Anatomia da queda
(publicado na UC novembro/2010)
Ao dissecar os movimentos segundo as leis da Física, a Biomecânica tenta explicar por que idosos caem e como o exercício pode poupá-los do acidente mais comum na terceira idade
Quem entra no Laboratório de Biomecânica da Unesp em Rio Claro pode pensar que chegou a uma sala de musculação, mas logo se dá conta que os equipamentos são bem mais sofisticados que os encontrados nas academias de ginástica. Em seguida, ao se deparar com os panos pretos que pendem do teto até o chão, vai perceber que ali também funciona um estúdio de filmagem. E se olhar para o lado, verá uma bancada cheia de notebooks, onde alunos de pós-graduação manipulam uma parafernália de softwares que soltam gráficos pouco amigáveis para quem é de fora.
Essa estrutura tem como objetivo dissecar os movimentos do corpo humano em seus componentes elementares. “Para isso, nos baseamos nas leis da Física e particularmente da Mecânica Clássica”, diz Mauro Gonçalves, coordenador do laboratório.
As leis formuladas por Isaac Newton no século 17 estão na base da Biomecânica, mas outras áreas da ciência são igualmente importantes para essa disciplina que “não tem um corpo de conhecimento próprio”, segundo o pesquisador. Interdisciplinar por definição, a Biomecânica depende ainda de altas doses de Anatomia, Fisiologia, Matemática e Computação.
“O que nos interessa são variáveis como velocidade, aceleração, força e atividade elétrica de nervos e músculos”, detalha Gonçalves, que também é professor do Departamento de Educação Física do Instituto de Biociências. Com base nelas, é possível não só dissecar o movimento de voluntários em uma série de experimentos, mas também avaliar a eficácia de programas de reabilitação física. Não é por acaso que 7 dos 12 pós-graduandos do pesquisador são fisioterapeutas.
Remédio fora do mercado é sinal de saúde
Em 29 de setembro passado, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) cancelou o registro do medicamento Avandia (rosiglitazona), indicado para o tratamento do diabetes tipo 2. Assim como havia ocorrido com os anti-inflamatórios Vioxx, Prexige e o inibidor de apetite sibutramina, a medida resultou de estudos que identificaram alto risco de problemas cardiovasculares.
A pergunta que fica é: por que esse risco só foi detectado agora, depois que milhões de pessoas no mundo já consumiram o remédio e – principalmente – depois dos estudos clínicos que permitiram seu registro nas agências regulatórias de diversos países? O que falhou para que o problema não tenha sido previsto?
Especialistas rebatem afirmando que esse tipo de medida, que deve se tornar cada vez mais comum nos próximos anos, não é um mau sinal, pelo contrário. Mais do que falhas no sistema regulatório, ele demonstra progressos significativos, em nível nacional e internacional, de uma pouco conhecida trincheira da vigilância sanitária, a farmacovigilância, que monitora os medicamentos após o início da comercialização. Ela é necessária porque os estudos clínicos pré-registro não detectam as reações adversas menos frequentes, por uma questão estatística.
“Na fase 1, a droga é testada em dezenas de voluntários sadios, que não são as pessoas que tomarão a droga, para se obter dados de mecanismo de ação, distribuição e excreção pelo organismo”, diz Patrícia Mastroianni, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Unesp em Araraquara. Aí são detectadas as reações adversas mais comuns, que ocorrem na proporção de 1:1, de 1:10 e, com muita sorte, de 1:100.
Nas fases 2 e 3, o medicamento é testado em pacientes, mas dentro de uma população selecionada e bastante homogênea, pois diversas variáveis são controladas (sexo, idade, outras doenças, outras drogas), para que se possa mensurar o efeito com precisão estatística. Na fase 2 participam algumas centenas de pessoas e na 3, alguns milhares, distribuídas em vários continentes. “Na fase 3, podemos detectar reações adversas na proporção de 1:100, 1:1000 e eventualmente 1:10 mil”, afirma a pesquisadora.
