Como aprendi a parar de me preocupar e passei a amar o CO2
“HELLO, DIMITRI.”
A guerra fria contra o aquecimento global assistiu nesta terça-feira a um duelo entre as superpotências que faz lembrar o clássico “Dr. Fantástico”, de Stanley Kubrick. De um lado, os Estados Unidos, liderados por um presidente bonzinho, mas cercado de filhos da puta gente astuciosa e premido pelas circunstâncias a fazer o pior possível. Do outro, a Rússia, dando uma lição de malemolência, brilhantismo político e mau-caratismo no rival. Cada um do seu jeito, e meio sem querer, os dois países acabam convergindo para um único fim: garantir um futuro sombrio para a humanidade.
Para quem não se lembra do filme de Kubrick, a trama se passa nos anos 1960. Um general americano enlouquece e ordena um ataque nuclear à União Soviética. O presidente dos EUA (Peter Sellers, impagável), reúne seu alto comando e o embaixador russo na ficcional Sala de Guerra da Casa Branca e descobre que ele mesmo havia assinado, sem saber, o protocolo para ataques do tipo. Ele tenta uma ligação pelo telefone vermelho com o premiê soviético, que no entanto está mais interessado em vodca e mulheres do que nos altos destinos da humanidade. O embaixador, que até então vinha tentando espionar as entranhas do inimigo, revela que qualquer ataque ao território soviético dispararia a temida Arma do Juízo Final, que os falcões de Washington achavam que fosse mentira. Spoiler: o ataque acontece.
A corrida vista hoje entre EUA e Rússia teve declaradamente um fim mais nobre: evitar que as mudanças climáticas descontroladas acabem com a civilização como a conhecemos. Os Estados Unidos, seguidos pela Federação Russa, registraram junto à Convenção do Clima da ONU suas propostas de Contribuição Nacionalmente Determinada, ou INDC. Trata-se de uma carta de intenções que todos os países-membros das Nações Unidas foram convidados a enviar contando qual será sua contribuição para evitar o aquecimento global perigoso no período 2020-2030, quando deverá vigorar o acordo do clima a ser assinado em Paris no fim deste ano. As duas metas são fruto de uma fantástica arquitetura política. E as duas são receitas seguras para disparar antes do fim deste século uma espécie de Arma do Juízo Final – a bomba de CO2.
A meta americana consiste em reduzir as emissões do país entre 26% e 28% até 2025 em relação aos níveis de 2005. O país é o principal responsável pelo aquecimento global observado hoje e a principal economia do mundo; sua redução em 2025 teria de ser de 132% abaixo dos níveis de 1990 para ser justa com o mundo, segundo a Calculadora de Referência de Equidade Climática. Ainda mais considerando que o país aumentou suas emissões entre 1990 e 2005 de 6,2 bilhões para 7,3 bilhões de toneladas de CO2 por ano, usar a segunda data como referência para a meta é quase um crime de guerra. Em 2025, se tudo correr como previsto na meta, os EUA estarão emitindo mais de 5 bilhões de toneladas por ano, ou 3,3 vezes o que o Brasil emite hoje.
Isso não significa que os americanos estejam agindo de má-fé com sua INDC. Ao contrário: o presidente Barack Obama precisou rebolar para aprová-la, já que os falcões do Congresso americano, como o Estado-Maior do filme de Kubrick, acham até hoje que a Arma do Juízo Final de CO2 é uma “fraude” montada pelos “comunistas” para “eliminar os empregos na América”. Em seu primeiro mandato, Obama tentou (sem tentar de verdade) e não conseguiu aprovar uma lei ampla de clima. Desta vez, resolveu passar por cima dos republicanos céticos do clima e assumiu compromissos de redução que podem ser implementados apenas com regulações do Executivo, sem necessidade de apoio do Congresso. Daria para fazer um tanto mais, mas não muito mais do que isso. Infelizmente, os EUA são uma “democracia”, e democracia tem dessas coisas: 40 senadores podem decidir ferrar com 7 bilhões de pessoas. Viva a democracia.
Já a Rússia, que só alguém bêbado de vodca poderia chamar de democracia, apresentou uma INDC de um cinismo extraordinário, mas possivelmente mais esperta que a dos americanos. Os russos se propõem a cortar de 25% a 30% de suas emissões de CO2 em relação a 1990, mas afirmam que isso está “sujeito à máxima capacidade de absorção possível das florestas”. Em português claro: não vamos cortar um litro de óleo sequer, só deixaremos que nossas imensas florestas boreais cresçam e sequestrem carbono.
Assim como os EUA, os russos praticam uma tremenda filhadaputice manipulam as datas-base de acordo com o que lhes interessa. Em 1990, o país emitia quase 3,5 bilhões de toneladas de CO2. Em 2000, as emissões haviam despencado mais de 50%, para cerca de 2 bilhões de toneladas. O que aconteceu? Bem, a Guerra Fria acabou e a URSS quebrou. Com a depressão econômica veio a queda nas emissões de carbono. Portanto, ao dizer que vão chegar em 2030 emitindo 30% a menos do que em 1990, os russos estão realmente querendo dizer que vão aumentar suas emissões para quase 3 bilhões de toneladas/ano, quando deveriam reduzi-las a 500 milhões se quisessem mesmo evitar um aquecimento global maior do que 2 graus Celsius neste século.
A lógica política desta submissão pífia neste momento pode estar na Ucrânia: o vilão de filme de James Bond que comanda a Mãe Rússia anda precisando pagar de bom moço para aliviar a imagem desgastada com o massacre que promove na Ucrânia e com o “misterioso” assassinato de seu principal adversário político. Além disso, com o petróleo a US$ 50, a Rússia pode estar querendo fazer um “hedge” e negociar alguma facilidade para si no futuro. Daí o sentido daquele que para mim é o principal trecho da INDC russa: “No entanto, a decisão final da Federação Russa sobre a INDC (…) será tomada de acordo com o resultado do processo de negociação em curso no ano de 2015 (…)” Como bons políticos, e ao contrário dos americanos, os russos deixaram uma porta aberta para barganhar. Dificilmente, porém, larga o suficiente para evitar que a bomba de CO2 caia sobre as nossas cabeças neste século.
