Krakatoa em atividade: é o fim do mundo?

Texto de Letícia Freitas Guimarães

A erupção do Anak Krakatau na noite de 10 de abril causou alvoroço nas redes sociais. Notícias falsas, alarmistas, vídeos de erupções passadas e até apofenia astrológica inundaram as redes. Mas por que esta erupção não deveria nos espantar?

O Anak Krakatoa (Anak Krakatau, em Indonésio) localiza-se no estreito de Sunda, entre as Ilhas de Sumatra e Java, uma região com centenas de vulcões ativos relacionados à interação entre as placas tectônicas Australiana e de Sunda (Figura 1). Este sistema faz parte do chamado Círculo de Fogo do Pacífico, uma região geologicamente muito ativa, que se estende por cerca de 40.000 km e é delimitada por zonas de convergência de placas tectônicas (Figura 2). Cerca de 75% dos vulcões ativos e 90% dos terremotos do planeta estão localizados nesta área. Não é de se espantar, então, que o Anak Krakatau seja um dos vulcões mais ativos do mundo.

Figura 1 – Imagem do Google Earth mostrando a localização do vulcão Anak Krakatau (destacado no círculo rosado) e alguns outros vulcões do arco magmático de Sunda, relacionado à subducção da Placa Australiana sob a Placa de Sunda (linha dentada amarela). A velocidade do deslocamento da Placa Australiana é informada pelas setas brancas.
Figura 2 – Mapa esquemático com as principais feições geológicas relacionadas ao Círculo de Fogo do Pacífico.

As erupções mais antigas registradas em observações históricas do sistema vulcânico de Krakatau datam do ano de 250 e, desde então, este sistema apresenta-se bastante ativo, alternando fases efusivas, isto é, com derramamento de lava, e fases explosivas, com erupções freatomagmáticas, fluxos piroclásticos e queda de cinzas (veja o Glossário no final do texto para ficar por dentro dos termos da vulcanologia).

A maior erupção deste sistema ocorreu em 1883, com um índice de explosividade vulcânica (VEI) igual a 6 (de uma escala vai até 8). Para se ter uma idéia da grandiosidade deste evento de 1883 em comparação a outros importantes eventos eruptivos do mundo veja a Figura 4b. Durante o evento de 1883, o estratovulcão Krakatau chegou a ter três condutos ativos, ou seja, três aberturas na superfície durante sua fase mais violenta (chamada de fase paroxysmal) e, após três meses deste clímax, o edifício vulcânico colapsou. Este colapso gerou um enorme fluxo piroclástico que, ao atingir o oceano, gerou tsunamis nas costas de Sumatra e Java, matando mais de 36 mil pessoas. Alguns anos depois, dentro da caldeira formada pelo colapso do Krakatau, surgiu o cone vulcânico batizado de Anak Krakatau (filho de Krakatau, em indonésio), ativo desde 1927.

Figura 3 – Sequência de fotos de atividades históricas do vulcão Anak Krakatau. A) Erupção freatomagmática de 1927; B) Erupção freatomagmática de 1930; C) Atividade eruptiva de 1979,  incluiu fase explosiva (coluna eruptiva observada na foto) e fase efusiva (derrames de lava); D) Atividade fumarólica em 1979. Os derrames de lava de coloração negra no canto direito inferior na foto são de 1975. As fotos A, B e D são do Serviço Vulcanológico da Indonésia (VSI) e a foto C é de Katia e Maurice Krafft.
Figura 4 – A) Maior erupção já ocorrida no Krakatau, em 1883. Foto cortesia da família de R. Breon; B) Diagrama comparativo entre os volumes de material vulcânico ejetado pelos grandes eventos eruptivos da história da Terra. A erupção de 1883 do Krakatau corresponde ao cubo amarelo.

As imagens que circularam na internet no dia 11 de abril correspondem, em sua maioria, à erupção de dezembro de 2018. Este evento correspondeu a uma erupção do tipo Vulcaniana de VEI 3, que gerou uma coluna eruptiva de 15 km de altura e um novo colapso do edifício vulcânico que, de novo, gerou tsunamis nas ilhas de Sumatra e Java, vitimizando mais de 400 pessoas. O sistema vulcânico mantém-se ativo desde então, com intermitente atividade sísmica (terremotos), fumarólica e erupções explosivas. A figura 5 apresenta uma sequência de imagens das atividades registradas no Anak Krakatau desde o final de 2018 até o começo de 2020. Nelas é possível ver a variação no relevo causada pelo colapso do edifício vulcânico em decorrência da erupção de 22 de dezembro de 2018.

