Dinossauros, e suas representações hiper-atléticas e zero gordura destes animais seguem sendo uma das mais influentes e reproduzidas nos últimos 40 anos. Por esse motivo que dinossauros magros são tão comuns na paleoarte. Aqui, um Tyrannosaurus apelão apostando corrida.

Em All Yesterdays, os autores reforçam que os dados científicos publicados devem ser utilizados ao máximo na reconstrução de tecidos moles, incluindo aí músculos, tecidos conjuntivos, penas, chifres e escamas. Com isso, temos uma nova interpretação dessas criaturas, reforçando ainda mais a visão dos mesmos como animais, e não monstros. Um exemplo que ilustra bem o caso é o dos bracinhos dos abelissaurídeos.

Um Majungasaurus agita seus bracinhos num claro sinal de comunicação. Já viu um abelissaurídeo fazendo isso em algum lugar?

Se existem evidências de que os diminutos braços dos abelissaurídeos possuem uma articulação que permite a rotação do membro em vários ângulos e, ainda por cima, cicatrizes musculares que indicam uma alta possibilidade de movimentos, por que não imaginá-los como órgãos de comunicação? E, seguindo essa lógica, porque não reconstruí-los com cores chamativas? Esse é o espírito de All Yesterdays, que foi muito bem encarnado em Prehistoric Planet

O jeito Carnotaurus de dizer “Oi gata, tá afim de ver uma Netflix?”. Cena do episódio 5.

Aliás, qualquer semelhança entre essas obras está longe de ser coincidência: o já citado paleontólogo Darren Naish é o principal consultor científico da série, e John Conway e outros paleontólogos/paleoartistas fortemente ligados ao “movimento” também deram assistência em sua criação.

Confia.

E é exatamente por isso, por conta dessa pegada “especulativa mas baseada no maior número possível de trabalhos científicos”, que Prehistoric Planet está sendo considerada a produção mais fidedigna sobre a vida no Mesozoico (e essa constatação não é apenas minha, mas a de muitos paleontólogos de respeito). Nada de dinossauros se matando como kaijus saídos do quinto dos infernos, mas sim animais bem adaptados ao seu ambiente.

Inclua no balaio da especulação mosassauros utilizando “estações de limpeza” em recifes de corais, Dreadnoughtus disputando direitos reprodutivos com sacos infláveis a la fragata, Quetzalcoatlus fazendo voos intercontinentais, um “Troodon” ateando fogo na floresta para tirar suas presas de seus esconderijos, Triceratops buscando minerais dentro de cavernas, e por aí vai.

Outro momento All Yesterdays: elasmossaurídeos fazendo display com o pescoço fora d’água, presente tanto na série como no livro. Cena do episódio 1.

Nenhum comportamento exibido na série “veio do nada”: com uma equipe de consultores tão grande e experiente, tais suposições foram baseadas ou em evidências fósseis ou por “phylogenetic bracketing“, um maneira de inferir traços em organismos a partir de sua posição num cladograma. Um assunto muito interessante que renderia horas e horas de discussão e, no mínimo, um novo post sobre.

Um exemplo resumido de phylogenetic bracketing: é de se assumir que cuidado parental seja uma condição ancestral em dinossauros, uma vez que tanto as aves (dinossauros modernos) quanto os crocodilos (parentes vivos mais próximos) possuem esse traço. Cena do episódio 4.

Pra cimentar esse jeitão “tão real que parece até de verdade”, temos o estilo documental. Cinegrafistas gravaram as tomadas de paisagens nos quatro cantos do planeta, para então inserirem os dinosauros de CGI nelas (e que CGI, senhoras e senhores… os efeitos são, no mínimo, ABSURDOS). Esse trabalho de câmera (que, inclusive, foi utilizado 23 anos atrás em Caminhando com Dinossauros) resultou numa abordagem muito mais realista, sem os maneirismos permitidos e artificiais de produções 100% animadas (como o caso de Planet Dinosaur).

Dinossauros de CGI em meio a cavalinhas de CGI fugindo de pterossauros de CGI. Ao fundo, nuvens de CGI. Planet Dinosaur pode parecer ser tudo, menos realista.

