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O que os olhos nas asas de um inseto fóssil podem nos dizer?

Por Matheus P. dos Santos da Rocha & Cledston Matheus A. Macário

Quando falamos em Paleontologia, muitos a resumem como uma ciência meramente de descrição de aspectos morfológicos, como o simples trabalho de encontrar um osso, descreve-lo e, por sorte, dar nome a uma nova espécie. Porém, a Paleontologia vai muito além disso. Por meio dela, podemos especular sobre diversos aspectos da vida no passado. Até mesmo alguns cujas evidências, muitas vezes, são escassas no registro fossilífero. Um exemplo disso, seria encontrar uma resposta para a pergunta: como eram os olhos dos dinossauros não-avianos?

Como toda ciência, a paleontologia trabalha, inicialmente, com hipóteses, e essas, podem nos levar para linhas de raciocínio beeeem inusitadas, uma hora podemos estar debatendo sobre buracos negros e a extinção dos dinossauros e isso, mais à frente, pode terminar numa deliciosa (ou não) receita de macarrão com biscoito. A história de hoje começa com uma linhas de raciocínio inusitadas: ela parte de um grupo de insetos fósseis, os Kalligrammatidae…

O que são os Kalligrammatidae?

Chrysoperla carnea – Foto de Julia Stoess

Você já viu em algum jardim por aí pequenas bolinhas sustentadas por um fio bem fino, presas nas folhas das plantas? Se sim, com quase toda certeza você viu ovos de bicho-lixeiro. Pertencentes a uma ordem de insetos chamada Neuroptera, esses inofensivos (para os humanos) insetos são predadores vorazes de ovos de aranhas e outros invertebrados. Essa ordem inclui desde a formiga-leão, até coisas estranhas como os mantispídeos (que parecem uma mistura bizarra entre um marimbondo e um louva-a-deus).

Apesar de não serem um grupo muito comum nos dias de hoje, a representação fóssil deles é abundante. No Brasil, dados de um trabalho de revisão de 2018, dão conta que das 379 espécies de insetos descritos para a Formação Crato, da Bacia do Araripe, 76 são neurópteros, ou seja, 20% da diversidade de insetos da formação está em uma única ordem, que atualmente representa 0,6% das espécies de insetos viventes. 

No meio de toda essa diversidade, os fósseis mais enigmáticos de Neuroptera são os da família Kalligrammatidae. O primeiro de Kalligrammatidae foi descrito por Johannes Walther, em 1904, com base num material quase completo, encontrado no calcário jurássico de Solnhofen (Alemanha) – aquele mesmo do Archaeopteryx. Desde então, diversas espécies de Kalligrammatidae foram encontradas em várias localidades, com destaque para os achados na China e nos âmbares birmaneses, ao norte de Mianmar. 

Diversidade dos kalligrammatidae. a. & b. da Formação Crato (Brasil); c., d., e., f., g., h. & p. das Formações Jiulongshan ou Haifanggou (China); i., j., k., l., m. & n. da Formação Yixian (China); o. da Formação Karabastau (Cazaquistão).” – Imagem original por Julian Kiely (Editado).

Em 1997, o lendário paleontólogo Rafael G. Martins-Neto, descreveu, pela primeira vez, um Kalligrammatidae na Formação Crato, batizado de Makarkinia adamsi. De lá pra cá, outros trabalhos confirmaram a presença dessa família no Nordeste Brasileiro e, inclusive, descreveram novas espécies, sendo este, até hoje, o único lugar fora da Europa e Ásia a ter esses registros.

É uma sorte que esses animais ocorram em vários afloramentos do tipo lagerstätten (sítios com preservação excepcional) pelo mundo afora. A boa preservação dos fósseis permitiu notar rapidamente a semelhança dos kalligrammatídeos fósseis com as atuais borboletas e mariposas. Essa comparação não fica só por conta do formato, padrões de coloração e desenhos das asas, mas alguns espécimes bem preservados, principalmente em âmbar, mostram também a presença de uma “boca” modificada em um fino e comprido tubo chamado de probóscide, característica marcante das mariposas e borboletas (ambas pertencentes à ordem Lepidoptera). Mas isso aconteceu nos kalligrammatídeos num momento do tempo geológico em que as borboletas não existiam e as mariposas não eram tão abundantes e diversificadas como são hoje.

Fora do Brasil, alguns Kalligrammatidae chegam a ser apelidados de “giant lacewings” (crisopídeos gigantes) e isso chegou ao extremo em algumas espécies fósseis. Comparativamente, algumas espécies fósseis são enormes em relação aos seus irmãos ainda viventes. Estima-se que as espécies encontradas no Araripe, por exemplo, alcançavam entre 24 a 32 centímetros de envergadura! 

A história dos “olhos” nas asas

Insetos grandes e chamativos podem virar comida facilmente, por isso, precisam ter alguma forma de se proteger da predação. Os kalligrammatídeos que viveram entre o Eojurássico ao Neocretáceo estavam dividindo espaço com lagartos, dinossauros avianos e não-avianos, pterossauros, entre outros predadores . Logo, teria que haver alguma forma deles não sucumbirem a seus colegas de habitat!

As mariposas e borboletas de hoje em dia têm algumas estratégias para evitar a predação. Desde projeções nas asas para desviar a atenção do predador, como as mariposas do gênero Actias, até mimetizar (imitar) folhas secas, tal qual Zaretis itys faz. Outra forma é ter “olhos”, ou melhor, ocelos em suas asas. Os ocelos são desenhos circulares que aparecem em diversos animais, especialmente nos lepidópteros. Esses círculos podem aparecer com 2 estratégias diferentes de uso:

Mycalesis patnia – Foto por L. Shyamal
  • A primeira é ter eles próximos às margens da asa, fazendo com que a atenção de um provável predador seja focada na ponta da asa e não no centro do corpo do organismo.
  • A outra é simplesmente aterrorizar! As mariposas da família Saturniidae e as borboletas-olho-de-coruja do gênero Caligo, por exemplo, fazem isso muito bem. Elas têm ocelos enormes no centro das asas, que imitam – algumas vezes de forma assustadora – os olhos de uma coruja, afastando assim qualquer predador que ouse atacá-las.
Caligo beltrao – Foto por Quartl

E é nesse ponto que queríamos chegar. Justamente essa segunda estratégia é atribuída a várias espécies fósseis de kalligramatídeos. Desde o primeiro espécime descrito, os ocelos gigantes estão presentes nas asas, e há trabalhos que descrevem e comparam os diversos formatos encontrados.

Makarkinia irmae – Imagem de Machado et al. (2021).

O que isso tem a ver com dinossauros?