Dentre as diversas erupções do Anak Krakatau em 2020, a erupção de 10 de abril (figura 6) foi apenas mais uma dentro deste período de atividades. Ela correspondeu à uma erupção do tipo Stromboliana (tipo de erupção de explosividade moderada), com coluna eruptiva que atingiu cerca de 500 m de altura. Segundo informações de Serviço Vulcanológico da Indonésia:

“…os gases emitidos compõem-se majoritariamente de vapor d’água, os terremotos e deformação no solo são insignificantes, indicando que ainda existe suprimento de material magmático em reservatórios rasos e não há alteração (aumento) de ameaças“.

A Instituição manteve o alerta de risco no nível II de uma escala que varia de I a IV, sendo IV o nível de maior risco. O acesso em um raio de 2 km do vulcão está proibido por enquanto.

Figura 5 – A) Sequência de fotos mostrando a atividade vulcânica e a variação do relevo do Krakatau entre Dezembro de 2018 e Janeiro de 2019. B) Vista do Krakatau em Outubro de 2018. O sombreado vermelho corresponde à forma do vulcão em Novembro de 2019, após o colapso do edifício vulcânico em decorrência da erupção de 22 de dezembro de 2018. C) Imagem do GFZ Potsdam mostrando o formato do Krakatau após a erupção de 22 de dezembro de 2018. A linha tracejada preta mostra a antiga forma do edifício vulcânico enquanto a linha tracejada branca indica o plano de deslizamento do edifício durante o colapso.
Figura 6 – Imagens do Serviço Vulcanológico da Indonésia (VSI) da erupção da noite de 10 de abril de 2020.

Outros vulcões também encontram-se em atividade na região, como o Karangetang, Merapi, Kerinci, Sangeang Api, Semeru, Ibu e o Dukono. Alguns destes vulcões (como o Merapi, o Kerinci e o Sangeang Api) estão relacionados ao arco vulcânico de Sunda, o mesmo arco vulcânico onde se localiza o Anak Krakatau (representado na figura 1). Deste modo, a erupção destes vulcões está associada, uma vez que a geração do magma que os alimenta deve-se ao mesmo processo geológico ocorrendo no mesmo contexto. O magma gerado em zonas vulcânicas é armazenado em grandes reservatórios chamados de câmaras magmáticas, que podem ter tamanho e forma bastante variados. Estes grandes reservatórios são significativamente mais volumosos do que sua expressão em superfície (os vulcões). Em zonas de regime tectônico convergente (isto é, onde as placas tectônicas se chocam) com formação de arcos vulcânicos, um mesmo reservatório/uma mesma câmara magmática pode alimentar diferentes vulcões ou, ainda, diferentes reservatórios podem estar interconectados. Processos de recarga do reservatório magmático e abalos sísmicos são alguns dos fatores que atuam como gatilhos de erupções. Sendo tais processos recorrentes em regiões tectonicamente ativas, é comum que diversos sistemas vulcânicos estejam ativos simultaneamente. O vulcão Karangetang localiza-se no arco Sangihe, enquanto que os vulcões Ibu e Dukono localizam-se no arco Halmahera. Embora não estejam geneticamente vinculados aos vulcões do arco de Sunda, todos estes sistemas são gerados pelo mesmo processo geológico, apenas ocorrendo em diferentes localidades. Que tal navegar pelo Google Earth e descobrir os vários sistemas vulcânicos da região? Basta clicar AQUI.

GLOSSÁRIO GEOLÓGICO E VULCANOLÓGICO – Entenda os termos utilizados pelos vulcanólogos:

Arco vulcânico: cadeia de vulcões que pode se estender por centenas a milhares de quilômetros cuja formação está relacionada a uma zona de subducção. O arco se desenvolve acima desta zona e pode ser do tipo oceânico (onde ocorre interação entre duas placas oceânicas; ex: Ilhas Aleutas, Antilhas) ou continental (interação em margem continental onde uma placa oceânica, por ser mais densa, é empurrada por debaixo de uma placa continental menos densa; ex: Andes)

Cone vulcânico: monte cônico íngreme formado pela acumulação de material vulcânico ejetado em (sucessivas) erupções.