E, por fim, temos o estilo narrativo. Cada episódio é focado num ecossistema, com vinhetas que mostram como bicho X lida com a vida no ambiente Y: no fim das contas, um episódio se resume a sequências dramáticas sem muita conexão umas com as outras. Essa pegada tornou-se meio que um padrão nas produções recentes, como Planeta Terra II e Nosso Planeta, para citar apenas dois exemplos.

E é exatamente aqui que encontro o calcanhar de Aquiles de Prehistoric Planet (e devo ressaltar que essa é apenas a minha opinião). Ao assistir a série, notei que não existem praticamente nenhuma explicação de como as especulações foram feitas: elas simplesmente estão lá, assumidas como verdade absoluta. Isso é uma falha grave num documentário cuja intenção é transmitir conhecimento. Para entender melhor qualquer comportamento exibido, você ou deve ter conhecimento prévio sobre o assunto ou precisa pesquisar um bocado na internet.

Existe evidência fóssil da língua-pegajosa-armadilha-de-cupim do Mononychus? Não, embora a gente pode supor sua existência por outros detalhes anatômicos. Sei disso por ter visto o documentário? Não. É porque dei um Google depois de assistir. Cena do episódio 2.

O jeitão polido que Prehistoric Planet emula das outras séries de peso da BBC impede um maior teor científico ou mesmo um jargão mais pesado em cada episódio. Isso podia ter sido evitado se houvessem maiores explicações ao longo da narração, ou no mínimo um episódio especial apenas sobre a “ciência da série”. Ou ainda, imitando outros documentários modernos, colocando um “making of” de 10 minutos após a exibição, para deixar claro como foi feita a reconstrução. Infelizmente, o mais próximo disso foram vídeos de 4-5 minutos, lançados como bônus no serviço de streaming e também no canal da Apple TV+, explicando um único caso por episódio. Complicado.

Mesmo com essa ressalva (que considero bem relevante), estou com a maioria: Prehistoric Planet é uma obra excepcional, digna de ser considerada uma das maiores, senão a maior, produção do tipo já feita. O simples fato de trazer essas especulações tão bem baseadas em evidências ao público amplo através de uma produção de altíssimo nível já é louvável e garante um destaque. Na verdade, eu gostei tanto que já estou me preparando para reassisti-la e trabalhar em análises de cada episódio, porque tem pano pra gente discutir aqui!

Porque não é todo dia que somos brindados com Tarbosaurus tirando uma sonequinha <3 Cena do episódio 2.

Link para meu texto anterior: https://www.blogs.unicamp.br/colecionadores/2022/04/20/de-caminhando-com-dinossauros-ate-prehistoric-planet/

Prehistoric Planet está na Apple TV+: https://tv.apple.com/us/show/prehistoric-planet/umc.cmc.4lh4bmztauvkooqz400akxav

O conteúdo bônus da série pode ser visto aqui: https://www.youtube.com/watch?v=FIeCzBCLJww&list=PLx-VtE7KiW8zKg7VkRGBV5gguBncOPe-a

Você pode adquirir o ebook de All Yesterdays na amazon.com.br por R$ 20,00: https://www.amazon.com.br/All-Yesterdays-Speculative-Dinosaurs-Prehistoric-ebook/dp/B00A2VS55O/ref=sr_1_1?keywords=all+yesterdays&qid=1653761942&sprefix=all+yester%2Caps%2C227&sr=8-1&ufe=app_do%3Aamzn1.fos.4bb5663b-6f7d-4772-84fa-7c7f565ec65b

De ‘Caminhando com Dinossauros’ até ‘Prehistoric Planet’

por Juan Vitor Ruiz

Com a nova série da Apple TV+ chegando, que tal voltar no tempo e percorrer os caminhos traçados até a nova produção?

Foi numa noite de outono em 1999 que espectadores britânicos do canal BBC One tiveram uma experiência que, até então, era o mais próximo possível de entrar numa máquina do tempo. Uma paisagem rural tipicamente inglesa se transformava conforme o narrador descrevia uma viagem ao passado, para então, subitamente, presenciarmos uma disputa entre dois tiranossauros em carne e osso. Seis anos antes, Jurassic Park já havia apresentado os dinossauros mais palpáveis e realistas que o mundo já vira, mas dessa vez era diferente. O que estava sendo exibido na TV não era um filme hollywoodiano, uma obra claramente fictícia: era um documentário de natureza como qualquer outro, mas ambientado há centenas de milhões de anos.