No filme de Kubrick, o impasse é resolvido pelo Dr. Strangelove (também vivido por Peter Sellers), um cientista nazista emigrado que aconselha o presidente Merkin Muffley a encarar o apocalipse iminente à la Marta Suplicy: relaxe e goze. A gente constrói uns abrigos, enche de mulher e uísque e fica de boa.
Talvez seja mesmo a única coisa a fazer diante do atual teatro de operações da política internacional de clima.
O impacto ambiental da lista de Janot
NO PRIMEIRO SEMESTRE DE 2011, quando o ministro Edison Lobão (Minas e Energia) prometeu para junho a licença de instalação da hidrelétrica de Belo Monte, várias sobrancelhas se levantaram. O Ibama acabara de soltar um relatório dizendo que a maioria 40 condicionantes da licença prévia da usina não estavam nem no meio do caminho de ser cumpridas. Pelo rito normal, não haveria hipótese de Lobão prometer a licença, muito menos de marcar uma data. Como sabemos, porém, o licenciamento aconteceu, no prazo previsto. As condicionantes, que já se arrastavam desde a licença prévia, obviamente não foram cumpridas, mas Belo Monte aconteceu de qualquer forma. Na última sexta-feira, o Brasil começou a vislumbrar por quê: Lobão aparentemente tinha bons motivos para botar pressão na obra. Dez milhões de bons motivos, para ser preciso.
A denúncia dos delatores da Lava Jato de que o então ministro do PMDB, partido que controla o setor elétrico no país, havia levado R$ 10 milhões em propina na obra de Belo Monte, de um total de R$ 100 milhões pagos apenas pela Camargo, tornou explícito algo que até os cascudos dos pedrais do rio Xingu sempre souberam, mas que até agora ninguém nunca teve como provar: grandes obras desse tipo, que violam a legislação, o meio ambiente, a ordem econômica, os direitos humanos e o bom senso, são montadas para gerar caixa antes de gerar energia.
Ressalte-se que Lobão está sendo apenas investigado neste momento: delações premiadas são, afinal, obras de criminosos confessos, e contradições entre depoimentos de delatores têm emergido na Lava Jato. Mas, mesmo que se revelem uma fantasia, as declarações de Dalton Avancini, executivo da Camargo Corrêa e suposto pagador da propina, são tão verossímeis que colocam holofotes sobre licenciamentos feitos a patrola e toque de caixa para projetos de baixa viabilidade econômica e alto custo socioambiental, cuja pressa não encontre justificativa na realidade.
A prisão dos empreiteiros envolvidos no propinoduto da Petrobras, claro, deixou todas as obras de infraestrutura no Brasil sob suspeita, ao mostrar o que move licitações, concessões e licenças. A lista de agentes públicos entregue ao STF pelo procurador-geral da República, Rodrigo Janot, apenas amarra as pontas. E pode fazer um favor imenso ao meio ambiente no Brasil.
A empreiteira Camargo Corrêa, cujo presidente encontra-se em cana, é também uma das favoritas para construir a nova megapolêmica hidrelétrica do Brasil: São Luiz do Tapajós, em Itaituba (PA), que já teve seu calendário de licitação definido antes mesmo dos estudos de impacto ambiental. A Camargo fez, com grana da Finep, o inventário do potencial da bacia do Tapajós, e é natural que entre na “disputa” para a obra. “Disputa” entre aspas, porque agora sabemos também, graças ao juiz Sérgio Moro, que não impera exatamente um modelo de livre concorrência entre empreiteiras. Com o Belo Monte de merda que a construtora jogou no ventilador, São Luiz e as outras seis ou sete usinas rio acima no Tapajós e no Jamanxim podem ganhar um bem-vindo freio de arrumação. E é bom que seja assim, porque o governo pretende empatar algo em torno de R$ 30 bilhões no projeto, que ainda corre o risco de ficar sem água para gerar energia durante seu tempo de operação.
As denúncias sobre o canal de derivação de recursos públicos construído em Belo Monte somam-se a aflições outras do PAC, o Programa de Aceleração do Correntão. O ministro da Fazenda, Joaquim Levy, já mandou avisar que acabou a mandracaria fiscal do programa, pela qual despesas com a rubrica PAC eram deixadas imunes a contingenciamento. A operação de multiplicação de recursos do Tesouro repassados ao BNDES e oferecidos às empreiteiras a juros de pai para filho, que todo mundo sabia que era insustentável, pode ter encontrado em Levy seu limite. Dado o contexto de barata-voa em Brasília, o ministro poderá aproveitar (e estou especulando aqui) para tesourar parte do avanço sobre a Amazônia, projetado em R$ 212 bilhões em obras públicas e privadas.
O outro lado dessa história é que a chance de o governo Dilma se engajar de forma robusta no esforço político de mitigar a mudança climática, na preparação para a conferência de Paris, cai a níveis muito próximos (mas mesmo assim diferentes) de zero. Recessão, inflação, aperto fiscal e débâcle política interna são a receita ideal para a inação no clima, mesmo que agir signifique uma oportunidade de retomar o crescimento gerando empregos.
A esperança é que Dilma perceba que seu governo precisa desesperadamente de boas notícias e que um choque de economia verde pode provê-las. Mas, como diz o ditado, de onde menos se espera é que não sai nada, mesmo.
Mostre o amor – mas antes mande o carvão
A IMPRENSA BRITÂNICA traz hoje uma história comovente: os três principais partidos políticos do Reino Unido, os governistas Liberal (Thories) e Liberal-Democrata (Lib-Dem) e o oposicionista Trabalhista (Labour), assinaram um compromisso conjunto para transformar o combate à mudança climática mais uma vez numa política de Estado. Juntos, os adversários se comprometeram a buscar um acordo climático legalmente vinculante e que limite o aquecimento global a 2 graus Celsius; a trabalhar para ajustar o orçamento de carbono das ilhas britânicas, uma instituição do governo trabalhista, à Lei de Mudança Climática que os Thories fizeram de tudo para enfraquecer; e a banir para sempre das terras de Sua Majestade qualquer usina termelétrica a carvão que não sequestre o próprio carbono – o que os ingleses chamam de “unabated coal”.