Depósito de queda de cinzas: depósitos formados pela queda de material vulcânico finamente particulado (cinzas vulcânicos). As cinzas são ejetadas na atmosfera e, por serem pouco densas, sobrem formando uma coluna eruptiva que se dispersa.

Erupção freatomagmática: erupção explosiva que ocorre devido a interação do magma com água.

Erupção Stromboliana: tipo eruptivo de explosividade moderada onde gases e “coágulos” de lava incandescente de baixa viscosidade são ejetados. Recebe este nome por ser a erupção típica do vulcão Stromboli, na Itália.

Erupção Vulcaniana: tipo eruptivo de explosividade moderada a alta onde gases e cinzas vulcânicas são ejetados e formam colunas eruptivas que se expandem rapidamente. Recebe este nome por ter sido primeiramente descrita na ilha de Vulcano, na Itália.

Estratovulcão: Cone vulcânico de relevo bastante íngreme formado pela alternância de, majoritariamente, depósitos piroclásticos (provenientes de erupções explosivas) e, subordinadamente, derrames de lava viscosa. A composição química destes depósitos pode variar, sendo as composições mais silícicas (mais viscosas) mais comuns. Comumente, o formato cônico torna-se mais íngreme em direção ao cume, onde encontra-se uma cratera. Correspondem ao tipo mais comum de vulcão (cerca de 60% dos vulcões terrestres) e ocorrem principalmente nos limites convergentes de placas.

Fase paroxysmal: estágio mais violento (clímax) do ciclo eruptivo, no qual toda a cavidade da cratera encontra-se aberta, proferindo uma erupção particularmente violenta.

Fluxo Piroclástico: produto mais perigoso e destrutivo do vulcanismo explosivo. Formam avalanches de gases e material vulcânico de tamanho variado (desde muito fino – cinzas – até blocos de rocha em escala métrica) que resultam em um fluxo de baixa viscosidade e altas temperaturas (podendo variar de 100°C a 700°C) que se move muito rápido

Índice de Explosividade Vulcânica (VEI): escala numérica (logarítmica) que mede a explosividade de erupções vulcânicas. Varia de 0 (eventos não explosivos, menos de 10000 m3 de material vulcânico ejetado) a 8 (eventos muito grandes ou mega-colossais, com volume de material vulcânico ejetado superior a 1000 km3 e altura da coluna eruptiva acima de 25 km.

Zona de subducção: região de tectônica convergente onde uma placa (mais densa) é empurrada por debaixo de outra.

Referências

https://volcano.si.edu/volcano.cfm?vn=262000

https://vsi.esdm.go.id/index.php/gunungapi/aktivitas-gunungapi/3038-press-release-aktivitas-gunungapi-anak-krakatau-11-april-2020

https://volcano.si.edu/gvp_currenteruptions.cfm


Letícia Freitas Guimarães é geóloga, PhD em Petrologia pela Universidade de São Paulo (USP). Desenvolveu sua pesquisa nas rochas vulcânicas silícicas da Província Magmática do Paraná, trabalhando com análises geoquímicas e texturais quantitativas. Atualmente colabora na elaboração de um ranking de risco vulcânico para os vulcões da América Latina. É co-fundadora e diretora de relações acadêmicas na Associação Brasileira de Mulheres nas Geociências (ABMGeo) e colabora na página de divulgação científica dos pós-graduandos do IGc-USP (Instagram @divulgageologia).

Gostaríamos de agradecer sinceramente a Letícia por ter disponibilizado o seu tempo e aceitado o convite de escrever para o nosso blog. Como vocês puderam ver, não é “o fim do mundo”… Pelo menos por enquanto ;).

Melanina é encontrada em fóssil de pterossauro brasileiro

Molécula biológica responsável pela pigmentação de seres vivos foi encontrada preservada em um fóssil brasileiro de cerca de 110 milhões de anos, da região do Ceará! O fóssil em questão é de um pterossauro, um tipo de réptil voador da “Era dos Dinossauros”.

Reconstituição em vida de Tupandactylus, arte de Márcio Castro.
Reconstituição em vida de Tupandactylus, arte de Márcio Castro.

O estudo foi publicado hoje em uma das revistas científicas do prestigioso grupo Nature, a Scientific Reports, e inclui pesquisadores diversos países, liderados pelos paleontólogos brasileiros Felipe Pinheiro, da Universidade Federal do Pampa (Unipampa, Rio Grande do Sul) e o doutorando Gustavo Prado, da Universidade de São Paulo (USP, São Paulo).