O documentário em questão, a minissérie em 6 episódios Caminhando com Dinossauros (Walking with Dinosaurs), foi mais uma joia na coroa da BBC, que possui até hoje a fama de produzir o que há de melhor no gênero de documentários de história natural. Os avanços tecnológicos nos anos 1990 permitiram inserir as criaturas mesozóicas digitais (e alguns closes de bonecões animatrônicos bem trabalhados) em tomadas de paisagens naturais sem soar artificial ou exagerado.

A cabeçona animatrônica de um Utahraptor. Se envelheceu melhor ou pior que os dinos de CGI, é um ponto a ser discutido

Some isso a um roteiro elaborado, uma trilha sonora que remete a filmes de terror clássicos da Hammer, as locações absurdamente sensacionais (incluindo campos de basalto no Chile, florestas pluviais na Tasmânia e montanhas na Nova Zelândia) e uma narração dramática feita pelo shakespeariano Kenneth Branagh, e temos um épico que bateu recordes de audiência, levou 3 Emmys (incluindo o de melhores efeitos visuais) e, mais importante, estabeleceu um novo gênero. Sim, os efeitos visuais podem ter envelhecido mal aos nossos olhos treinados de 2022, mas uma coisa é certa: Caminhando com Dinossauros mostrou que é possível assumir computação gráfica como real, aliar ficção à nãoficção e trazer dinossauros não-avianos e outros seres pré-históricos para a TV de forma completamente crível.

Uma das locações mais impressionantes de toda a série são os recifes e florestas de coníferas da Nova Caledônia vistos no episódio 3, A Cruel Sea

Mais de 20 anos depois, porém, o alto nível de Caminhando com Dinossauros não foi batido por nenhum outro documentário. O criador da série, Tim Haines, seguiu produzindo documentários derivados que, mesmo com certo apreço da crítica e público, acabaram tornando-se reféns da própria genialidade do original, repetindo a mesma fórmula, mas sem aquele gás de inovação. Fora do nicho da BBC, foram produzidas um monte de cópias descaradas (um monte mesmo), algumas até com o seu valor de entretenimento, mas a maioria descartável (do ponto de vista de científico/paleontológico, claro), meras paródias sem muito valor criativo e científico.

O tiranossauro tipicamente estressadinho de Dinosaur Revolution (2011): apenas mais uma tentativa de criar um mundo mesozoico através de CGI (uma das piores, em minha opinião)

Talvez Planet Dinosaur (2011), também da BBC, tenha sido a última reencenação mesozoica de calibre, ainda que bem limitada dentro de suas próprias premissas. Diferentemente de Caminhando com Dinossauros, essa série foi inteiramente reconstruída através de computação gráfica. Sendo uma animação completa, e aliada ao seu estilo de fotografia frenético e trilha sonora com pegada eletrônica, Planet Dinosaurs parece mais um videogame do que um documentário. Nada daquela atmosfera palpável e sombria que havíamos visto 12 anos antes.

Planet Dinosaur possui bastante embasamento científico e uma diversidade notável de dinossauros, mas o climão de game não tornou essa série tão memorável
De 2015 pra cá, porém, tivemos mudanças, e os documentários de natureza estão vivendo uma nova era de ouro, impulsionados pelos avanças tecnológicos, pelos serviços de streaming e, claro, pelas redes sociais. E, de novo, a BBC está no centro de tudo: a famosa e viral sequência a la Mad Max de um bebê iguana sendo perseguido por dezenas de cobras é de um de seus documentários, Planet Earth II (2016). Um ano depois, Blue Planet II (2017) se tornou o programa mais assistido na Grã Bretanha (mais do que o reality The X Factor, acreditem) e foi tão assistido na China que bugou a internet por lá. Narrativas mais elaboradas e uma grande ênfase na fotografia e trilha sonora estão tornando os documentários cada vez mais cinematográficos, atraindo um público crescente que não mede esforços em compartilhar os melhores momentos nas redes. Nessa toada, uma hora ou outra alguém ia trazer um novo documentário sobre dinossauros.
É aqui que pediram um Deinocheirus?