O movimento, batizado de Green Alliance, é incomum porque une o premiê David Cameron, que está num vale de popularidade, o vice-premiê Nick Clegg, um ex-darling da esquerda cujo pragmatismo em se juntar a Cameron talvez lhe tenha custado a carreira, e o possível futuro primeiro-ministro, o trabalhista Ed Miliband. Mal comparando, seria como de Dilma Rousseff, Marina Silva e Aécio Neves se juntassem para pedir o fim das hidrelétricas na Amazônia (deixo ao leitor a tarefa de dizer quem é esquerda e quem é direita neste caso). Ele vem na esteira de uma campanha chamada Show the Love (“Mostre o Amor”), movida por uma coalizão de ONGs britânicas para celebrar o Dia dos Namorados, que no hemisfério Norte é hoje. A campanha consiste em chamar atenção da população para lugares que as pessoas amam e que estão ameaçados pela mudança do clima. Uma de suas principais peças é um vídeo fofo no qual personalidades como o ator Stephen Fry recitam um soneto de Shakespeare.
A aliança suprapartidádia britânica deve ser comemorada, já que o Reino Unido tem sido tradicionalmente uma das principais vozes a defender o aumento de ambição no combate ao aquecimento global. Essa liderança se perdeu entre os governos de Gordon Brown e David Cameron, e fez muita falta. Com os bretões querendo mostrar serviço, seus vizinhos e eternos rivais gauleses ganham um respaldo importante para pressionar por um acordo no fim do ano em Paris.
Acontece que em política nada vem de graça. A promessa dos líderes partidários do Reino Unido de se livrar do carvão ocorre num contexto em que a chapa desse combustível fóssil já estava esquentando de qualquer forma. Como quase tudo em política, o anúncio só foi feito porque não traz custo nenhum a nenhum dos três.
Há décadas a Europa vem fazendo movimentos para se livrar do carvão mineral. Primeiro por causa da decadência da mineração no Reino Unido, onde as camadas sedimentares do Carbonífero vêm sendo exploradas intensamente desde que James Watt inventou sua máquina a vapor. O carvão causa chuva ácida, o smog que matou gente a rodo em Londres no século passado e o aquecimento da Terra. Os europeus são líderes em tecnologias de energia renovável. Têm desde os anos 1990 um programa de comércio de emissões por termelétricas (sim, o Protocolo de Kyoto rendeu frutos interessantes). Para eles, estava claro que havia limites ao futuro do carvão.
Isso foi acelerado com a tecnologia do fraturamento hidráulico para extrair gás de folhelhos nos Estados Unidos. A partir de 2005 ou 2006, o agora famoso “shale gas” (que muita gente ainda insiste em traduzir como “gás de xisto”) fez o preço do gás natura despencar nos EUA. O resultado foi a substituição do carvão na geração de energia, por razões puramente mercadológicas. A participação do carvão caiu de quase 40% para 24% na matriz elétrica americana. E tocou o sino da morte para esse mineral que tantas alegrias e tristezas nos deu desde o século 18: Barack Obama, amparado pelo “shale gas”, decidiu regular as emissões de usinas térmicas nos EUA para desestimular a entrada de novas usinas a carvão na rede.
O carvão mineral foi virando um mico para investidores. Os excedentes dos EUA e da Europa começaram a ir para a Ásia, em especial Índia e China. Mas aí foi a vez de os chineses botarem suas turbinas eólicas e seus painéis solares no mercado, anunciando um compromisso de pico e declínio de suas emissões em 2030. A China ainda responderá pela fatia do leão das 9 bilhões de toneladas de carvão que serão consumidas no planeta até 2019, segundo a Agência Internacional de Energia. Mas a partir da próxima década a situação desse combustível tende a mudar. Sinal disso é que o fundo soberano da Noruega, montado com dinheiro de petróleo, já anunciou desinvestimento em 32 mineradoras de carvão.
É claro que as potências carvoeiras não vão deixar isso barato e já estão dando um jeito de resolver o problema delas – mandando os ativos encalhados para o Terceiro Mundo, como sempre. Nas últimas semanas, ambientalistas na Europa descobriram um plano infalível na UE para exportar tecnologia de carvão para países africanos (link aqui tão logo eu o encontre). Do jeito que anda, o Brasil daqui a pouco estará na lista.
O governo brasileiro, como se sabe, tem apostado em termelétricas a gás e óleo para tentar mitigar o risco de racionamento causado pela falta de água nos reservatórios das hidrelétricas. Do ponto de vista lógico, a prática tem tanto sentido quanto o costume sul-africano de estuprar uma virgem para curar a infecção por HIV.
No impulso de “diversificar a matriz”, o novo mantra da eletrocracia nacional para garantir “segurança energética”, o governo deu para trás na promessa de fechar o Brasil ao carvão mineral. Aumentou preços mínimos para permitir que o combustível se tornasse competitivo nos leilões e deu subsídios para permitir que os projetos de carvão se viabilizassem. Com cada vez mais carvão barato e indesejado circulando pelo mundo e cada vez menos água nos reservatórios das hidrelétricas brasileiras, a tendência é que o carvão cresça e se multipllique na matriz nacional, como sugerem Carlos Rittl e Ricardo Baitelo neste artigo.
Para evitar que isso aconteça é preciso regulação. Uma meta para emissões do setor de energia em Paris, aliada a um imposto sobre carbono, ajudaria a direcionar a tal diversificação para o lado das fontes renováveis. O Brasil não comemora o dia dos namorados em fevereiro – nem precisa do carvão que podem querer nos empurrar de presente nesta data tão amorosa.