“Isso ainda é muito distante Jurassic Park”, lembram os pesquisadores, mas o fato de encontrar uma molécula biológica tão bem preservada já é uma grande descoberta, que nos possibilita entender melhor como eram esses organismos do passado.

O fóssil de réptil voador analisado pertence a um Tupandactylus, um pterossauro de tamanho médio, com cerca de 3 metros de envergadura e que tinha uma crista bem alta na cabeça. Ele viveu no sul do Ceará, na região do Araripe, quando toda essa área era coberta por uma extensa laguna, durante a primeira metade do Período Cretáceo, há cerca de 110 milhões de anos.

O estudo também contou com a participação de pesquisadores do Japão e dos Estados Unidos. Trata-se da mais completa caracterização química de uma biomolécula fossilizada em um réptil.

“Embora sempre soubéssemos que os fósseis encontrados na região da Chapada do Araripe eram especiais em termos de preservação, foi uma surpresa quando as análises químicas mostraram que a melanina do bicho ainda estava lá. Parece que o pterossauro morreu ontem”, relata Felipe Pinheiro, paleontólogo da Unipampa.

Vários fósseis de Tupandactylus já foram descobertos na Chapada do Araripe. Porém, este preservou muito bem a crista do animal, o que levou os pesquisadores a quererem analisá-la mais de perto. A crista enorme, em forma de vela, provavelmente era utilizada, entre outras coisas, para atrair parceiros. Foi dela que os cientistas extraíram o pigmento.

Imagem do artigo monstrando os pontos amostrados no fóssil.

“A melanina é uma das moléculas mais resistentes aos processos de fossilização. Enquanto os outros compostos são degradados com o passar do tempo, esse pigmento resiste de forma mais ou menos intacta”, explica Gustavo Prado, que é especialista em pigmentos fossilizados.

Imagem do artigo, mostrando os corpúsculos esféricos presentes no fóssil, que conteriam a melanina.
Imagem do artigo, mostrando os corpúsculos esféricos presentes no fóssil, que conteriam a melanina.

Agora, a pergunta que não quer calar: Com essa molécula preservada, foi possível identificar a cor do animal?

Os cientistas que assinam o estudo são bastante céticos: “É complicado”, diz Pinheiro. “São muitos fatores envolvidos na coloração de um animal, e a melanina é só um deles”. Estudos anteriores reconstruíram a cor de aves e dinossauros com base na forma dos melanossomos, organelas responsáveis por armazenar melanina. A ideia é que o formato dos melanossomos poderia indicar a coloração. A caracterização química da melanina do Tupandactylus mostrou que não é bem assim. “Não encontramos correlação entre o formato dos melanossomos e o tipo de melanina identificada no pterossauro”, diz Gustavo Prado.

O novo estudo, portanto, desafia as inferências de coloração realizadas para organismos fósseis até então. Será necessário rever essa possibilidade e, à luz das novas descobertas, aperfeiçoá-la.

O grupo de pesquisadores continua investigando a preservação excepcional de fósseis da Chapada do Araripe, e afirmam que várias novidades ainda estão por vir. “Aos poucos ficamos cada vez mais próximos desses animais incríveis”, diz Pinheiro.

***

O trabalho completo está disponível em www.nature.com/articles/s41598-019-52318-y

O estudo foi financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

Vespersaurus: Um novo dino brasileiro

Estudo publicado nesta quarta-feira (26/06/19) na revista Scientific Reports, do grupo Nature, apresenta uma nova espécie de dinossauro brasileiro, que viveu no Período Cretáceo, há cerca de 90 milhões de anos.

Figura-4
Reconstrução em vida de Vespersaurus paranensis. Crédito da imagem: Rodolfo Nogueira.

O fóssil foi encontrado no município de Cruzeiro do Oeste, PR, e foi estudado por paleontólogos das universidades de São Paulo (USP) e Estadual de Maringá (UEM), além de pesquisadores do Museo Argentino de Ciências Naturales e do Museu de Paleontologia de Cruzeiro do Oeste. A nova espécie foi nomeada Vespersaurus paranaensis.

Vesper (do latim) significa oeste/entardecer, em referência ao nome da cidade onde foi descoberto o fóssil, e paranaensis faz uma homenagem ao Estado do Paraná, já que este é o primeiro dinossauro paranaense descrito.