Eis que, nas últimas semanas, a Apple TV+ nos presenteou com o teaser, sneak peek, trailer, sinopse e data de estreia do que está prometendo ser a maior produção do tipo desde Caminhando com Dinossauros (finalmente!)

WTF?! Especulações são parte importante de qualquer reconstrução paleoartística, desde que muito bem embasadas no que já sabemos. O time de paleontólogos consultores, incluindo o tetrapodólogo Darren Naish (ele mesmo historicamente bem crítico e criterioso), garante que nada muito viajado apareça no produto final. Inclusive, muito do livro All Yesterdays parece estar na série, incluindo o display de bracinhos dos abelissaurídeos.

Anunciada há cerca de 3 anos, Prehistoric Planet traz um time que vai fazer qualquer dinonerd se arrepiar: David Attenborough na narração (segundo uma fonte, ele foi convidado para narrar Caminhando com Dinossauros mas negou, alegando que seria um falso-documentário, hmm…), Hans Zimmer assinando a trilha sonora, Mike Gunton (Life, Planet Earth II, The Green Planet) como co-produtor executivo e, o que acho mais interessante, o absurdamente prolífico Jon Favreau também assumindo a produção executiva. Não é coincidência, então, que os efeitos visuais (lindos, pelo que já foi exibido) foram realizados pela Moving Picture Company, responsável pelo visual dos recentes Mogli e O Rei Leão, ambos dirigidos por Favreau.

O homem que quis fazer um pouco de tudo.

Além disso, nada foi muito divulgado a respeito dos episódios em si, mas tenho alguns palpites. A série, que se passa durante o Cretáceo, segue a fórmula comum dessas grandes produções com o título “Alguma Coisa Planet”, com (provavelmente) cada um dos cinco episódios focando num ecossistema (litorais, desertos, água doce, florestas e “mundos congelados” são indicados no site da Apple TV+ e, agora, no novo trailer). Será uma oportunidade interessante de ver os bichões interagindo não apenas entre si, mas com o meio, trazendo uma perspectiva mais ecológica (e que não é muito retratada nesses documentários).

Um Qianzhousaurus (?) chinês é mais um indicativo de que, contrário à maioria das produções do tipo, a série vai viajar ao redor do mundo ao invés de se centrar unicamente na América do Norte.

Mas, talvez o mais importante, é que Prehistoric Planet está sendo lançado num momento perfeito para atualizar nossa visão dos dinossauros. Desde Caminhando com Dinossauros, na virada do milênio, foram tantas descobertas e reinterpretações publicadas em artigos científicos, debatidas por pesquisadores e trazidas à vida por paleoartistas (e me refiro à paleofauna em geral) que soa meio estranho que dinossauros e afins permaneçam sendo representados pela maioria dos veículos de mídia mais de acordo com nossa visão noventista do que com o que sabemos hoje.

Um documentário com o escopo e alcance de Prehistoric Planet poderá realmente surtir mudanças em como esses animais são representados mundo afora a partir de então. Digo, tivemos que esperar até 2022 para vermos um tiranossauro emplumado numa grande produção!

Como uma visão pessoal, não espero que essa nova série supere Caminhando…, um divisor de águas que possui um enorme valor sentimental para mim e, suspeito, milhares de outras pessoas mundo afora. Mas Prehistoric Planet chegou, e estamos diante da oportunidade de repaginar e atualizar a tão clássica Caminhando com Dinossauros, com grande potencial de que, no futuro, Prehistoric Planet seja vista com o mesmo ar de admiração e soberania.

Aqui está um react recente que o Tito publicou no canal dos Colecionadores de Ossos:

Mais indicações de leitura e vídeo:

A separação dos continentes em uma visão histórica

Texto por Mário G. F. Esperança Júnior

As paisagens que reconhecemos à nossa volta possuem uma história bastante dinâmica. Por exemplo: rios mudam de curso, lagos secam, mares retraem e avançam sobre os continentes… Em um intervalo de tempo mais amplo, montanhas são formadas e erodidas, oceanos se fecham, novas espécies de organismos surgem enquanto outras são extintas. Evidências geológicas mostram que esses processos são recorrentes e se sucederam por todo o planeta desde seus primórdios.