A vida como ela é
Mas só na fase 4, depois que a autoridade sanitária do país concedeu registro de comercialização da droga ao fabricante, é possível verificar como o medicamento vai funcionar na “vida como ela é”, diz. “Até o registro nós sabemos que o fármaco é eficaz e relativamente seguro. A fase 4 visa demonstrar sua efetividade, seu custo benefício em condições normais, quando a droga é usada por idosos, gestantes, diferentes etnias, pessoas com outras doenças e que estão tomando outros medicamentos”, enumera Patrícia.
“É equivocado pensar que um medicamento novo é necessariamente melhor. Pode ser do ponto de vista da eficácia, mas sua segurança só é consagrada após cinco anos de comercialização”, complementa. Segundo ela, na fase 4 é possível detectar reações na proporção de até 1:100 mil e eventualmente ainda mais raras.
O sistema nacional de vigilância sanitária da Anvisa coleta relatos de suspeitas de reações adversas provenientes de várias fontes, que embasam a agência a adotar medidas que vão desde alterações na bula e restrições de uso, até o eventual cancelamento do registro.
A farmacovigilância no Brasil teve início em 2001, quando o país virou membro de uma rede internacional criada em 1978 pela OMS (Organização Mundial da Saúde) para monitorar os remédios no mercado. O marco que motivou sua criação foi a tragédia da talidomida nos anos 1960 e 1970 (quando milhares de bebês nasceram com má-formação nos membros).
A obrigação dos 101 países-membros é coletar relatos de reação adversa e outros tipos de problemas técnicos em medicamentos e produtos de saúde em geral, tomar medidas nacionais de segurança toda vez que surgir um alerta, além de alimentar o banco de dados mundial mantido pela OMS na Universidade de Uppsala, na Suécia, que por sua vez gera alertas internacionais. Com mais de 3 milhões de notificações, o banco permite fazer análises refinadas e detectar ocorrências impossíveis para cada país individualmente.
Em 2009, o sistema de farmacovigilância brasileiro enviou a Uppsala 5,5 reações adversas graves para cada 1 milhão de habitantes. É pouco, porque a subnotificação no país é alta, mas é quase o dobro do ano anterior. “Ainda estamos ampliando nossas ações e nosso banco de dados”, diz Murilo Freitas Dias, gerente da área de farmacovigilância da Anvisa.
Segundo ele, cerca de 30% desses dados vêm dos laboratórios farmacêuticos – obrigados, pela legislação, a manter um sistema interno de farmacovigilância e a relatar qualquer suspeita relatada por médicos ou pacientes à empresa. Outros 10% dos dados vêm de cerca de 3.000 farmácias notificadoras credenciadas, cujos profissionais foram treinados para relatar suspeitas de efeitos adversos.
Sentinela hospitalar
É dos chamados hospitais sentinela, porém, que vem a maioria dos registros da agência – 55%. “A Anvisa investiu na capacitação e treinamento de pessoas escolhidas a dedo nesses lugares, que fazem uma busca ativa de reações adversas, além da sensibilização dos profissionais de saúde para a importância da notificação”, diz Patrícia.
Monitorar efeitos adversos nos pacientes internados é muito mais fácil. E é nos hospitais que as reações mais graves costumam chegar. Um estudo da pesquisadora realizado no Hospital das Clínicas da USP em Ribeirão Preto indicou que até 9% das internações de emergência são causadas por reações adversas a medicamentos.
O HC da Faculdade de Medicina na Unesp em Botucatu participa da rede de 270 hospitais sentinela desde 2003. Segundo sua gerente de risco, a enfermeira Silvana Andréa Molina Lima, de 2003 a 2009, o número de notificações enviadas a Brasília saltou de 74 para 388.
Apesar desse crescimento, notado em todo o sistema na última década, a farmacovigilância nacional ainda tem muito que melhorar. “Precisamos ampliar nossa ‘escuta’ por meio da expansão da rede sentinela e das farmácias notificadoras”, afirma Maria Eugênia Carvalhaes Cury, chefe do sistema nacional de notificação e investigação em vigilância sanitária da Anvisa.