Os fósseis da nova espécie de dinossauro pertencem a um grupo de dinossauros carnívoros chamados de Noasaurinae. Os Noasaurinae são abelissauros diferentões, de pequeno porte, encontrados desde a Argentina até Madagascar (com possíveis registros na Índia). Estes terópodes viveram em uma época em que os continentes do sul ainda estavam unidos, formando o Gondwana, e transitavam de um lado para o outro, cruzando um imenso deserto que existia entre o Brasil e a África.
Restos de Noasaurinae já eram conhecidos para o Brasil (veja Lindoso et al., 2012 e Brum et al., 2016), mas este é o material mais completo encontrado até o momento. É também o material mais completo de dinossauro terópode descrito para o Brasil até agora, com quase metade do esqueleto encontrado.

Figura-3
Representação tridimensional do esqueleto de Vespersaurus paranensis indicando (em cor sólida) os ossos que foram encontrados. Crédito da imagem: Rodolfo Nogueira.

O novo dinossauro possuía vértebras pneumáticas, que conferiam leveza ao seu esqueleto, como nas aves viventes, e um braço muito reduzido (com menos da metade do comprimento da perna). Porém, a sua característica anatômica mais peculiar eram os pés. Seu peso era praticamente todo suportado por um único dedo central, sendo o animal funcionalmente monodáctilo, como os cavalos. Os dedos que flanqueavam o dígito central, por sua vez, possuíam grandes garras em forma de lâmina, que deveriam servir para cortar e raspar carne.

Figura-1
Pata direita de Vespersaurus paranensis como preservada na rocha, note a garra do quarto dedo em forma de lâmina. Foto de Paulo Manzig.

As rochas do noroeste paranaense, nas quais Vespersaurus foi preservado formaram-se em ambientes desérticos, o que sugere que o animal deveria ser adaptado a esse tipo de clima. Na década de 70, em rochas relacionadas, o paleontólogo Giuseppe Leonardi descobriu uma ampla assembleia de pegadas fósseis. Algumas, feitas por um pequeno dinossauro bípede, carnívoro, aparentemente monodáctilo. À época não se conhecia nenhum animal com tais características ao qual elas pudessem ser atribuídas. Muito tempo depois, o produtor parece ter sido encontrado.

Figura-5
Reconstrução em vida do pé de Vespersaurus paranensis. Crédito da imagem: Rodolfo Nogueira.

Vespersaurus paranaensis não é primeira espécie cretácica a ser encontrada no noroeste do Paraná. No mesmo sítio fossilífero em Cruzeiro do Oeste foram descobertos também o lagarto Gueragama sulamericana e inúmeros indivíduos do pterossauro Caiuajara dobruskii. A descoberta de mais uma espécie fóssil em Cruzeiro do Oeste deve impulsionar as pesquisas paleontológicas na região.

Veja o artigo:

Langer et al., 2019. A new desert-dwelling dinosaur (Theropoda, Noasaurinae) from the Cretaceous of south Brazil. Scientific Reports https://www.nature.com/articles/s41598-019-45306-9

Demais referências:

Brum, A.S., Machado, E.B., de Almeida Campos, D. and Kellner, A.W.A., 2016. Morphology and internal structure of two new abelisaurid remains (Theropoda, Dinosauria) from the Adamantina Formation (Turonian–Maastrichtian), Bauru Group, Paraná Basin, Brazil. Cretaceous Research60, pp.287-296.

Lindoso, R.M., Medeiros, M.A., de Souza Carvalho, I. and da Silva Marinho, T., 2012. Masiakasaurus-like theropod teeth from the Alcântara Formation, São Luís Basin (Cenomanian), northeastern Brazil. Cretaceous Research36, pp.119-124.

Paleontólogos encontram fósseis de seis filhotes de antigos répteis no Rio Grande do Sul

Por Felipe Pinheiro

Reconstituição artística de um grupo de dinodontossauros. Arte de Márcio Castro.
 

Pertencentes à grande linhagem que daria, posteriormente, origem aos mamíferos, os dicinodontes eram os principais herbívoros durante boa parte do Período Triássico, há cerca de 240 milhões de anos. No Brasil, o dicinodonte mais comum é encontrado em algumas localidades do Rio Grande do Sul e chama-se Dinodontosaurus. Ele era um animal razoavelmente grande, podendo chegar a 500 kg e medindo até 2,5 metros de comprimento. Assim como o que acontece com vários grandes herbívoros atuais, sempre se especulou que o dinodontossauro andava em grandes bandos, em um comportamento que protegeria os animais dos ferozes predadores da época, como os répteis quadrúpedes Prestosuchus e Decuriasuchus, parentes dos atuais crocodilos e jacarés.