No sul do Brasil, afloram rochas do período Permiano, intervalo que compreende de 298 a 252 milhões de anos atrás. Essas rochas são ricas em fósseis da extinta Flora Glossopteris, plantas as quais também são encontradas em depósitos sedimentares da África, Antártida, Austrália e Índia. Atualmente, estas regiões estão separadas por extensos oceanos, que são barreiras intransponíveis para grande parte dos organismos terrestres, incluindo as plantas. Sendo assim, pode-se deduzir que tais áreas estiveram unidas durante o Permiano, e mais tarde se afastaram até chegarem em suas localizações atuais. Dessa forma, as floras e faunas que antigamente colonizaram regiões contíguas, passaram a ser encontradas na forma de fósseis em lugares distantes.

A evolução desse pensamento científico levou muitos anos até chegar aos moldes que hoje conhecemos. Mas para entendermos a sucessão dos fatos que nos levam a resposta acerca de tais semelhanças fossilíferas, precisamos voltar alguns séculos atrás…

As primeiras ideias

Com a chegada dos europeus ao continente americano no século XV e com a confecção dos primeiros mapas em escala global, notou-se que a costa oeste da África e leste da América do Sul possuem contornos semelhantes, assim sugerindo que tais continentes estivessem em algum momento unidos. Àquela época, contudo, perduravam as ideias bíblicas de que a Terra seria jovem, e o conhecimento científico limitava-se à observação direta do meio devido à ausência de tecnologia capaz de comprovar tais fenômenos. Somente no século XVII é que surgiram as primeiras evidências acerca de uma idade para a Terra. Ao observar intrusões de granitos, bem como o ciclo de erosão e deposição de sedimentos, o naturalista escocês James Hutton deduziu que havia muito tempo envolvido nesses processos, concluindo que a Terra seria muito antiga, “sem vestígio de um começo, nem perspectiva de um fim” (Hutton, 1788). Décadas mais tarde, o matemático irlandês Lord Kelvin calculou a idade do planeta, que estaria entre 20 e 400 milhões de anos, dado o presente equilíbrio térmico e fluxo de calor da superfície. Esse cálculo foi posteriormente refinado, mas somente no final do século XIX, com a descoberta da radioatividade por Henri Becquerel e o subsequente desenvolvimento das técnicas de datação radiométricas, é que se chegou à atual idade de 4,56 bilhões de anos. Essa escala de tempo é grande o suficiente para explicar processos naturais muito lentos para a humanidade, porém recorrentes na história da Terra.

A comprovação da existência de um tempo profundo talvez tenha sido um dos principais fatores para o estabelecimento de uma teoria que explicasse o encaixe dos continentes percebido séculos antes. Tais ideias foram fomentadas no início do século XX com o trabalho do geólogo austríaco Eduard Suess (Fig. 1), ao notar a presença das folhas fósseis do tipo Glossopteris na América do Sul, África e Índia. A coocorrência das mesmas plantas em áreas distantes e separadas por oceanos é um indicativo de que essas massas de terra já estiveram conectadas, por fim denominando essa antiga região como Terra de Gondwana (Suess, 1885). A fim de explicar tal observação, Suess deduziu que o resfriamento do planeta causaria o adensamento de certas áreas que consequentemente afundariam formando os oceanos. Entre essas regiões, haveria pontes de terra permitindo o intercâmbio da fauna e flora, sendo que estas conexões mais tarde submergiriam resultando no padrão geográfico atual. Essa teoria, no entanto, não foi bem aceita por não existirem evidências físicas de tais fenômenos. Nos anos subsequentes, propuseram-se, ainda, que uma massa de terra primária poderia ter sido partida em continentes menores devido à expansão volumétrica do planeta (Mantovani, 1889), e também que a movimentação das mesmas seria fruto da força das marés – hipóteses que foram rejeitadas por físicos e matemáticos.