Agora, chegou a hora que, ou vocês sairão desse blog nos chamando de loucos, ou terão o famoso “Mind Blow”. Vamos ao ponto principal: você já parou para pensar sobre o formato dos olhos dos dinossauros não-avianos? Essa é uma discussão complicada, pois o número de olhos de dinossauro preservados no registro fossilífero é: zero! Mas é uma curiosidade legítima querer saber essa informação, tanto que pode ser encontrado por aí, em fóruns pela internet, pessoas debatendo sobre essa questão.

Como esse tipo de material fóssil para dinossauros é inexistente, parte-se para a comparação com animais recentes, tanto seus parentes mais próximos ainda vivos, quanto possíveis análogos ecológicos. Mas existe ainda outra linha de raciocínio para se debater: não olhar para os dinossauros em si, mas para seus colegas de habitat e, no nosso caso especifico, os kalligramatídeos da Formação Crato.

A reação dos leitores daqui a alguns instantes, pelo menos, na expectativa dos autores…

Como já foi mencionado anteriormente, os “Giant Lacewings” poderiam ter se utilizado da segunda estratégia de uso dos ocelos: para assustar prováveis predadores, imitando os olhos de animais com os quais conviveram. Aí está o “pulo do gato”. Para um predador se assustar com os olhos desenhados nas asas das borboletas-olho-de-coruja é preciso que tenha um animal no mesmo habitat, que vá servir de gatilho (o “modelo” dos ocelos de Caligo, uma coruja, por exemplo: um predador assustador, que assuste o predador da Caligo). Mas há 120 milhões de anos não existiam corujas no Ceará, então…quem eram os modelos dos Kalligrammatidae do Crato?

Pantano do Crato – Arte de Olmagon.

Existem dois principais suspeitos: pterossauros e dinossauros, mas vamos por partes. Pterossauros na Bacia do Araripe, segundo Mendes et al. (2020), eram majoritariamente piscívoros (comedores de peixes), com algumas exceções como Lacusovagus magnificens, que provavelmente vagava pelos pântanos da região para caçar anfíbios e outras pequenas presas. O trabalho de Mendes, inclusive, coloca os pterossauros como animais no topo da teia trófica da região na época. 

“Teia trófica da fauna Cretácea do Araripe” – Mendel et al. (2020)

Mas se os pterossauros cearenses comiam peixes, majoritariamente, os possíveis predadores dos kalligramatídeos (outros insetos, anfíbios, pássaros, pequenos dinossauros, etc.) não estavam no cardápio deles, a priori. Por esse fator, seria compreensível a exclusão desses animais como possíveis modelos para os ocelos.

Escultura do Santanaraptor placidus do Museu Plácido Cidade Nuvens, de Santana do Cariri, CE.

Já os dinossauros, por outro lado, são os candidatos perfeitos para esse quebra-cabeças ecológico. Animais como Aratasaurus museunacionali, Mirischia asymetrica (que, assim como “Ubirajara“, foi traficado para Alemanha #MirischiaBelongtoBR) e Santanaraptor placidus, ocupavam o nicho de predadores de médio a pequeno porte da região do Cariri. Como apontado por Julian Kiely, em seu artigo para o blog “Paleoflora,  a forma da asa dianteira na maioria das espécies de kalligramatídeos, e o grande tamanho dessas asas,  correspondiam, aproximadamente, ao tamanho e a forma das cabeças de muitos pequenos dinossauros predadores que conviviam com esses insetos (como as espécies mencionadas acima). Desta forma, poderíamos inferir que as pupilas dos dinossauros de médio a pequeno porte do Jurássico Superior e do Cretáceo Inferior, como os maniraptores (pelo menos), deveriam ser arredondadas, já que os ocelos de todos os kalligramatídeos conhecidos até então, possuem esse mesmo formato. O que se soma à evidência indireta parelela, que considera como base comparativa o formato da pupila dos dinossauros viventes, que são as aves.

Mimetismo de Kalligrammatidae a um Maniraptora  – Imagem de Julian Kiely, 2022.

O poder da especulação

Alguns podem estar se perguntando: qual a importância de especular aspectos biológicos e evolutivos tão difíceis de se comprovar por meio do registro fossilífero? Muito da ciência começa com especulação. As descobertas científicas, em geral, nascem de hipótese de alguém. Um exemplo clássico foi a detecção das ondas gravitacionais em 2015, que haviam sido previstas por Albert Einstein em 1916.

Focando na área da Paleontologia, um exemplo muito interessante, e, à época, considerado extremamente especulativo, foi o da existência de um radiodonte (grupo que inclui o Anomalocaris) filtrador, batizado de “Ceticaris”. Nada mais que uma especulação concebida pelo artista John Meszaros, publicada no livro All Your Yesterdays, de 2013. Porém, para surpresa de muitos, em 2014 foi realmente descrito um radiodonte cambriano com hábito filtrador, Tamisiocaris borealis.

Ceticaris” – Arte de John Meszaros

Em homenagem à previsão de Meszaros, Tamisiocaris foi incluído em um novo clado denominado Cetiocaridae. Infelizmente, o nome deste clado não é mais considerado válido, de acordo com o Código Internacional de Nomenclatura Zoológica, por não existir nenhum gênero real chamado “Cetiocaris“, então foi formalmente substituído pelo nome Tamisiocarididae.

Reconstrução de Tamisiocaris – Arte de Rob Nicholls

Finalmentes

Com base em todos os argumentos supracitados (Alô, professores de redação!), podemos inferir que a hipótese levantada pode levar a especulações e trabalhos futuros que respondam às nossas dúvidas (isso claro, se esse post, neste humilde blog, chegar nas pessoas certas, e para isso seu compartilhamento é fundamental). Gostaríamos de agradecer a Julian Kiely do excelente blog “Paleoflora” pelo artigo que inspirou este, e que isso inspire a todos os nossos leitores a imaginar e especular dentro da ciência, lançar ideias, compartilhá-las, pois só assim a ciência cresce e prospera, com união e partilha. 

Referências:

Martins-Neto, R. G. 1997. Neurópteros (Insecta, Planipennia) da Formação Santana (Cretáceo IInferior) Bacia do Araripe, Nordeste do Brasil. X – descrição de novos taxa (Chrysopidae, Babinskaiidae, Myrmeleontidae, Ascalaphidae e Psychopsidae). Revista Universidade Guarulhos , São Paulo, v. 2, n.4,. p. 68-83.

Frazer, J. 2016. Butterflies in the Time of Dinosaurs, with Nary a Flower in Sight. Scientific American.

Labandeira, C. et al. 2016. The evolutionary convergence of mid-Mesozoic lacewings and Cenozoic butterflies. Proceedings of the Royal Society B: Biological Sciences. 283. 

Vinther, J., Stein, M., Longrich, N. et al. 2014. A suspension-feeding anomalocarid from the Early Cambrian. Nature 507, 496–499.

Moura-Júnior, D.A. et al. 2018. The Brazilian Fossil Insects: current scenario. Anuário do Instituto de Geociência – Ufrj, v. 41, n. 1, p. 142-166. Instituto de Geociências – UFRJ.