As farmácias são consideradas a perna frágil do sistema. “Ainda são mais estabelecimentos comerciais do que de assistência farmacêutica”, queixa-se Patrícia. “E não é uma situação controlada. Lá não se tem o prontuário do paciente, muitas vezes nem se sabe direito o que ele tomou.”
Mudar essa cultura (que inclui a automedicação) só vai acontecer no médio e longo prazo, admite a pesquisadora. E há muitos desafios pela frente. Um levantamento de 2009 feito pelo Conselho Regional de Farmácia de São Paulo, do qual ela participou, mostra que a farmacovigilância está ausente no currículo de 80% das faculdades de farmácia do Estado.
Imagem: psyberartist
Reportagem publicada na edição de novembro da Unesp Ciência.
Escalada do suicídio
A primeira causa de morte por atos de violência no mundo não são os acidentes de trânsito, os homicídios nem os conflitos armados, mas o suicídio. Esse dado desconcertante foi revelado em outubro de 2002, em Bruxelas, numa reunião da Organização Mundial de Saúde (OMS) para divulgar as conclusões do Relatório Mundial sobre Violência e Saúde. Ao lê-las (aparentemente pela primeira vez) para os convidados da cerimônia, o então primeiro-ministro da Bélgica, Guy Verhofstadt, não conteve o susto e, quebrando o protocolo, indagou incrédulo: “É isso mesmo?”.
A cena está na memória do psiquiatra brasileiro José Manoel Bertolote, que estava presente ao evento e, ao contrário do premiê belga, não tinha razão para se espantar. Havia sido ele, na época funcionário do Departamento de Saúde Mental da OMS, um dos principais responsáveis pela primeira compilação dos dados mundiais sobre suicídio, que chamaram a atenção da entidade para um dos mais complexos problemas de saúde pública da atualidade.
Após quase duas décadas na OMS, Bertolote deixou a Suíça há dois anos e se instalou em Botucatu, no interior de São Paulo, onde é professor da Faculdade de Medicina da Unesp. Também assessora a Secretaria de Saúde do município na criação de um serviço de prevenção de suicídios, que uma pesquisa anterior coordenada por ele comprovou ser altamente eficaz em várias cidades do mundo, entre elas Campinas (SP).
Hoje Bertolote é a pessoa certa no local certo, por assim dizer. No ano passado houve uma “miniepidemia” de suicídios em Botucatu. Entre 2000 e 2008, a média anual de mortes por lesão autoinfligida na cidade havia sido sete. Em 2009 foram registrados 21 casos. Até agora ninguém consegue explicar o aumento tão abrupto, mas o fato é que no mundo todo, até mesmo em países em que as taxas de suicídio são tradicionalmente baixas – como o Brasil -, vem crescendo o número de pessoas que precisam de ajuda para não sucumbir.
Marvada mesmo
Pinga, cachaça, branquinha, marvada ou, como dizem os gaúchos, canha. A segunda bebida alcoólica mais consumida no país depois da cerveja tem muitos apelidos carinhosos. Já a pedra no sapato de quem a produz atende por um nome comum apenas nos livros de toxicologia e química analítica: carbamato de etila.
Subproduto indesejável do processo de fabricação da aguardente de cana, e de alguns outros destilados, o carbamato de etila causa câncer em animais e provavelmente tem o mesmo efeito em pessoas, segundo classificação da Agência Internacional de Pesquisa em Câncer, ligada à Organização Mundial de Saúde.
A notícia não deve alarmar quem aprecia cachaça com moderação, mas medidas para manter esse contaminante em níveis seguros certamente farão bem a todos os consumidores. Como o câncer é uma doença multifatorial, a prevenção depende da redução dos fatores que contribuam, ainda que pouco, para seu surgimento.
A preocupação com o carbamato de etila em bebidas destiladas surgiu no Canadá em meados dos anos 1980, e hoje boa parte dos países com legislação sobre o assunto adotam o nível proposto pelos canadenses, de até 0,15 miligrama por litro (mg/l). Na aguardente brasileira, porém, esse limite quase sempre é excedido, como mostra artigo publicado em junho deste ano na revista BMC Cancer por pesquisadores brasileiros, canadenses e alemães.