Recentemente, pesquisadores da Universidade Federal do Pampa fizeram uma descoberta surpreendente na cidade de Dona Francisca, Rio Grande do Sul: restos de pelo menos seis filhotes de dinodontossauro foram encontrados aglomerados uns sobre os outros, em uma associação bastante rara para os paleontólogos.

“Estava tudo uma confusão. Crânios e pedaços de mandíbulas misturados a ossos de braços, vértebras e costelas. Em uma análise cuidadosa, pudemos comprovar a existência de seis animais, mas é bastante provável que existisse muito mais do que isso”, relata Gianfrancis Ugalde, autor principal do trabalho científico publicado na revista internacional Historical Biology. Além de pesquisadores da Unipampa, o estudo contou com a participação de paleontólogos da Universidade Federal de Santa Maria e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Embora tivessem grandes presas que os defendiam de predadores, os dinodontossauros eram bastante vulneráveis ao ataque de grandes répteis. “A formação de manadas é bastante comum em herbívoros atuais”, diz o professor Felipe Pinheiro (Unipampa), que também assina o trabalho. “Além de ajudar na proteção contra predadores, as manadas contribuem em uma maior taxa de sobrevivência dos filhotes a riscos como fome e doenças. Os novos fósseis comprovam que esse comportamento surgiu muito antes da origem dos próprios mamíferos”, explica Felipe.

Embora a causa da morte dos bichinhos continue incerta, é provável que as carcaças tenham ficado expostas por um tempo razoável antes de serem soterradas e, centenas de milhões de anos depois, acabarem na bancada de estudo dos paleontólogos.

Referência:

Ugalde et al. (2018). Link para acessar artigo: https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/08912963.2018.1533960?fbclid=IwAR2b92qDj9OeTNgxASfEoIWg5mwDKOwCqoEAoIZuugYy8vaHwT9aGH1VJoA&journalCode=ghbi20&

Finalmente, o mamífero do Cretáceo do Brasil!

Brasilestes stardusti é o seu nome, em alusão ao Brasil e a Ziggy Stardust, um personagem criado pelo músico britânico David Bowie, falecido em 2016, ano em que o fóssil foi descoberto.

Brasilestes

O fóssil em questão tem apenas 3,5mm e trata-se de um único dente pré-molar. Pode não parecer grande coisa, mas é uma descoberta há muito tempo esperada. Tanto que, apesar de não escrever há muito tempo no blog, achei que isto, particularmente, merecia uma comemoração!

A publicação do material foi feita hoje, na revista científica Royal Society Open Science e conta com a participação de pesquisadores brasileiros da UFG, USP e Unicamp, além de paleontólogos argentinos e estadunidenses. O estudo foi liderado pela Dra. Mariela Castro (UFG), especialista em mamíferos fósseis e, com certeza, uma grande fã de Bowie.

O pequeno dente, tão importante, foi encontrado nas rochas ricas em fósseis do interior do estado de São Paulo, mais especificamente, no município de General Salgado, oeste paulista. Estas rochas datam do final Período Cretáceo, entre 80 e 75 milhões de anos, época em que os dinossauros ainda reinavam soberanos nos ecossistemas terrestres. Isso torna Brasilestes o mais antigo mamífero conhecido para o Brasil.

Captura de Tela 2018-05-30 às 09.01.17

Com um tamanho reconstituído aproximado do de um gambá atual (cerca de 50cm de comprimento), Brasilestes certamente se esquivou das passadas de gigantes pescoçudos herbívoros e fugiu das ferozes mandíbulas de uma miríade de crocodilos terrestres, uma pequena amostra da paleofauna que habitava o interior de São Paulo no final do Cretáceo.

Até a presente data, nenhum vestígio corporal de mamífero fóssil havia sido apropriadamente descrito para as rochas cretácicas do Brasil. Na verdade, para todas as rochas da Era Mesozoica brasileira. O fóssil “do tal mamífero”, sempre havia sido o “Santo Graal” da paleontologia brasileira, buscado incansavelmente por vários grupos de pesquisadores. Por isso, é uma alegria ele ter sido finalmente encontrado.