Mendes, M. et al. 2020. Ecosystem Structure and Trophic Network in the Late Early Cretaceous Crato Biome. Brazilian Paleofloras. Springer, Cham. 

Machado, R.J.P. et al.2021. A new giant species of the remarkable extinct family Kalligrammatidae (Insecta: Neuroptera) from the Lower Cretaceous Crato Formation of Brazil. Cretaceous Research. Volume 120.

Kiely, J. 2022. Restoring the Kalligrammatids: The not-butterflies of the mesozoic. Paleoflora.

Um dinossauro no exílio e a luta contra o colonialismo científico

Poucos imaginariam que um dinossauro do tamanho de um ganso desencadearia uma das maiores polêmicas da Paleontologia nos últimos anos. Para bem ou para mal, “Ubirajara jubatus” tem chamado a atenção como poucos fósseis na história da Paleontologia.

Arte de Saulo Daniel, publicada no Twitter.

Quando foi revelado ao mundo no dia 13 de dezembro de 2020, “Ubirajara jubatus” deveria ter sido visto como uma descoberta interessante do ponto de pista científico, pois tratava-se do primeiro dinossauro não-aviano com penas do Hemisfério do Sul. Contudo, a sua importância foi rapidamente ofuscada por um emaranhado de problemas éticos e legais. O estudo de “Ubirajara” representa um típico caso de colonialismo científico: um fóssil brasileiro que foi parar de maneira suspeita num museu alemão (Museu Estadual de História Natural de Karlsruhe) e uma pesquisa feita exclusivamente por cientistas estrangeiros.

O conceito de colonialismo científico foi definido em 1967 por Johann Galtung como “o processo pelo qual o centro de adquisição do conhecimento sobre uma nação está fora a própria nação”. Isto se aplica ainda à Paleontologia de vários países, cujas pesquisas, em pleno século XXI, são predominantemente feitas por estrangeiros.

Além do Brasil, países como China, Mongólia, Marrocos, República Dominicana e Myanmar, têm estado na mira, tanto de traficantes de fósseis, como de pesquisadores sem escrúpulos. Os fósseis atraem a curiosidade do público e são um valioso recurso em muitos aspectos: científico, educacional, cultural e até econômico, gerando turismo e beneficiando o comércio local. Porém, todos estes benefícios ficam num país estrangeiro, quando os fósseis são levados (legal ou ilegalmente) ao exterior e terminam estudados por equipes de outros países, o que cria dependência científica e perpetua desigualdades sociais.

No Brasil, assim como em toda a América Latina e na maior parte dos países do mundo, os fósseis pertencem legalmente à Nação onde são encontrados. Durante décadas, contudo, milhares de fósseis têm saído ilegalmente da região do Araripe, no Nordeste do Brasil, região muito rica em termos paleontológicos, mas com um baixo índice de desenvolvimento humano. Estes fósseis são adquiridos a preços irrisórios por estrangeiros, chegam ilegalmente a feiras e leilões na Europa e terminam em coleções privadas ou em museus estrangeiros.

Centenas destes fósseis no exílio têm sido estudados por cientistas estrangeiros de maneira impune nas últimas décadas. Este problema é mais do que conhecido pela comunidade científica brasileira, porém estamos acostumados a que as nossas vozes não sejam escutadas no exterior. Problema que não enfrentam, por exemplo, os autores do estudo de “Ubirajara ” e de vários outros fósseis extraídos irregularmente do Brasil. Eberhard Frey (ex-curador da coleção de vertebrados do museu onde ainda hoje está “Ubirajara”) era, até 2021, nada menos que o presidente da Associação Europeia de Paleontologia de Vertebrados (EAVP, sigla em inglês), enquanto que David Martill, também autor do estudo de “Ubirajara”, publicou um artigo defendendo abertamente que os paleontólogos desrrespeitem as leis locais.

É uma luta que sempre tem sido desigual. Porém, desta vez foi diferente. Estamos na era das redes sociais, da comunicação científica online e das hashtags. O uso de hashtags como #BlackLivesMatter e #MeToo têm mostrado que as redes sociais podem unir esforços em torno de uma causa. #UbirajaraBelongstoBR (Ubirajara pertence ao Brasil), criada no Twitter pela paleontóloga e divulgadora científica Aline Ghilardi, se espalhou como fogo na internet, poucas horas após a notícia do novo dinossauro. No Youtube, foram feitas várias lives denunciando o caso, uma delas, pediu ao público pra desenhar “Ubirajara” e protestar nas redes usando a hashtag #UbirajaraBelongstoBR. Em poucos dias este era o dinossauro mais desenhado do mundo: artistas, crianças e público geral participavam da campanha. O ruído produzido foi tão alto que em duas semanas a revista Cretaceous Research retirou a pesquisa do ar e anunciou que investigava o caso.

Em setembro de 2021, o museu de Karlsruhe contra-atacou, publicando no Instagram um comunicado no qual afirmavam que o dinossauro Ubirajara era ‘propriedade do estado de Baden-Württemberg’ e que não seria devolvido ao Brasil. Em poucos dias acumularam-se mais de 10 mil comentários pouco amigáveis de brasileiros usando a hashtag #UbirajaraBelongstoBR. O museu teve que desativar a sua conta no Instagram. Poucos dias depois, a revista Science revelou que “Ubirajara” foi importado pela Alemanha em 2006 por uma empresa privada e, então, comprado pelo Museu Estadual de Historia Natural de Karlsruhe, em 2009, o que contradizia a alegação de Eberhard Frey, que afirmava tanto que ele mesmo tinha transportado o fóssil para Alemanha em 1995, portando uma suposta autorização do governo brasileiro.

No 15 de novembro de 2021, publicamos uma carta na revista Nature Ecology and Evolution, na qual explicamos os problemas legais e éticos envolvendo não só “Ubirajara”, mas vários outros fósseis que encontravam-se no museu de Karlsruhe e em outros museus do país. Enviamos essa carta à ministra de Ciência e Cultura do estado alemão de Baden-Württemberg e, um mês depois, ela nos respondeu prometendo investigar o caso e tomar ações contra os responsáveis.

Em março de 2022 publicamos, então, um amplo estudo onde denunciamos o colonialismo científico em centenas de estudos sobre fósseis do Brasil e do México. E, finalmente, em julho de 2022, o Ministério de Ciência e Cultura de Baden-Württemberg anunciou que o Museu Estadual de Historia Natural de Karlsruhe tinha atuado de maneira desonesta e ordenou a devolução do fóssil ao Brasil. Além disso, solicitou ao museu que informasse sobre todos os fósseis que se encontram irregularmente na sua coleção.

Eberhard Frey aposentou-se prematuramente em 2022 e Norbert Lenz, também autor do estudo e diretor do museu, foi removido do seu cargo em julho de 2022.