Com base em 19 artigos publicados nos últimos anos, que avaliaram o teor do contaminante na pinga nacional, os autores calcularam um valor médio de 0,38 mg/l. O principal objetivo da pesquisa foi calcular o risco de câncer entre os consumidores expostos a produtos com esse nível de contaminação.
O resultado mostra que, se o limite de até 0,15 mg/l fosse respeitado, o potencial cancerígeno do carbamato de etila na cachaça se reduziria em 1/6 a 1/3, explica Maria Cristina Pereira Lima, da Faculdade de Medicina da Unesp em Botucatu e uma das autoras do artigo. Pode parecer pouco, mas é algo que se soma ao potencial carcinogênico do próprio etanol, associado a tumores do trato digestivo. “É um risco desnecessário e que podemos evitar”, diz a médica. “O etanol não dá para tirar, porque aí já não é mais cachaça.”
O carbamato de etila é hoje uma das principais barreiras para a exportação da cachaça, porque os principais compradores – Alemanha, Estados Unidos, Portugal e França – cada vez mais rejeitam produtos fora da especificação. Em 2009 o Brasil exportou 10,8 milhões de litros de aguardente, mas isso é menos de 1% do que produz anualmente, de acordo com o Instituto Brasileiro da Cachaça, representante das empresas do setor.
Instrução normativa do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, publicada em 2005, estabelecia que destilarias e alambiques nacionais tinham até 30 de junho deste ano para adequar seus produtos ao padrão internacional. Mas a regra valeu por menos de um mês, pois no dia 19 de julho o ministério prorrogou o prazo por mais dois anos. “Há muita resistência entre os grandes produtores”, afirma Douglas Wagner Franco, do Instituto de Química de São carlos, da USP, e referência nacional em química da cachaça.
Os grandes produtores são geralmente aqueles que produzem aguardente em colunas de destilação – torres em que o álcool e outras substâncias voláteis (que dão aroma à bebida) são separadas do caldo de fermentação da cana-de-açúcar. É justamente nesse tipo de pinga que a concentração de carbamato de etila tende a ser maior, segundo Franco. “A contaminação geralmente é menor na aguardente artesanal, que é feita em alambique”, diz.
O pesquisador explica que os alambiques levam vantagem porque neles o processo de destilação é mais lento e feito em bateladas, de modo que as frações inicial e final do destilado, conhecidas como cabeça e cauda, são desprezadas. Aproveita-se apenas a porção intermediária, ou corpo. Na destilação por coluna, o processo é contínuo, não há separação de cabeça, corpo e cauda; logo, tudo é aproveitado.
Cuidar dos detalhes da produção é importante para evitar a formação de precursores químicos do carbamato de etila, já que a maior parte dele se forma após a destilação, como mostraram os estudos do pesquisador de São Carlos. O problema é que não se sabe quais são esses precursores na cana, explica Ian Nóbrega, da Universidade Federal Rural de Pernambuco, coautor do artigo publicado na BMC Cancer.
Cana venenosa
“A cana-de-açúcar é uma planta cianogênica”, diz Nóbrega. Isso quer dizer que ela, assim como a mandioca e a cevada, tem compostos conhecidos genericamente como glicosídeos cianogênicos, que uma vez degradados ou processados, liberam cianeto, um veneno bastante volátil. “Faz parte do sistema natural de defesa da planta contra herbívoros”, acrescenta. É da reação entre esse cianeto e o etanol que surge o carbamato de etila.
O mesmo inconveniente ocorria com o uísque até os anos 1990, mas foi resolvido quando pesquisadores descobriram a identidade química do glicosídeo cianogênico presente na cevada. Com a revelação, os produtores passaram a usar variedades da planta que liberam pouco cianeto e a destilar mais lentamente, descartando (ou reprocessando) cabeça e cauda, frações nas quais a concentração do tal precursor era maior.
“No caso da cana-de-açúcar, a identidade do glicosídeo cianogênico ainda é desconhecida”, afirma Nóbrega. Logo, é inviável controlar o precursor do carbamato de etila ainda na planta. Restam, segundo ele, apenas os cuidados com a destilação. Para Franco, a aguardente brasileira poderia se adequar aos padrões internacionais se houvesse uma padronização nos métodos de produção, algo que ele vê com certo pessimismo.