Para não dizer que este é realmente o primeiro registro corporal de mamífero cretácico do Brasil, o fóssil de um pequeno pedaço de mandíbula com um único dente inserido havia sido encontrado em rochas do mesmo contexto geológico na década 1990. Apesar de publicado há tempos, o material não foi descrito apropriadamente na época, e encontra-se, até hoje, inacessível para a grande maioria dos paleontólogos brasileiros.

O outro registro fossilífero atribuído a mamíferos mesozoicos do Brasil ou, pelo menos, de organismos “mamaliformes”, são as pegadas fósseis da chamada Formação Botucatu, uma unidade geológica que representa um antigo deserto que existiu no interior de São Paulo há  pelo menos 130 milhões de anos. Estas pegadas (assista um vídeo nosso falando sobre isto aqui) são mais antigas do que Brasilestes, mas, infelizmente, nunca puderam ser atribuídas com certeza a um mamífero verdadeiro.

Brasilestes é muito importante, porque fornece a primeira identificação mais precisa sobre um mamífero do Cretáceo do Brasil. A morfologia do dente encontrado indica que o mesmo pertencia a um mamífero Tribosphenida, ou seja, um mamífero do grupo que reúne os placentários e marsupiais.

Untitled

Os mamíferos tribosfênidos contam com diversos registros no Cretáceo do hemisfério norte. Porém, no hemisfério sul, apenas haviam sido encontrados na Índia, em Madagascar e no norte da América do Sul. A descrição de Brasilestes stardusti veio preencher uma lacuna importante no registro de mamíferos mesozoicos, ressaltando a importância do Brasil para a compreensão da história evolutiva do grupo.

Por mais absurdo que possa parecer descrever uma nova espécie com base em um único dente, essa é uma situação muito comum para mamíferos fósseis. O registro fossilífero desse grupo é relativamente raro e, majoritariamente baseado na ocorrência de dentes isolados, lembrando que dentes são elementos muito resistentes e preservam-se com maior facilidade do que ossos. Por esta razão, para mamíferos fósseis, características da dentição são muito utilizadas como caracteres diagnósticos de espécies

A equipe envolvida no trabalho também realizou outras análises no fóssil para ajudar em sua identificação, como a avaliação da microestrutura do esmalte dentário.

A cobertura de esmalte encontrada, com cerca de 20 mícrons, é bem mais fina do que a dos dentes de outros mamíferos mesozoicos (entre 100 e 300 mícrons). Além disso, poucas espécies de mamíferos atuais têm característica semelhante, entre eles, alguns Xenarthra (ordem que inclui os tatus, tamanduás e preguiças). Esta observação suscita uma possível relação entre Brasilestes e este grupo de mamíferos. A divergência (ou origem) dos xenartros, calculada por meio da técnica chamada de “relógio molecular”, teria se de dado exatamente nessa época, há pelo menos 85 milhões de anos.

Os mamíferos eram elementos relativamente raros em ecossistemas da Era Mesozoica. Ocupavam nichos secundários, eram, via de regra, pequenos e predominantemente generalistas. A maioria, talvez tivesse hábitos noturnos e fosse arborícola ou fossorial. Essas são algumas razões para os fósseis de Brasilestes serem tão raros. Provavelmente estes organismos eram entidades pouco abundantes em seu paleoecossistema e/ou tinham tamanhos muito pequenos para que seus elementos ósseos delicados fossem preservados e/ou vivessem longe da área favorável para preservação de fósseis.

Tenho certeza de que esta publicação traz novas esperanças aos paleontólogos brasileiros. Que mais fósseis sejam encontrados em breve e ajudem a responder as questões que Brasilestes trouxe à tona (veja mais aqui). Para fechar, vale sempre a pena lembrar, que os mortos têm muita história para contar. Este, especificamente, marcou seu nome na “calçada da fama” da paleontologia nacional, tal qual o grande artista David Bowie deixou sua marca no famoso passadiço hollywoodiano.

Referência:

Castro MC, Goin FJ, Ortiz-Jaureguizar E, Vieytes EC, Tsukui K, Ramezani J, Batezelli A, Marsola JCA, Langer MC. 2018 A late Cretaceous mammal from Brazil and the first radioisotopic age for the Bauru Group. R. Soc. open sci. 5: 180482.  http://dx.doi.org/10.1098/rsos.180482