Devido à repercussão gerada pelo caso, algumas revistas acadêmicas têm adaptado políticas mais rígidas sobre a origem legal dos fósseis nas suas publicações. Adicionalmente, alguns países começaram a retornar voluntariamente fósseis ao Brasil, como em outubro de 2021, quando uma universidade dos EUA entregou 36 aranhas fósseis ao Museu de Paleontologia de Santana do Cariri, e em fevereiro de 2022, quando a Bélgica devolveu ao Brasil um pterossauro.

No momento em que estas linhas são escritas, seguimos esperando pela repatriação, não só do dinossauro “Ubirajara”, mas de centenas de outros fósseis que se encontram irregularmente em Karlsruhe e em outros museus da Alemanha. Aconteça o que acontecer, a Ciência não será a mesma após este caso. “Ubirajara” está já no salão da fama dos maus exemplos na Paleontologia, junto a Archaeoraptor e ao Homem de Piltdown.

*Este texto foi originalmente publicado em espanhol em http://saberesyciencias.com.mx/2023/02/10/dinosaurio-exilio-la-lucha-colonialismo-cientifico/

Referências:

Smyth, R.S.H. et al. 2020. WITHDRAWN: A maned theropod dinosaur from Gondwana with elaborate integumentary structures. Cretaceous Research.

Martill, D. 2018. Why palaeontologists must break the law: a polemic from an apologist. The Geological Curator 10: 641-649.

Padilha, P. K. 2020. ROUBARAM mais um DINOSSAURO DO BRASIL #UbirajarabelongstoBR. https://youtu.be/Uf_QjXwbEDU

Pérez Ortega, R. 2021. Retraction is ‘second extinction’ for rare dinosaur. Science 374: 14-15.

Cisneros, J.C. 2021. The moral and legal imperative to return illegally exported fossils. Nature Ecology & Evolution, 6:2-3.

Cisneros, J.C. 2022. Digging deeper into colonial palaeontological practices in modern day Mexico and Brazil. Royal Society Open Science 9:210898.

Melanina é encontrada em fóssil de pterossauro brasileiro

Molécula biológica responsável pela pigmentação de seres vivos foi encontrada preservada em um fóssil brasileiro de cerca de 110 milhões de anos, da região do Ceará! O fóssil em questão é de um pterossauro, um tipo de réptil voador da “Era dos Dinossauros”.

Reconstituição em vida de Tupandactylus, arte de Márcio Castro.
Reconstituição em vida de Tupandactylus, arte de Márcio Castro.

O estudo foi publicado hoje em uma das revistas científicas do prestigioso grupo Nature, a Scientific Reports, e inclui pesquisadores diversos países, liderados pelos paleontólogos brasileiros Felipe Pinheiro, da Universidade Federal do Pampa (Unipampa, Rio Grande do Sul) e o doutorando Gustavo Prado, da Universidade de São Paulo (USP, São Paulo).

“Isso ainda é muito distante Jurassic Park”, lembram os pesquisadores, mas o fato de encontrar uma molécula biológica tão bem preservada já é uma grande descoberta, que nos possibilita entender melhor como eram esses organismos do passado.

O fóssil de réptil voador analisado pertence a um Tupandactylus, um pterossauro de tamanho médio, com cerca de 3 metros de envergadura e que tinha uma crista bem alta na cabeça. Ele viveu no sul do Ceará, na região do Araripe, quando toda essa área era coberta por uma extensa laguna, durante a primeira metade do Período Cretáceo, há cerca de 110 milhões de anos.

O estudo também contou com a participação de pesquisadores do Japão e dos Estados Unidos. Trata-se da mais completa caracterização química de uma biomolécula fossilizada em um réptil.

“Embora sempre soubéssemos que os fósseis encontrados na região da Chapada do Araripe eram especiais em termos de preservação, foi uma surpresa quando as análises químicas mostraram que a melanina do bicho ainda estava lá. Parece que o pterossauro morreu ontem”, relata Felipe Pinheiro, paleontólogo da Unipampa.

Vários fósseis de Tupandactylus já foram descobertos na Chapada do Araripe. Porém, este preservou muito bem a crista do animal, o que levou os pesquisadores a quererem analisá-la mais de perto. A crista enorme, em forma de vela, provavelmente era utilizada, entre outras coisas, para atrair parceiros. Foi dela que os cientistas extraíram o pigmento.

Imagem do artigo monstrando os pontos amostrados no fóssil.

“A melanina é uma das moléculas mais resistentes aos processos de fossilização. Enquanto os outros compostos são degradados com o passar do tempo, esse pigmento resiste de forma mais ou menos intacta”, explica Gustavo Prado, que é especialista em pigmentos fossilizados.

Imagem do artigo, mostrando os corpúsculos esféricos presentes no fóssil, que conteriam a melanina.
Imagem do artigo, mostrando os corpúsculos esféricos presentes no fóssil, que conteriam a melanina.

Agora, a pergunta que não quer calar: Com essa molécula preservada, foi possível identificar a cor do animal?

Os cientistas que assinam o estudo são bastante céticos: “É complicado”, diz Pinheiro. “São muitos fatores envolvidos na coloração de um animal, e a melanina é só um deles”. Estudos anteriores reconstruíram a cor de aves e dinossauros com base na forma dos melanossomos, organelas responsáveis por armazenar melanina. A ideia é que o formato dos melanossomos poderia indicar a coloração. A caracterização química da melanina do Tupandactylus mostrou que não é bem assim. “Não encontramos correlação entre o formato dos melanossomos e o tipo de melanina identificada no pterossauro”, diz Gustavo Prado.

O novo estudo, portanto, desafia as inferências de coloração realizadas para organismos fósseis até então. Será necessário rever essa possibilidade e, à luz das novas descobertas, aperfeiçoá-la.

O grupo de pesquisadores continua investigando a preservação excepcional de fósseis da Chapada do Araripe, e afirmam que várias novidades ainda estão por vir. “Aos poucos ficamos cada vez mais próximos desses animais incríveis”, diz Pinheiro.

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O trabalho completo está disponível em www.nature.com/articles/s41598-019-52318-y

O estudo foi financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

Tetrapodophis amplectus e a história sem fim da “cobra” de quatro patas: uma perspectiva interna.

Em 2015, um fóssil proveniente do Brasil veio à tona com uma publicação feita por Martill e colaboradores. A repercussão dessa publicação foi imensa por vários motivos, como por exemplo, o fato de se tratar de um espécime muito bem preservado de uma suposta cobra de quatro patas. No entanto, nem tudo foram flores, críticas acerca da procedência duvidosa do material e até mesmo da sua designação como uma serpente foram levantadas. Para sabermos um pouco mais sobre o assunto e a importância das discussões levantadas convidamos o Doutorando Tiago Rodrigues Simões, especialista no estudo da origem e evolução de Squamata (lagartos e cobras), para escrever o esclarecedor texto abaixo.