O racionamento e suas metáforas
O Canal Energia traz hoje uma notícia sobre a avaliação da consultoria PSR de que a “afluência” em março e abril terá de ser equivalente a 100% da média para evitar que o risco de racionamento de energia elétrica no país chegue também a 100%. “Afluência”, no jargão dos barrageiros, significa água chegando dos rios nos reservatórios das usinas hidrelétricas no Sudeste e no Centro-Oeste, que são as caixas d’água do país. Salvo em hipótese de intervenção divina, a chance de que isso ocorra é 0%. Como Deus não existe (algo que é facilmente demonstrável pela existência do Estado Islâmico e do Eduardo Cunha), em algum momento entre o alalaô e o coelhinho da Páscoa o ministro Eduardo Braga aparecerá em rede nacional de rádio e televisão anunciando que o gato caiu do telhado.
A essa altura, e espero que antes de primeiro de abril, o governo paulista também já terá sido forçado a vir a público dizer que, er…, vejam, vamos passar mesmo cinco dias sem e dois com água. O epicentro da indústria e do agronegócio nacionais estará, assim, privado de dois insumos vitais, cuja conservação tem sido tratada, por essa mesma indústria e por esse mesmo agronegócio, como uma “externalidade”. Num país que já estaria em crescimento zero sem essa dupla pancada, o efeito de mais essa crise sobre inflação, empregos, segurança e estabilidade política pode ser apenas imaginado. Eu é que não queria ter cargo eletivo em 2015.
Para que as vazões dos rios que alimentam os reservatórios ficassem na média em 2015, a estação chuvosa que começou em outubro teria de ter tido precipitações muito acima da média. Isso porque nem toda a água que cai do céu vai para os rios; parte dela é absorvida pelos solos, que estão muito secos: lembre-se de que desde 2012 o Centro-Sul vem recebendo menos água do que deveria, o que fez o governo acionar termelétricas fósseis a rodo e de forma permanente para tentar evitar o apagão inevitável, torcendo por um milagre. Numa conta feita pelo climatologista Carlos Nobre para o Sistema Cantareira, que poderia ser mais ou menos generalizada para o Sudeste, a precipitação teria de ser pelo menos 60% maior do que a média entre fevereiro e abril para que os reservatórios pudessem chegar ao fim de 2015 com o volume morto minimamente reencarnado.
Até aqui, porém, Giorgio, nada no comportamento desta triste temporada nos permite antever o dilúvio manauara que o amazonense* Eduardo Braga e seus eletrocratas esperam que caia nas latitudes mais altas do país. Como indicam dados de um assustador relatório do Cemaden (Centro de Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais) sobre a situação de São Paulo, as chuvas de outubro a dezembro foram 40% menores que a média histórica. Janeiro foi seco, apesar das enchentes em São Paulo.
Muita gente tem corrido a apontar o dedo para Dilma e Alckmin: dizem que os dois são desonestos, mentirosos, péssimos planejadores, empurraram o racionamento com a barriga para poder faturar a eleição e negaram-se a adiantar um programa de economia de energia que poderia ou não ter-lhes custado os novos mandatos, mas que teria poupado o país de uma conta que virá salgada em 2015 porque será cobrada toda à vista. Tudo isso é verdade, e espero que PT e PSDB, para usar a frase célebre do meu amigo Zé Dirceu, “apanhem nas ruas e nas urnas”. Só que isso não é toda a verdade. O que o apagão-secadão de 2015 traduz é uma incapacidade dos governos de lidar com uma nova realidade climática no país. E também simboliza, numa escala menor, a opção errada que o mundo fez ao não agir contra as mudanças climáticas enquanto o custo da ação era manejável.
O ERRO É MAIS EMBAIXO
Dilma e Alckmin foram induzidos a erro por uma questão de “mindset”, por assim dizer. Ocorre que o planejamento energético e de abastecimento no Brasil segue uma tradição de gerações de hidrólogos que professam a fé no chamado estado estacionário de vazão. Trata-se de um conhecimento empírico segundo o qual tudo aquilo que se observou no passado também se aplica ao presente e ao futuro. Tirando uma seca extrema ou outra, que se repetem de tantos em tantos anos, ou um ano de extremo de chuva ou outro, que também se repetem de tantos em tantos anos, os rios brasileiros pulsam com constância quase matemática, registrada em décadas e décadas de observações meticulosas de réguas de nível, guardadas em antigos alfarrábios. O clima, para essa escola de pensamento, é algo dado e constante. Com oscilações, mas constante. É por esse credo que rezam alguns hidrólogos do Centro de Pesquisas em Energia Elétrica da Eletrobras, interlocutores privilegiados do pessoal que decide as coisas no governo.
O erro dessa turma tem sido ignorar que o próprio fundamento sobre o qual suas observações se baseiam – a constância do clima – não vale mais. As mudanças climáticas, que ainda são objeto de controvérsia entre pesquisadores do Cepel, mandaram o estado estacionário para o vinagre. Os planejadores de energia não enxergaram isso porque as lentes pelas quais eles olham o mundo, os rios e a chuva não foram feitas para detectar os tons em geral sutis da mudança climática. Faltou-lhes preparo epistemológico. Daí nunca terem dado bola para os alertas do IPCC, por exemplo – que, justiça seja feita, também têm muita incerteza sobre o total de precipitação no Brasil ao longo deste século, embora o sinal de temperatura modelado e verificado nas últimas décadas seja inequívoco.
A incerteza agora é o novo normal. Isso é uma péssima notícia para tomadores de decisão, mas é preciso quantificá-la e incluí-la no planejamento. “Não gosto de falar em segurança hídrica, porque dá ideia de previsibilidade. Prefiro falar em gestão de risco”, diz o hidrólogo Francisco Assis, da Universidade Federal do Ceará.
Talvez o drama que aflorará no Brasil nas próximas semanas e meses ensine alguma coisa aos formuladores de políticas públicas sobre a realidade da mudança climática e a necessidade de gerenciar riscos. A proposta de financiar a compra de painéis solares para geração doméstica de energia é uma dessas boas medidas que chegam tarde, se chegarem. Mas antes tarde do que nunca. O problema é se ano que vem a chuva voltar a normalizar e a lição do apagão-secadão de 2015 for esquecida, como foi a do apagão de 2001, sem uma mudança no software mental dos planejadores de água e energia.