Apesar disso, a situação vem melhorando, diz. Há seis anos, apenas 20% das marcas de cachaça passavam no teste do carbamato de etila, segundo o especialista de São Carlos. “Hoje, cerca de 20% são reprovadas”, compara. O problema é que justamente entre essas estão as que os brasileiros mais consomem.
Foto: André Mantelli
Texto publicado na Unesp Ciência, edição de setembro de 2010.
Trovadores caipiras
A Rua do Porto, no centro histórico de Piracicaba, está lotada quando a viola solta o primeiro acorde e o cantador começa a entoar seus versos rimados. É a largada do cururu, o repente caipira.
Como é de praxe, a “função” tem início com a louvação ao Divino Espírito Santo, homenageado da festa que acontece há 184 anos, sempre no início de julho, na cidade do interior paulista mais conhecida por suas pamonhas e seu inconfundível sotaque.
Pela importância do evento e pelo gabarito dos quatro cantadores (ou cururueiros) presentes, esse promete ser dos “bão”, como diria qualquer um deles.
A antropóloga Elisângela de Jesus Santos liga a filmadora para registrar mais uma vez essa tradição folclórica que só existe na região do Médio Tietê, um triângulo geográfico delimitado pelas cidades de Piracicaba, Sorocaba e Botucatu.
Desafio cantado de improviso e ao som da viola, o cururu é o objeto de estudo da doutoranda da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de Araraquara, cuja rotina tem sido perseguir os cururueiros de festa em festa. “Meu trabalho de campo é imprevisível. Quando fico sabendo que vai ter cururu em alguma cidade, eu vou atrás”, diz.
Como não há Festa do Divino de Piracicaba sem apresentação de cururu, lá está Elisângela no dia 10 de julho, acompanhada da reportagem da Unesp Ciência. O palco é simples e rústico, mas os quatro cantadores e dois violeiros – como é o costume – compensam a pobreza cenográfica com uma postura altiva e vestes elegantes.
Tanto Elisângela quanto a plateia sabem que os escalados da noite são da melhor estirpe. Jonata Neto e João Mazzero representam Piracicaba; Cido Garoto (foto acima) e Dito Carrara vieram de Sorocaba.
O cururu é sempre um desafio entre duas cidades, embora cada cururueiro cante separadamente. Apesar do clima de competição, não há vencedor oficial. Quem faz o prestígio do artista é o aplauso do povo, que valoriza a capacidade de improvisar e, principalmente, a criatividade para caçoar do adversário e responder aos seus ataques. Nesse jogo verbal, o humor é presença obrigatória e o limite das provocações é o respeito ao Divino.
Profano e sagrado se misturam nessa que é uma das manifestações culturais de cunho religioso mais antigas do Brasil, explica Elisângela, que no mestrado investigou suas raízes históricas, tão imprecisas como as da maioria das tradições orais.
O que há de consenso entre os especialistas em cultura caipira, porém, é que o cururu tem origem no processo de colonização do interior paulista. É obra do encontro dos bandeirantes com os indígenas que viviam às margens do rio Tietê no século 17.
Com os bandeirantes vieram os jesuítas, hábeis em usar elementos da cultura alheia como veículo de catequese. Assim, introduziram a viola e os versos rimados, legado do trovadorismo da Europa medieval, para disseminar a palavra de Deus entre os indígenas. Esses, por sua vez, incorporaram ao novo ritual cristão uma coreografia que lembrava os movimentos de um sapo – cururu na língua tupi.
O nome ficou, mas a coreografia está completamente extinta no desafio contemporâneo. O escritor Mário de Andrade foi um dos poucos a registrá-la quando percorreu a região com sua Missão de Pesquisas Folclóricas, projeto que mapeou diversas manifestações culturais populares no Brasil no fim dos anos 1930.
O desaparecimento da dança não é sinal de enfraquecimento da tradição, porém. “O cururu está vivo até hoje por conta dessa capacidade de se transformar no tempo”, afirma a antropóloga.