Obs: Agradeço ao colega João Francisco Botelho pela sugestão do tema, que me motivou a convidar o Tiago para redigir tal texto.

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 (TEXTO POR TIAGO SIMÕES)   

Tetrapodophis amplectus e a história sem fim da “cobra” de quatro patas: uma perspectiva interna

Fósseis espetaculares costumam chamar a atenção da comunidade científica e da mídia ao redor do mundo. Em parte pelo fascínio que a paleontologia como um todo (especialmente através dos dinossauros) causa em muitos, em parte pelas novas perspectivas que certos fósseis fornecem acerca da evolução dos seres vivos. Dentro desse último aspecto encontra-se um réptil fóssil denominado Tetrapodophis amplectus (Figura 1), da Formação Crato da Bacia do Araripe, que viveu a cerca de 115 milhões de anos atrás. A espécie, originalmente publicada como uma cobra de quatro patas (Martill, Tischlinger & Longrich, 2015) criou grande comoção na comunidade científica internacional no ano de 2015. Contudo, logo após a sua publicação, o estudo foi alvo de uma série de controversas envolvendo tanto a procedência do material, quanto a ciência por trás da descoberta. No relato abaixo, eu forneço um relato e as minhas perspectivas sobre o assunto do ponto de vista de um brasileiro, especialista em lagartos fósseis e diretamente envolvido na nova pesquisa sobre a Tetrapodophis.

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Figura 1: Espécime (holótipo) de Tetrapodophis amplectus. Créditos: Michael W. Caldwell

Problemas na caracterização anatômica e classificação

A posição ocupada pela Tetrapodophis na evolução do grupo que compreende as cobras e lagartos (Squamata, ou escamados) é sem dúvida o aspecto mais problemático na interpretação científica do fóssil. No último encontro da Society of Vertebrate Paleontology (SVP) em Salt Lake City, nos EUA, um time de colaboradores liderados por Michael Caldwell (University of Alberta, Canadá), e que também inclui Robert Reisz (University of Toronto, Canadá), Randall Nydam (Midwestern University, EUA), Alessandro Palci (Flinders University, Austrália), além de mim (afiliação abaixo), apresentou uma série de dados novos sobre a Tetrapodophis. Em resumo, aspectos da morfologia dentária (Figura 2), craniana e das vértebras indicam que o indivíduo se parece mais com um grupo extinto de lagartos aquáticos denominados dolicossaurídeos (proximamente relacionados aos mosassauros) do que com qualquer cobra vivente ou fóssil conhecida. Um dos aspectos mais relevantes dos novos dados obtidos é que a informação anatômica presente na descrição original do espécime ou está errada, ou é impossível de ser visualizada. Além disso, partes do material preservam impressões da morfologia do crânio (Figura 3) que foram simplesmente ignoradas no estudo original. É de se espantar que tal informação não tenha sido incluída no estudo original, já que tais impressões em baixo relevo do crânio fornecem informações valiosas sobre alguns ossos que são importantes para a classificação dessa espécie dentre os escamados (Squamata).

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Figura 2: Imagem dos dentes presentes no holótipo de Tetrapodophis amplectus . a) material original; b) representação esquemática, enumerando os dentes. Créditos: Michael W. Caldwell

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Figura 3: Imagens do crânio de Tetrapodophis amplectus . Principais ossos preservados, bem como as impressões de ossos completa ou parcialmente destruidos. Créditos: Michael W. Caldwell

O leitor pode se perguntar como que erros em tamanho volume podem ter sido cometidos em um estudo publicado num periódico de tamanho escalão como a Science? Pois bem, você não é o único. Diversos outros especialistas em escamados presentes na reunião anual da SVP ficaram igualmente espantados sobre a falta de cuidado na correta interpretação anatômica da Tetrapodophis. Alguns já desconfiavam de diversos erros ao comparar as fotos publicadas com a descrição escrita do material no artigo original, mas somente agora com os novos dados fornecidos pelo nosso time de colaboradores puderam confirmar tais suspeitas (veja relato do Dr. Jason Head, Cambridge University: http://news.nationalgeographic.com/2016/11/snakes-tetrapodophis-fossils-ethics-science/).

Uma outra pergunta que aqueles que não são especialistas em cobras e lagartos podem fazer (e extremamente relevante nessa discussão) é: como um animal alongado e de patas curtas não é uma cobra? O que ocorre é que diversas linhagens de lagartos adquiriram um corpo alongado seguido de redução dos membros durante a sua história evolutiva, incluindo as cobras, dolicossaurídeos, anfisbênias, dibamídeos, pigopodídeos, diversas grupos de anguídeos, scincídeos, entre outros. Dessa forma, a redução de membros e presença de um corpo alongado estão longe de ser um aspecto exclusivamente observado nas cobras. Para se reconhecer uma cobra como tal, deve-se analisar a morfologia das vértebras e, em especial, do crânio. Sendo assim, a combinação de dados que foram mal-interpretados ou ignorados certamente influenciou os resultados apresentados por Martill e co-autores, inclusive a análise filogenética realizada pelos mesmos.

Problemas na interpretação do hábito de vida

A interpretação inicial do fóssil como um animal fossorial foi um dos pontos que mais me chamou a atenção na descrição por parte de Martill e colaboradores. O indivíduo possui os ossos do pulso e do tornozelo pouco ou não ossificados. Apesar de essa característica poder ser indicativa de um estágio juvenil em répteis, especialmente no estágio embrionário ou recém-nascido, nenhum outro aspecto da morfologia do animal indica um estágio de desenvolvimento tão jovem. Uma outra hipótese, no entanto, explica de forma mais parcimoniosa esse baixo grau de ossificação: um hábito de vida aquático, conforme observado em inúmeras linhagens de répteis que adquiriram um hábito aquático em sua história evolutiva (ex: mosassauros, plesiossauros, talatossauros, entre outros). Além disso, a baixa ossificação dos ossos do pulso e tornozelo tornariam as patas da Tetrapodophis pouco úteis para atividades como escavar ou escalar. Outros argumentos também foram utilizados em um estudo mais recente para demonstrar empiricamente que a Tetrapodophis não possui o leque de adaptações que normalmente se observa em lagartos ou cobras fossoriais (Lee et al., 2016).