* Sim, manauaras, eu sei que ele é nascido no Pará. Mas ele é problema de vocês.
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PS: Depois de um longo período de inatividade, este blog retorna. Não sei com que frequência ainda, mas certamente maior do que a de 2014.
Um cinco-estrelas na Antártida
COMEÇOU ONTEM em Brasília algo que pode ser descrito sem exagero como a maior reunião de condomínio do mundo: os 61 países que administram os 13 milhões de quilômetros quadrados do continente antártico, única porção de terras no mundo ocupada sem derramamento de sangue (humano), juntaram-se para uma conferência de dez dias. Nesse período, diplomatas, burocratas de governo, militares e cientistas debaterão questões que vão de normas de preservação ambiental até o impacto do crescente turismo antártico sobre os pinguins.
É a primeira vez que Brasília sedia uma reunião do ATCM (sigla em inglês para Conselho Consultivo do Tratado da Antártida) desde a criação do secretariado do tratado, no começo da década passada. Sem muito o que exibir à guisa de cartão de visitas, o Brasil apostou no futuro: está tentando convencer os vizinhos do prédio de como ficará sensacional a reforma que está fazendo no seu apartamento. No caso, de como ficará linda a nova Estação Antártica Comandante Ferraz, principal instalação brasileira no continente, prevista para entrar em operação em 2016.
A Marinha, responsável pela logística do Programa Antártico Brasileiro, tratou de organizar um showroom da nova estação. E showroom é a palavra: uma exibição no saguão do Centro de Convenções Brasil-21 (o mesmo que recebeu Barack Obama), com direito a modeletes de tailleur guiando os (rarefeitos) visitantes e a uma visita virtual à nova estação, numa projeção em várias telas na qual o espectador se sente realmente no local. Um desavisado realmente poderia achar que está numa propaganda para investidores de um projeto de novo hotel cinco estrelas em fase de captação de recursos.
No Autocad, a Ferraz do futuro é de fato um espetáculo: módulos compridos assentados sobre pilotis imensos, 15 saídas independentes para facilitar a evacuação em caso de incêndio, geradores eólicos fornecendo energia. Me incomodou o fato de a visita virtual começar pelo refeitório e terminar pelos laboratórios – afinal, é um programa científico, ou não? Mas isso sou eu. O projeto, feito por um grupo de jovens arquitetos de Curitiba, é classe mundial e teve pitacos à vontade da comunidade científica, que costuma queixar-se de nunca ser ouvida pelo pessoal da Marinha. Se houve um saldo positivo no trágico incêndio que destruiu a estação em fevereiro de 2012 e matou duas pessoas, este foi a mobilização criada no Programa Antártico em torno da reconstrução. A retomada uniu as duas culturas que convivem em sobreposição de estados no Proantar sem nunca se misturarem de verdade, os acadêmicos e os militares. Foi bonito de ver.
Acontece que uma série de dúvidas começaram a pairar sobre o futuro da estação. A mais imediata é se o calendário será cumprido ou se Ferraz está destinada ser construção e já ruína, a exemplo do Veículo Lançador de Satélites. As obras deveriam começar no próximo verão, mas a licitação de R$ 145 milhões aberta pela Marinha terminou sem interessados, como revelou em fevereiro Giuliana Miranda na Folha de S.Paulo. Fontes ligadas ao projeto me apontaram em março que a razão alegada pelas empresas foi o preço baixo do metro quadrado, US$ 12 mil. Projetos na Antártida, devido aos riscos logísticos, costumam custar bem mais do que isso — até US$ 20 mil o metro quadrado. Uma nova licitação, internacional, deverá ser aberta pela Secretaria da Comissão Interministerial para os Recursos do Mar, que pilota o Proantar. O custo estimado do novo projeto passa da R$ 175 milhões. Por mais que os militares sejam organizados, eles terão de comer um dobrado para vencer o cipoal burocrático brasileiro e botar a licitação na rua (com todos os quilos de certidões e traduções de certidões que um processo desse tipo exige) até junho. Depois disso, como é ano eleitoral, o governo fica proibido de celebrar contratos. E aí leia mais em 2015.
Mas espere um minuto: R$ 175 milhões, você disse? E haverá dinheiro? Outra dúvida fundamental. Ano que vem, como sabemos, será ano de ajuste fiscal, e do brabo. Não é difícil imaginar uma situação na qual programas científicos e de defesa sejam mantidos respirando por aparelhos. O Programa Antártico pertence a essas duas infelizes categorias que costumam ser alvejadas pelo Planejamento no primeiro corte. Veja o caso do VLS-1, que também passou por um incêndio (muito maior e muito mais custoso em vidas que o de Ferraz) em 2003 e até hoje, uma década depois, não foi finalizado. Nesse ínterim, o design do foguete ficou obsoleto e o Ministério da Ciência e Tecnologia tentou bypassar a Aeronáutica, que desenvolvia o VLS, apostando suas fichas (e sua grana) num desastrado projeto de cooperação com a Ucrânia, aquela província rebelde da Rússia que está para ser reincorporada. O VLS, programa de importância estratégica inquestionável, é construção e já ruína, como diria Caetano. Ferraz corre o mesmo risco?