Fig. 1. Autores de importantes trabalhos na construção da geologia moderna. Da esquerda para a direita: James Hutton, Eduard Suess, Alfred Wegener, Arthur Holmes e John Tuzo Wilson. Modificado de commons.wikimedia.org.

Foi assim que, em 1915, o meteorologista alemão Alfred Wegener propôs que as massas continentais outrora estivessem amalgamadas no supercontinente Pangeia (Fig. 2), dadas semelhanças não somente entre os fósseis, mas também com as rochas e estruturas geológicas encontradas nos dois lados do Atlântico (Wood, 1980). Por exemplo, a presença de fósseis de Mesossauros, antigos répteis marinhos encontrados na América do Sul e África, também apontavam para tal proximidade. Além disso, a ampla presença de rochas glaciais, denominadas de tilitos, sugeria uma união de diversas áreas próximo ao polo sul. Com essas e outras evidências, propôs-se a teoria do afastamento, ou deriva dos continentes, fenômeno que seria decorrente da rotação da Terra (Wegener, 1915). Contudo, a explicação de Wegener sobre o motor responsável pela deriva não foi bem aceita pela comunidade científica. O verdadeiro mecanismo responsável pela afastamento dos continentes só foi estabelecido anos mais tarde pelo geólogo inglês Arthur Holmes. Conforme a ideia apresentada, existiriam fluxos convectivos verticais abaixo dos continentes, constantemente alimentados pelo calor gerado por elementos radioativos do interior da Terra. Tais fluxos arrastariam as massas continentais continuadamente, ocasionando na formação de assoalho oceânico nas regiões em que as correntes quentes sobem, e na criação de montanhas na borda em que o fluxo frio desce (Holmes, 1931). Entretanto, as evidências do processo descrito por Holmes surgiram somente anos depois com a ampliação do conhecimento sobre o fundo oceânico.

Fig. 2. Configuração atual dos continentes (à esquerda) e uma definição atualística da Pangeia durante o período Permiano, com os contornos dos continentes modernos (à direita).
 

Nesse sentido, o conhecimento a respeito da Dorsal Mesoatlântica exerceu um papel fundamental no entendimento da deriva continental. Esta cadeia de montanhas submarina foi inicialmente identificada em 1872, em uma expedição liderada pelo naturalista escocês Charles W. Thomson com o objetivo de investigar a área por onde passariam cabos submarinos de telégrafo, ligando a Europa à América do Norte. Mas foi somente após a Segunda Guerra Mundial que realmente se intensificaram as pesquisas sobre o assoalho marinho, o que incluiu os primeiros mapeamentos do fundo oceânico realizados por sonar (Heezen et al., 1959). Com isso, constatou-se que a Dorsal Mesoatlântica, em quase sua totalidade, inclui um vale em rifte – regiões de vulcanismo intenso em que terremotos são frequentes. Além disso, datações do assoalho marinho mostraram que o mesmo é composto por rochas vulcânicas jovens. Dessa maneira, a formação da litosfera oceânica é o resultado da atividade vulcânica recente desses riftes, que pouco a pouco afastam porções mais antigas, expandindo o oceano (Heezen, 1960; Dietz, 1961). Assim, ao menos parte das ideias de Holmes já possuía alguma comprovação no início da década de 60.

O nascimento de uma teoria unificadora

No entanto, existia uma interessante questão em aberto: já que o assoalho dos oceanos é criado ao longo das dorsais, haveria algum mecanismo capaz de destruí-lo? Com o avanço do mapeamento do fundo marinho durante a década de 60, o geólogo canadense John Tuzo Wilson constatou que certas falhas geológicas, dorsais e fossas submarinas se interconectam formando grandes placas. Assim, a litosfera seria dividida em diversas placas rígidas que se movimentam e submergem sob os arcos vulcânicos ao envelhecerem e resfriarem. À medida que o oceano é destruído, os continentes circundantes se aproximam e eventualmente colidem formando cadeias de montanhas, a exemplo dos Himalaias (Wilson, 1963; 1965; 1966). Dessa forma, a abertura e fechamento dos oceanos seria um encadeamento cíclico, e portanto, repetitivo ao longo da história da Terra (Fig. 3). Mais tarde, esse processo foi denominado, em sua homenagem, de Ciclo de Wilson – uma importante contribuição ao que hoje conhecemos por Teoria da Tectônica de Placas (Fig. 4).