Problemas legais e éticos

O outro aspecto controverso sobre a Tetrapodophis, e que concerne de forma mais direta a paleontologia brasileira, é como esse material foi parar em uma coleção particular na Alemanha. A legislação brasileira proíbe, desde 1942, a venda de fósseis ou a sua retirada do país sem permissão legal. No entanto, toneladas de fósseis deixam o Brasil ilegalmente para serem vendidos no exterior, especialmente aqueles da bacia do Araripe (região de procedência da Tetrapodophis)—para mais detalhes sobre a legislação brasileira sobre os fósseis e o problema do contrabando de fósseis, veja Simões and Caldwell (2015). Os autores do trabalho relataram não saber sobre a exata época em que o fóssil saiu do Brasil (http://www.sciencemag.org/news/2015/07/four-legged-snake-fossil-stuns-scientists-and-ignites-controversy). Na realidade, depoimentos por parte do autor principal (Martill) sobre a saída do material do Brasil demonstram o quão preocupado com as normas éticas e legais o autor parecia estar no momento de sua publicação “pessoalmente, eu não dou a mínima para como e quando o fóssil saiu do Brasil” [tradução livre] (veja o relato de Martill no link anterior). Contudo, o fato do fóssil pertencer a uma coleção particular e devido ao longo histórico de tráfico de fósseis da região do Araripe criam uma situação muito suspeita acerca da procedência do material e as circunstâncias da sua saída do país. Isso levou a abertura de um processo criminal para se investigar a saída desse fóssil do Brasil (http://www.nature.com/news/four-legged-snake-fossil-sparks-legal-investigation-1.18116).

Um dos grandes problemas envolvendo coleções particulares e venda de fósseis é a perda de conhecimento sobre a biodiversidade pretérita devido a exemplares que terminam em gavetas de indivíduos particulares, ao invés de serem estudados por especialistas em museus e universidades. No caso da Tetrapodophis, o exemplar havia sido depositado em um museu na região de Solnhofen à época da publicação. Contudo, o material pertence a um colecionador particular e o dono detém os direitos de retirar o espécime do museu quando bem entender. Em algum momento entre o fim de 2015 e início de 2016, soubemos da notícia que o dono do material havia retirado o espécime do museu em Solnhofen e que, portanto, o holótipo e único espécime conhecido de Tetrapodophis não estava mais disponível para estudo. As observações do espécime feitas por Martill e co-autores, seguidas das realizadas por Caldwell e Reisz em uma visita ao museu logo após a publicação da espécie, poderão permanecer como as únicas existentes acerca desse material, talvez por muitos anos a frente. Nesse contexto, e ao meu entendimento, fica clara a resposta a pergunta: quem ganha com materiais científicos depositados em coleções particulares? Certamente, não é a ciência.

Referências para os artigos citados acima:

Lee MSY, Palci A, Jones MEH, Caldwell MW, Holmes JD, Reisz RR. 2016. Aquatic adaptations in the four limbs of the snake-like reptile Tetrapodophis from the Lower Cretaceous of Brazil. Cretaceous Research 66: 194-199.

Martill DM, Tischlinger H, Longrich NR. 2015. A four-legged snake from the Early Cretaceous of Gondwana. Science 349: 416-419.

Simões TR, Caldwell MW. 2015. Fósseis e legislação: breve comparação entre Brasil e Canadá. Ciência e Cultura 67: 50-53.

Dados sobre o autor:

12645264_10207058817362317_831737693683863186_nTiago Rodrigues Simões possui graduação e mestrado em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e atualmente está concluindo o doutorado na University of Alberta (Edmonton, Canandá). A sua pesquisa consiste no estudo da origem e evolução de Squamata (lagartos e cobras), utilizando dados de espécies fósseis e viventes (https://www.researchgate.net/profile/Tiago_Simes2).

Análise quantitativa dos fósseis de Dinossauros do Brasil e da Argentina

Esta contribuição foi feita pelo aluno de graduação da Universidade Federal de Uberlândia chamado Rodolfo Otávio dos Santos. Atualmente ele se encontra no 5º periodo do curso de Ciências Biológicas e está estagiando no Laboratório de Paleontologia da UFU (https://www.facebook.com/PaleoUFU). Devido ao seu interesse na área e de auxiliar na divulgação sobre tais assuntos ele seguirá contribuindo com mais postagens sobre os mais variados tópicos (obs: aguardem temas nerds hehe).
Então vamos ao texto!
Entre 225 e 65 milhões de anos, durante a Era Mesozóica, o planeta Terra foi dominado pelos Dinossauros, principalmente pelas linhagens não-avianas. Na região onde hoje é a América do Sul, mais especificamente Brasil e Argentina, numerosas espécies desses animais prosperaram e deixaram muitas evidências deste passado remoto, sob a forma de fósseis. Considerando-se a geografia atual, o Brasil possui uma área de aproximadamente 8,5 milhões de km², enquanto nossos vizinhos têm apenas cerca de 2,8 milhões de km². Numa análise superficial, levando em conta apenas a área total, espera-se que o país com maior território possua uma quantidade superior de espécies preservadas na forma de fósseis. Porém, até o ano de 2010, mais de 110 fósseis de diferentes espécies de dinossauros foram encontrados em terras argentinas, enquanto no território brasileiro, até o mesmo periodo, pouco mais de 20. Este cenário se mantém até os dias atuais em termos de proporção. Este texto busca explicar as razões para tamanha diferença na quantidade de espécies de dinossauros entre os dois países tendo como base as discussões iniciadas por Anelli (2010).
 
Os fósseis de dinossauros são conhecidos pelo homem há milênios: Na China, dois mil anos atrás, em rochas jurássicas, esqueletos fossilizados eram encontrados e atribuídos a dragões. Apenas no séc. XIX o ser humano passou a compreender melhor a origem e preservação dos fósseis, graças a avanços científicos importantes da Biologia e da Geologia. No Brasil, durante os períodos colonial e Imperial, e o início da República, vários relatos atribuem fósseis de vertebrados a dinossauros. Porém, sabe-se que a maioria dessas atribuições na verdade não correspondiam a dinossauros, e sim a outros grupos próximos (Crocodilomorfos, por exemplo). Além disso, muitos materiais foram enviados para fora do país, e acabaram se perdendo, não havendo como confirmar sua afinidade para com os dinossauros. O primeiro paleontólogo a realizar trabalhos mais consistentes no Brasil foi o dinamarquês Peter Wilhelm Lund, que chegou ao país em 1825 e por vinte anos procurou por fósseis no estado de Minas Gerais, sendo então considerado o pai da paleontologia brasileira.
 