Diante disso, alguns membros do Proantar já começam a se perguntar se não seria melhor baixar a bola da nova estação. Uma ideia seria manter no sítio de Ferraz uma estação-puxadinho, na forma dos Módulos Antárticos Emergenciais (MAE), produzidos pela empresa canadense Weatherhaven. Os MAE são contêineres mobiliados montados no verão de 2013 e que começaram neste verão a receber pesquisadores. Hoje eles estão montados no antigo heliponto de Ferraz, que sobreviveu ao incêndio. Eu dormi uma noite neles em março, a convite do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. Eles são assim:
E são razoavelmente decentes por dentro também:
Considerando que algo entre 70% e 90% dos projetos de pesquisa do Proantar acontecem fora da estação, em navios, acampamentos ou nos módulos Criosfera instalados no interior do continente, em tese seria possível manter a pesquisa funcionando nos MAE indefinidamente. A ciência polar brasileira ficou muito maior que Ferraz. Os módulos foram feitos para durar cinco anos, mas a engenheira Nathália Guimarães, da Weatherhaven, que esteve comigo na estação em março, disse que a experiência tem demonstrado que eles duram o dobro. O programa polar canadense mantém uma estação no Ártico feita de módulos Weatherheaven sem a menor crise. Será que nós precisamos de um cinco-estrelas quando os puxadinhos resolvem? Não seria mais sábio usar essa grana, ou o pedaço dela que vier, para reformar navios, comprar aviões novos (os Hércules da FAB estão pedindo penico) ou até montar uma segunda base em outro lugar?
Se o Proantar fosse um programa 100% civil e Ferraz fosse uma estação na qual meia dúzia de cientistas passassem três meses por ano e fossem embora depois, definitivamente não haveria necessidade de gastar tanto por tão pouca ciência. Acontece que a natureza do programa brasileiro demanda que dez militares passem o ano inteiro vivendo ali. E, companheiro, um ano com banheiros de cortina de lona e sem espaços privados deve ser dureza. A Marinha também acha que qualquer coisa menor que uma base permanente “de alvenaria” em Ferraz fragilizaria o Brasil geopoliticamente diante dos demais membros do Tratado da Antártida. O argumento faz sentido, mas acho que vergonha maior seria bater o bumbo que estamos batendo no ATCM e não conseguirmos cumprir a promessa da nova estação depois. O que será que os contribuintes têm a dizer a esse respeito?
Salvamos mesmo as baleias?
A NOTÍCIA DO ANO na área ambiental veio ontem de Haia: a Corte Internacional de Justiça deu ganho de causa à Austrália numa ação movida em 2010 que visava proibir a caça “científica” de baleias que o Japão pratica anualmente nos mares antárticos. A decisão, publicada ontem no site da corte, determina a suspensão imediata das atividades baleeiras japonesas no Oceano Austral. É um documento de 22 páginas de juridiquês denso, que diz basicamente que os resultados da tal ciência letal são xexelentos demais para justificar a morte de centenas de baleias por ano. Um dos argumentos dos magistrados é matador. Poderia ser resumido assim: “Ô, seu Japão, se vocês estão só fazendo pesquisa, por que mesmo levam um navio-fábrica para picar e embalar as baleias no próprio local dos ‘estudos’ e deixá-las prontinhas para o comércio?” Perdeu, mermão. A demanda australiana foi considerada procedente por 12 votos a 4. O primeiro juiz a apresentar voto contrário foi um tal Hisashi Owada. Mera coincidência.
Como não são malucos de descumprir decisões judiciais, os japoneses baixaram a cabeça e disseram que vão parar o programa, que em 18 anos já matou 6.700 baleias minke, mais um monte de baleias-fin, jubartes e cachalotes num lugar que, tecnicamente, é um santuário para baleias.
Então é isso? Enfim salvamos as baleias? Podemos agora por favor discutir coisas mais importantes, como a guerra na Síria, a ocupação da Ucrânia e a CPI da Petrobras? Os australianos podem ser elevados à categoria de heróis do meio ambiente por sua coragem de processar os japas malvados e acabar com uma das violações mais hipócritas do direito internacional de que se tem notícia?
Não necessariamente. Primeiro, porque a Austrália não entrou na CIJ contra o Japão porque gosta de baleias, mas sim porque há grossos interesses nacionais envolvidos, como lembra meu amigo Reinaldo José Lopes numa boa análise hoje na Folha de S.Paulo. Um deles é a clamada soberania nacional australiana sobre parte do Oceano Austral. A Austrália acha (mas só ela) que aquele pedaço de mar é sua zona econômica exclusiva, embora todas as pretensões territoriais sobre a Antártida estejam congeladas (doh!) até 2048 por um tratado internacional. Também importante é a conservação de estoques de jubartes que mantêm o turismo de observação na Austrália e que usam o Oceano Austral todo ano como zona de alimentação. E o ganho de poder e prestígio da Comissão Internacional da Baleia (CIB), que se reúne em setembro na Eslovênia.
Depois, porque o fim da caça científica pode produzir o efeito oposto do que os países conservacionistas desejam: ela pode ser o gatilho que faltava para a retomada da caça comercial de baleias, suspensa por uma moratória decretada pela comissão em 1986.
A CIB é dividida entre países caçadores (Japão, Noruega, Islândia e quem mais eles conseguem cooptar) e conservacionistas (basicamente o resto do mundo, mas com forte liderança de EUA, Austrália e Nova Zelândia). Seu objetivo primário inicialmente nunca foi proteger baleias, mas evitar o cenário de “free for all” da caça comercial que levou esse grupo de cetáceos quase à extinção — o que iria contra os interesses dos próprios caçadores. A moratória foi criada para permitir aos estoques se recuperarem para uma eventual reabertura, em moldes “sustentáveis”. Para isso criou-se um instrumento legal chamado RMS, ou esquema de manejo revisado, que permite a caça, dentro de limites e com uma série de salvaguardas.
Hoje a caça comercial só é praticada abertamente pela Noruega e pela Islândia. Esses países se reservaram o direito de ignorar a moratória em suas águas territoriais. Indígenas do Ártico têm cotas anuais de caça na Rússia, no Alasca, no Canadá e na Groenlândia, por exemplo. A única caça praticada internacionalmente e em larga escala era justamente a japonesa na Antártida, sob a (agora é oficial) desculpinha barata de “pesquisa científica”.