Fig. 3. O Ciclo de Wilson. 1 – Desenvolvimento de rifte sobre um continente estável; 2 – Com a continuidade do processo, surge um oceano com uma dorsal entre duas massas de terra; 3 – O oceano se expande afastando os continentes; 4 – A litosfera oceânica esfria e adensa, afundando na astenosfera e resultando numa fossa adjacente a um arco vulcânico; 5 – O oceano é consumido, reaproximando os continentes; 6 – Os continentes colidem formando uma única massa de terra com uma cadeia montanhosa; 7 – As montanhas são erodidas.

Atualmente, o avanço tecnológico permite inferir temperaturas para o interior da Terra através de tomografia sísmica. Com isso, comprovou-se a existência de regiões quentes próximas às dorsais, enquanto que as temperaturas são mais baixas onde antigas placas oceânicas afundaram. Essa ascensão de material quente e descida de rochas frias demonstra o processo de convecção proposto por Holmes no começo do século passado. O desenvolvimento da tecnologia permitiu, também, mensurar com grande precisão a taxa de afastamento dos continentes (e portanto, a taxa de expansão do assoalho oceânico). No caso do Atlântico, o afastamento varia de 1,8 centímetro por ano, próximo à Islândia; até 3,5 centímetros ao ano, entre o Brasil e o sul da África (Grotzinger e Jordan, 2013), velocidades realmente lentas para a percepção da humanidade. Entretanto, distâncias consideráveis podem ser alcançadas, levando-se em consideração o amplo intervalo de tempo que compreende a fascinante história da Terra.

Fig. 4. As placas tectônicas e alguns exemplos dos estágios do Ciclo de Wilson (conforme fig. 3). 1 – Grande Vale do Rifte (África); 2 – Mar do Japão; 3 – Oceano Atlântico (fotografia da porção emersa da Dorsal Mesoatlântica, Islândia); 4 – Andes (Vulcão El Cotopaxi, Equador); 5 – Mar Mediterrâneo; 6 – Himalaias (Ásia); 7 – Eurásia central. Modificado de commons.wikimedia.org (autores: Ævar Arnfjörð Bjarmason, peterhartree, David Ceballos, Shivam Maini).

Referências

Dietz, R.S. 1961. Continent and ocean-basin evolution by spreading of the sea floor. Nature 190, 854-857.

Grotzinger J., Jordan T.H. 2013. Para entender a Terra. 6. ed. Porto Alegre: Bookman.

Heezen, B.C., Tharp, M., Ewing, M. 1959. The floors of the ocean, I. The North Atlantic. Geological Society of America, Special Paper 65.

Heezen, B.C. 1960. The rift in the ocean floor. Scientific American 203, 98-110.

Holmes, A. 1931. XVIII. Radioactivity and Earth Movements. Transactions of the Geological Society of Glasgow 18(3), 559–606.

Hutton, J. 1788. X. Theory of the Earth; or an Investigation of the Laws observable in the Composition, Dissolution, and Restoration of Land upon the Globe. Earth and Environmental Science Transactions of The Royal Society of Edinburgh 1(2), 209 – 304.

Mantovani, R. 1889. Les fractures de l’écorce terrestre et la théorie de Laplace. Bulletin de la Société des sciences et arts de l’Ile de la Réunion, 41–53.

Suess, E. Das Antlitz der Erde. 1885. Leipzig: Freytag.

Wegener, A. 1915. Die Entstehung der Kontinente und Ozeane. Braunschweig: Vieweg.

Wilson, J.T. 1963. A possible origin of the Hawaiian islands. Canadian Journal of Physics 41, 863-870.

Wilson, J.T. 1965. A new class of faults and their bearing on continental drift. Nature 207, 343-347.

Wilson, J.T. 1966. Did the Atlantic close and then re-open? Nature 211, 676-681.

Wood, R.M. 1980. Coming Apart at the Seams. New Scientist 85, 252-254.