Lund, porém, estava interessado em prospectar e estudar vestígios de seres humanos pré-históricos, tendo explorando rochas do período Pleistocênico, muito mais recentes do que aquelas onde se espera encontrar os dinossauros não avianos, há muito já extintos. Foi o gaúcho Llewellyn Ivor Price, durante a década de 30 do século XX que iniciou os estudos de dinossauros de forma mais profunda no Brasil. Price realizou escavações no triângulo mineiro, na região de Peirópolis, e no Rio Grande do Sul, coletando fósseis de crocodilos e dinossauros. No ano de 1970 foi descrito o primeiro dinossauro brasileiro, o Staurikosaurus pricei Colbert, 1970, a partir de fósseis coletados por Price, cujo nome o homenageava. Vale ressaltar que embora esta seja a primeira espécie descrita para o Brasil, seu material encontra-se depositado em coleções estrangeiras. Enquanto isso, na Argentina, os irmãos Florentino e Carlos Ameghino, pioneiros da paleontologia no país, realizaram escavações em rochas da Era Mesozóica, encontrando e descrevendo o primeiro fóssil de dinossauro argentino, o Argyrosaurus superbus Lydekker, 1893, no ano de 1893, 77 anos antes do Staurikosaurus pricei. Na década de 70, quando o Brasil possuía apenas um dinossauro descrito, já eram conhecidas 23 espécies argentinas.
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A esquerda Peter Wilhelm Lund e a direita Llewellyn Ivor Price, grandes paleontologos do cenário brasileiro.
Nos anos 2000, a Paleontologia ganhou destaque na mídia, graças a filmes como “Jurassic Park”, o que influenciou positivamente a quantidade de pesq uisas sobre dinossauros no Brasil. Porém, ainda assim, a proporção de fósseis encontrados na Argentina continuou sendo maior em relação à brasileira. Portanto, há outros fatores, além do tempo de pesquisa, que explicam a diferença dos números.
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A grande e comovente cena final do Jurassic Park (1993) que motivou uma nova geração de paleontólogos (fonte: http://vignette4.wikia.nocookie.net/jurassicpark/images/a/ae/T-rex-jurassic-park-1-.jpg/revision/latest?cb=20120816155226)
 
Os fósseis são encontrados majoritariamente em rochas sedimentares. Comparado à Argentina, o Brasil possui uma área aproximadamente quatro vezes maior onde existem afloramentos de rochas sedimentares da Era Mesozóica. Na mais antiga das subdivisões da Era Mesozóica, o Período Triássico, fósseis de dinossauros são raros, não apenas na América do Sul, e sim em todo mundo. Isso ocorre porque apesar das principais linhagens de dinossauros já terem aparecido neste momento, elas ainda não haviam se diversificado, o que só ocorreu de forma expressiva no período seguinte, o Jurássico. São conhecidos doze fósseis argentinos desse período, e no Brasil, seis. Levando em consideração essa baixa diversificação dos dinossauros triássicos, conclui-se que a pequena diferença nos números de fósseis entre os dois países não é suficiente para explicar a enorme variação dos números totais. Essa variação provavelmente está condicionada a quantidade de rochas aflorantes de tal idade e com registros de dinossauros, sendo no Brasil estas predominantemente limitadas ao sul do pais enquanto que na Argentina há uma maior diversidade de formações geológicas para este periodo.
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Espécime de Sacisaurus “aguardando sua descoberta”. O gênero Sacisaurus é um dos grupos de dinossauros que habitaram o sul do Brasil durante o periodo Triássico. (fonte: http://sites.ffclrp.usp.br/paleo/galeria_final/photos/foto32.jpg)
A grande irradiação dos dinossauros durante o Jurássico refletiu no registro fossilífero, pois os restos desses animais são abundantes em todo planeta em rochas desse período. Entretanto, na América do Sul, fósseis de dinossauros jurássicos não são comuns. Isso ocorre graças à imperfeição do registro fossilífero, que é condicionado pela existência de bacias sedimentares, locais cujo sedimentos se depositam e acumulam dando origem, posteriormente, as rochas sedimentares. No Brasil existem poucos locais com rochas sedimentares jurássicas, e em nenhuma delas dinossauros foram encontrados. As poucas rochas jurássicas sul americanas com chances boas de encontrar fósseis dinossauros estão na região oeste da Argentina, onde sete espécies foram descritas. Essa pequena diferença, no entanto, novamente não explica a enorme desigualdade nos números, restando então analisar as rochas do período seguinte, o Cretáceo.
 
O registro fóssil nos mostra que os dinossauros alcançaram sua máxima diversificação durante o período Cretáceo. De fato, cerca de 80% dos dinossauros conhecidos da América do Sul são cretáceos, e destes, aproximadamente 90% foram encontrados na Argentina. Isso mostra que a grande diferença entre a quantidade de fósseis dos dois países se deve, principalmente, a fatores ligados às rochas do período Cretáceo. O primeiro deles relaciona-se com a quantidade de camadas de rochas (sucessão sedimentar), muito mais espessa na Argentina do que no Brasil. Sendo assim, mesmo havendo maior área de afloramentos em nosso país, na Argentina existem mais camadas onde fósseis foram encontrados. As 24 camadas fossilíferas (28, se os icnofósseis de pegadas e ovos forem contabilizados) abrangem quase todas as idades do período Cretáceo, enquanto no Brasil, até o momento, apenas em cinco camadas foram encontrados dinossauros, sendo representados em cerca de cinco idades do Cretáceo. Com a maior diversidade de idades, há maior chance de se encontrar diferentes espécies.
 
Outro fator determinante para uma grande biodiversidade é o paleoclima. Analisando a biota terrestre atual, pode-se perceber que regiões com clima quente e úmido, como as florestas tropicais, possuem uma maior diversidade de espécies em detrimento àquelas com clima mais seco, como os desertos. Basicamente, a maior disponibilidade de recursos nesses locais (luz solar, água, entre outros) permite o desenvolvimento de um maior número de plantas, que por sua vez sustentam um número maior de animais herbívoros, e estes, de carnívoros. No passado, essa relação entre clima e biodiversidade também existia, e durante as fases do período Cretáceo argentino que ficaram preservadas nas rochas, o clima predominante era o subtropical úmido, com extensas florestas que se desenvolviam no entorno de lagos e de regiões pantanosas. A principal evidência deste cenário vem dos inúmeros fósseis de vegetais encontrados nas rochas cretáceas argentinas, e essa riqueza de recursos certamente atraía os dinossauros, que também deixaram os vestígios de sua presença.
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Reconstituição paleoambiental durante o Cretáceo na região do sudoeste paulista. Elucidando o clima árido da época e seus rios entrelaçados. (Fonte: https://pepiart.files.wordpress.com/2012/07/monte1.jpg)
Já no Brasil, as evidências sugerem que nas bacias sedimentares do Cretáceo onde foram encontrados fósseis de dinossauros (Bauru, Araripe e São Luís-Grajaú) predominava o clima semiárido, ao menos nas regiões até o momento estudadas (o que não significa que durante mais de 80 milhões de anos essas regiões possuíam apenas este tipo climático). Na Bacia Bauru, por exemplo, os fósseis de vegetais são raramente encontrados, um indicativo de que as plantas estavam presentes na região, mas sua preservação não foi favorecida pelo ambiente deposicional. Na Bacia do Araripe os fósseis de dinossauros encontrados foram depositados sobre uma laguna, propiciando um ambiente de deposição de baixa energia, que também possibilitou a preservação de espécies vegetais. Porém, muitas dessas plantas fossilizadas são indicadoras de um clima semiárido, como pro exemplo a araucariácea Brachyphyllum. Por fim, na Bacia de São Luís-Grajaú, as evidências também apontam um clima semiárido, porém a proximidade com o oceano Atlântico permitiu certa retenção de umidade, propiciando a presença de uma maior variedade de espécies vegetais que foram preservadas, como samambaias, coníferas e angiospermas, bem como de dinossauros. De fato, essas rochas contêm o maior número de fósseis de dinossauros do Brasil, porém devido a outros fatores que serão abordados na seqüência, a maioria deles não permite uma identificação precisa.
 