Os conservacionistas sempre exigiram como precondição para a reabertura da caça a aprovação do RMS (a que o Japão sempre se opôs, porque não queria ser regulado nem monitorado) e a suspensão da caça científica japonesa. Em 2010, a CIB chegou a debater uma proposta de reabertura, com cotas menores para o Japão e a vedação de qualquer atividade baleeira nos santuários do Pacífico Sul, do Índico e do Oceano Austral. Com a decisão da corte de Haia, acaba o argumento. E o Japão certamente levará essa cartada às negociações em setembro. Para o Brasil, que tenta desde o começo da década passada emplacar um santuário no Altântico Sul, isso pode significar novo adiamento nos planos.
O fim forçado do programa “científico”, por contraditório que pareça, é uma boa notícia para o governo japonês, que vem subsidiando há anos uma política impopular, desgastante em termos de imagem e sujeita a chuvas e trovoadas (por “chuvas” leia-se Greenpeace e por “trovoadas” leia-se Sea Shepherd) que frequentemente impedem o cumprimento das cotas, aumentando o preju. Para o público interno, o governo nipônico pode pagar de vítima do “Ocidente preconceituoso”; para o externo, pode trucar exigindo o fim da moratória.
A saída para o impasse só virá com o tempo, quando os japoneses se derem conta de que comer baleia é uma tradição que fossilizou, um hábito que não faz mais sentido no século 21. É o que está acontecendo na Noruega, país onde o consumo de carne de baleia despencou entre os jovens. E é o que provavelmente já está acontecendo também na terra do Sol Nascente, onde os estoques de carne de baleia têm encalhado (com a vênia do trocadilho) ano após ano.
A indústria baleeira já perdeu uma vez para a tecnologia, com a invenção da lâmpada a petróleo. Perderá mais uma vez, para a ética. Está condenada ao rol das más ideias extintas do capitalismo, juntamente com a escravidão, o fumo em lugares públicos e as lâmpadas incandescentes. É bom que seja assim. A questão é quantas baleias ainda virarão sashimi enquanto isso não acontece.
Perdido na tradução
TRADUÇÕES VAGABUNDAS são irritantes. Mais ainda quando são feitas por mim. Mais ainda quando são feitas por mim diante de uma plateia altamente qualificada, se insone, numa manhã de sábado, na minha fala de encerramento do V Congresso Brasileiro de Jornalismo Ambiental, em Brasília, no último dia 19. Tentei traduzir, ali no calor da palestra, o célebre primeiro parágrafo de Um Conto de Duas Cidades, de Dickens. Deu tão errado que o distinto público não percebeu que eu havia encerrado ali minha, ahan, conferência.
Ontem, o grande Luiz da Motta, em seu bom blógue Evergreen Forests, postou uma foto do encerramento com uma tradução de Dickens caçada na internet e quase tão ruim quanto a minha. Deixe-me, aqui, me redimir por nós dois e apensar a tradução correta, feita por Sandra Luzia Couto na edição do clássico dickensiano da Abril Cultural:
Aquele foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos; aquela foi a idade da sabedoria, foi a idade da insensatez, foi a época da crença, foi a época da descrença, foi a estação da Luz, a estação das Trevas, a primavera da esperança, o inverno do desespero; tínhamos tudo diante de nós tínhamos nada diante de nós, íamos todos direto para o Paraíso, íamos direto no sentido contrário — em suma, o período era em tal medida semelhante ao presente que algumas de suas ais ruidosas autoridades insistiram em seu recebimento, para o bem ou para o mal, apenas no grau superlativo de comparação.
Mais água na fervura
O VALOR ECONÔMICO publicou na última sexta-feira no suplemento Eu& Fim de Semana uma cascata de minha lavra sobre as razões pelas quais o IPCC está pronto para decretar, no fim deste mês, que a previsão de aumento do nível do mar no fim do século será maior do que o painel havia estimado em 2007.
O texto é fechado para não assinantes, portanto vou me eximir de reproduzi-lo aqui. Mas, como na internet ninguém e de ninguém, um amigo encontrou um bootleg governamental nesta página. Você vai descobrir, entre outras coisas, por que os esquimós não estão nem um pouco preocupados com a elevação do oceano.
A matéria vem ilustrada com algumas fotos que eu fiz com a Xereta que peguei emprestada da minha filha e uma linda imagem aérea feita pelo fotógrafo, caçador de fim de semana e professor aposentado groenlandês Finn Pedersen.
Quem tem pacu tem medo
UM ESPECTRO ronda a Europa: o pacu. O pânico do verão europeu deste ano tem sido esse peixão amazônico, primo mais carnudo e não muito mais saboroso da piranha. Nas últimas semanas, a imprensa europeia tem noticiado, alarmada, que pacus foram encontrados no rio Sena e no canal de Oresund, entre a Dinamarca e a Suécia. Não que ele tenha o apetite por sangue de suas parentas menores, nem o hábito de nadar em bandos. O medo decorre do aparente hábito do bicho de morder testículos.
No Reino Unido, ele foi apelidado de “peixe comedor de testículos”. Na França, banhistas no Sena tem sido advertidos a nadar de roupa (fala sério, quem nada no Sena?). Na Suécia, o alerta é para ninguém nadar pelado (quem nada pelado naquele frio?). O pacu é um peixe de hábitos vegetarianos e insetívoros, portanto ele não ataca seres humanos deliberadamente. Ocorre que seus dentes e mandíbulas são adaptados a quebrar castanhas, que caem das árvores nas matas de igapó. E bagos podem ser confundidos com bagas . E aí já viu.
Quando tomei conhecimento do caso, por obra e graça da impagável Alexandra Moraes, juro que achei que fosse piada ou algum erro de tradução. Afinal, a palavra em inglês para castanhas, “nuts”, é a mesma para culhões. Aí resolvi consultar um especialista: Fernando Meyer Pelicice, da Universidade Federal do Tocantins. Fiquei surpreso com a resposta.
“É real esse lance do pacu”, conta o ecólogo. Segundo ele, incidentes foram registrados em Papua Nova Guiné. Os nossos peixes aparentemente andaram atacando as partes baixas e machucando homens por lá. Ganharam até um episódio do documentário na NatGeo (ou um outro canal desses) “Monstros do Rio”. “Nesse caso identificaram a espécie como Piaractus brachypomus, amazônico”, diz Pelicice.
Os europeus, porém, podem ficar tranquilos, afirma o pesquisador. “Espécies amazônicas não suportam frio. Ou seja, esses peixes não devem suportar o próximo inverno. Por isso imagino que o problema não se sustente, ao menos nos países nórdicos. Deve se considerar também que pacus têm exigências ambientais restritas para reprodução (e.g. alguns migram, precisam de várzeas para os jovens, etc), o que pode atrapalhar a colonização de alguns locais.”
Isso, claro, até algum engraçadinho resolver soltar candirus nos rios europeus.
A matemática da má-fé
MEU FILHO MAIS VELHO usa uma expressão peculiar para expressar ceticismo diante de proposições evidentemente absurdas. Sempre que tento passar-lhe uma balela como fato, ele olha para mim com uma cara de desprezo e fuzila: “Serião?”
Não dá para reagir de outro jeito ao ler a enormidade publicada na edição desta semana de Época pelo filósofo gaúcho Denis Rosenfield sobre o ritmo de demarcação de terras indígenas e unidades de conservação no país. Resgatando uma conta apresentada dias atrás pela companheira de lutas Kátia Abreu, o professor Rosenfield afirma que, mantido o ritmo de criação de áreas protegidas e terras indígenas dos governos Lula e THC FHC, o país chegaria a 2031 com 236 milhões de hectares demarcados, ou “100% da área agropecuária” (não explica se as terras indígenas e os parques tomariam as terras dos produtores ou apenas ocupariam o equivalente em área). Em 2043, nesse mesmo batidão, estariam nas mãos dos silvícolas e das capivaras 855 milhões de hectares, ou todo o território nacional. Serião?
Meus amigos engenheiros sempre me advertiram do perigo de deixar esse pessoal de humanas mexer com números. Mas também não perdiam a oportunidade de fazer troça deles próprios, com uma piada que vem a calhar neste caso: um engenheiro certa vez plotou num gráfico a curva de crescimento de sua filha de um ano de idade. Extrapolando a tendência, concluiu que aos 18 anos a menina estaria com três metros de altura e pesaria meia tonelada.
Olha, eu tenho uma extrema simpatia por esse pessoal de direita. Acho um charme, tá na moda, eles têm senso de humor e tudo o mais. Mas é difícil imaginar que alguém que bote na mesa os números apresentados por Kátia Abreu, por sua vez compilados por um tal “Observatório da Segurança Jurídica” (sempre que um ruralista pronuncia essa expressão, Deus derruba uma castanheira centenária) esteja fazendo-o por convicção na solidez de seu raciocínio. Não, minha gente, o ritmo de criação de unidades de conservação no país jamais será igual ao de FHC e Lula, por causa de leis elementares da física. Hoje só existem na Amazônia (onde ainda é possível criar áreas protegidas de dimensões que arrepiam os ruralistas) cerca de 25 milhões de hectares de florestas públicas em área devoluta. O resto já tem destinação. Mesmo que, digamos, Marina Silva (que é uma espécie de encarnação do capeta para essa gente) assumisse a Presidência com poderes ditatoriais e resolvesse expropriar áreas produtivas para fazer parques — o que aparentemente é o subtexto da argumentação de Rosenfield e da CNA –, dificilmente quereria criar reservas biológicas nos pastos de Alta Floresta ou nos campos de soja do Blairo Maggi.
Não se cria uma unidade de conservação por capricho ou por amor ao subdesenvolvimento; cria-se para proteger algo relevante em termos de biodiversidade, água (para garantir inclusive a produção agropecuária, não custa lembrar) ou paisagens. Felizmente, a proporção dessas áreas sob proteção oficial hoje no Brasil é maior do que quando FHC assumiu o poder. Portanto, há menos a salvaguardar no futuro, porque o Estado fez o seu papel nos 16 anos de FHC e Lula. Dilma Rousseff, ao submeter a criação de áreas protegidas ao crivo político de seus cupinchas no setor minerário e energético, subverteu as razões de Estado para estabelecer essas áreas. É ela que não está cumprindo seu papel.
Raciocínio análogo vale para as terras indígenas. Este blog, outras publicações e o bom senso já desmontaram o argumento safado do “muita terra para pouco índio” repisado por Rosenfield na Época. De novo, terras indígenas (em geral) não são criadas por amor ao subdesenvolvimento ou por tara de antropólogo; elas são o reconhecimento do Estado (daí o artigo 231 da Constituição delegar sua declaração ao Poder Executivo) a um direito que já está garantido aos índios. As grandes terras indígenas do país já foram todas criadas, e estão em geral no fiofó da Amazônia, onde só a imaginação fértil de alguns membros da bancada ruralista imaginaria que elas possam competir por terras com o agronegócio produtivo (noves fora os arrozeiros de Roraima). O que há para criar ou ampliar hoje é relativamente marginal e, salvo exceções como o sul de Mato Grosso do Sul, não há disputa com propriedades legítimas de não índios. O fuzuê que o ruralismo tem feito em cima dessa questão, aproveitando o atabalhoamento geral reinante no Planalto, visa usar a exceção para mudar a regra — mesmíssimo expediente utilizado com sucesso para mudar o Código Florestal. Pressionada, a ministra Gleisi Hoffmann saiu-se com uma solução mágica destinada ao mesmo sucesso dos cinco pactos rousseffianos: botar a Embrapa para apitar nas demarcações. Serião?
A explicação benevolente para o novo surto midiático do “setor produtivo” é que esse povo só quer dinheiro: radicaliza-se para obter indenizações por desapropriações que, de resto, são frequentemente justas. Como eu já vi esse filme antes, prefiro achar que a turma da motosserra está mais uma vez dando um empurrãozinho só para ver se a porta abre. O butim é a PEC-215 e outras medidas que na prática acabam com terras indígenas e áreas protegidas no país. Da outra vez deu certo; vai que desta também cola.