Outro fator crucial para a preservação de fósseis é o grau de transporte aos quais os restos são submetidos. Eventos de transporte acabam por retrabalhar o fóssil, ocasionando desarticulação e fragmentação do esqueleto, e consequentemente, perda de informações valiosas para a identificação de tais restos. Na Bacia Bauru, como comentado anteriormente, o clima era semiárido. Sendo assim, as chuvas eram concentradas em poucas estações do ano, sendo torrenciais, num tipo de regime hídrico que favorece o aparecimento de rios entrelaçados, Neste tipo de rio, a quantidade de sedimentos presente é muito maior do que aquela que o rio consegue transportar, Os sedimentos então ficam depositados no próprio canal, e a água precisa abrir novos espaços para fluir, criando uma feição entrelaçada. Nos anos seguintes, novas chuvas fazem com que o processo se repita, e a água acaba atravessando os canais em que os sedimentos com esqueletos estavam acabando por desarticulá-los de acordo com a sua densidade, fazendo com que boa parte dos ossos ficasse exposta ao intemperismo, desaparecendo gradualmente. Muitos dentes e pequenos fragmentos fossilizados são encontrados na região, pois estes são mais resistentes aos processos de transporte e diagênesis, porém essas partes muitas vezes não são suficientes para identificação de uma espécie.
 
Já na Bacia de São Luis-Grajaú, os esqueletos sofreram com um tipo de retrabalhamento diferente, ocasionado pelas forças da maré, pois no passado o local era um grande estuário, uma região onde a força das marés adentrava pelo rio, que era circundado por uma vegetação densa, capaz de prover recursos para muitas espécies de dinossauros. Porém, o efeito do vaivém das marés era grande, e os esqueletos ali depositados eram retrabalhados, sendo constantemente fragmentados, transportados e destruídos. Assim como na Bacia Bauru, apenas partes mais densas, como vértebras e dentes conseguiam suportar estes eventos sem se fragmentar, e são hoje encontradas nas rochas da região. Por fim, como foi visto, a laguna que serviu como ambiente deposicional da Bacia do Araripe propiciou um bom ambiente de deposição de sedimentos, com pouca energia de transporte. De fato, muitos fósseis de peixes e outros organismos aquáticos são encontrados em excelente estado de conservação. Os fósseis de dinossauros, porém, são raros, pois o modo de vida desses animais não estava tão diretamente relacionado com a água. Portanto, além do clima semiárido, o tipo de ambiente deposicional foi um fator crucial para que o Brasil tivesse uma menor quantidade de fósseis diagnósticos de dinossauros.
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Exemplo de dinossauro (Oxalaia quilombensis) encontrado nos depósitos da Bacia de São Luis-Grajaú mostrando o alto grau de retrabalhamento e fragmentação dos materiais da região. (Fonte: http://4.bp.blogspot.com/-5ImRSMo_z6A/Tme-JCGjQ6I/AAAAAAAAAnw/9_6B4LNW6kc/s320/Oxalaia+%25282%2529.jpg)
 
Finalmente, o último e mais importante fator determinante na diferença dos números de espécies de dinossauros entre os dois países está relacionado com o clima atual de Brasil e Argentina. Em nosso país, as bacias sedimentares onde os fósseis são encontrados estão localizadas em regiões com alta taxa de insolação e/ou elevados índices pluviométricos, além de em sua maioria as bacias hidrográficas se sobreporem quase que por completo as bacias sedimentares (por exemplo a Bacia do rio Paraná que se sobrepõem à Bacia Sedimentar do Paraná). Tal situação favorece a ação do intemperismo, tanto o físico, responsável pela dilatação e contração térmica, quanto o químico, onde a água proveniente das chuvas reage com os elementos químicos que compõe a rocha e altera sua composição, transformando-a em solo, juntamente com os fósseis nela preservados. Devido a isso, a maior parte das camadas de rochas sedimentares brasileiras está coberta por estratos de solo de grande espessura, o que impede que os paleontólogos tenham acesso aos fósseis nela contidos. Apenas em regiões onde a rocha foi cortada no intuito de abrir espaço para a construção de rodovias e ferrovias, ou então em margens de rios expostas à erosão por eles causada, é possível observar o afloramento das rochas sedimentares e dos fósseis, porém essas áreas representam somente uma pequena parcela do total de rochas com potencial fossilífero.
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Ilustrando o alto indice pluviométrico no Brasil, inclusive havendo regiões com tempestades tropicais. (Fonte: https://eco4u.files.wordpress.com/2011/06/tempestade.jpg)
 
Já na Argentina, o cenário é completamente oposto, pois diversos fatores, como a Corrente fria de Humboldt, a presença da Cordilheira dos Andes, entre outros, tornam o clima mais seco nas áreas em que são encontradas rochas sedimentares, diminuindo os efeitos do intemperismo, fazendo com que a camada de solo seja muito fina, impossibilitando o estabelecimento de uma cobertura vegetal e expondo a maioria das rochas e, consequentemente, dos fósseis, assim como acontece em outras regiões do planeta com condições semelhantes, como, por exemplo, o deserto de Gobi, na Mongólia e o meio oeste americano, notáveis pela imensa quantidade dos mais variados fósseis.
 
Em suma, os dois últimos fatores abordados – o grau de retrabalhamento dos fósseis brasileiros, e a pequena disponibilidade de rochas sedimentares expostas – são apontados como fatores responsáveis pela grande discrepância dos números de fósseis de dinossauros entre Brasil e Argentina. Entretanto, locais ainda pouco explorados em nosso país, principalmente nas regiões Norte, Nordeste e Centro Oeste, podem futuramente mostrar um cenário diferente, onde as condições necessárias para a formação e preservação dos fósseis sejam melhores, tornando possível diminuir essa diferença no número de espécies encontradas. Além disso, evidências provenientes da paleoicnologia apontam uma diversidade muito maior de dinossauros para o território brasileiro, como as ocorrências de pegadas de Ornithischia enquanto ainda não registro de materiais fósseis corporais destes animais.
Referências bibliográficas:
ANELLI, L. E. O guia completo dos Dinossauros do Brasil. 1 ed. São Paulo: Peirópolis, 2010. 222 p.