Quem abre a apresentação da noite é Cido Garoto, 68 anos de idade e 50 de cururu. Por ser o primeiro, é ele quem puxa a carreira, isto é, determina a rima a ser seguida por todos os cantadores naquela rodada.
Como esperado, por causa da festa, Cido começa com a carreira do Divino, o que significa que os versos devem rimar em “ino”. Mas a regra só vale depois do baixão, um tipo de aquecimento entre violeiro e cantador, no qual esse último pronuncia uma sequência personalizada de “la-ri-la-rai”. Em seguida vem a louvação ao Divino e a saudação ao povo, “que é dever do todo cantorino”, canta ele.
Hora de atacar
Logo depois Cido aproveita para alfinetar os adversários piracicabanos, porque um é “são-paulino” e o outro canta como um cachorro “latino” – “latindo” no dialeto caipira. Aplausos da plateia, que assiste ao espetáculo enquanto come pratos típicos, já que o palco fica em frente a uma espécie de praça de alimentação ao ar livre. As barracas em volta vendem pastel, linguiça, virado e até leitoa à pururuca.
Louvação, saudação, ataque e resposta. Essa é a sequência básica seguida por todo cururueiro e que dura entre 15 e 20 minutos em cada rodada. João Mazzero, que se apresentou depois de Cido Garoto, responde à crítica futebolística exaltando o XV de Piracicaba, time da segunda divisão do campeonato paulista, mas que logo “vai tá subino”, segundo ele.
A comparação canina é retrucada por Jonata Neto, para quem Cido quando canta parece uma cadela “parino”. Já Dito Carrara preferiu versos mais focados na religião, no trabalho e na família, num ritmo mais lento que o dos colegas. “Ele é o mais conservador”, contextualiza Elisângela, que já o conhece de outros cururus.
Apesar das provocações, o cururu a que assistimos até que foi bastante moderado, segundo a antropóloga. Em outras ocasiões, como em apresentações em clubes e festas menores, “a coisa pega fogo”, diz.
Nhá Bentinha, 62, uma ex-artista de circo, ex-radialista e atualmente apresentadora de cururu, explica a diferença à reportagem: “Hoje tá tranquilo por causa do Divino, tem que respeitar. Mas tem lugar aí que, Deus ô livre, é baixo calão mesmo”, diz em tom de reprovação.
A presença de Nhá Bentinha nesse universo é representativa das transformações pelas quais vem passando o cururu – prática historicamente masculina -, e que interessam à pesquisadora. “Não gosto muito de cantar. Não tem mulher que canta e pra debater com homem não fica bão. Então eu faço uma saudação e prefiro só apresentar”, justifica ela, que comanda o cururu que acontece a cada 15 dias no Clube Atlético Barcelona, em Sorocaba.
Ao observar apresentações e entrevistar cantadores e outros personagens, a pesquisadora vai fazendo a etnografia do cururu, tema do doutorado, apoiado pela Fapesp, a ser defendido daqui a dois anos. O objetivo geral é revelar a lógica das dinâmicas sociais que estão por trás desse combate simbólico tão arraigado à cultura do Médio Tietê.
“[Essa abordagem] é bem diferente da visão purista do folclorista”, pontua Alberto Ikeda, professor do Instituto de Artes da Unesp em São Paulo que estudou o cururu nos anos 1980 e participou da banca de mestrado de Elisângela, em 2008.
O olhar antropológico também é importante para desfazer estereótipos e preconceitos, acrescenta Ikeda. “Ao contrário daquela imagem do caipira preguiçoso e indolente, o Jeca Tatu de Monteiro Lobato, com o cururu vemos o quanto a sagacidade e a destreza mental são apreciadas e valorizadas nessa cultura”, compara.
Os próprios cantadores admitem que o cururu está cada vez menos religioso e mais profano. “Antigamente a gente cantava mais na Escritura, agora é mais diversão”, diz Jonata Neto, 79 anos, cururueiro há mais de 50.
“Ninguém mais aguenta ficar ouvindo só louvação”, concorda Cido Garoto, que é também um dos principais divulgadores dessa arte. Escreveu Cururu – Retratos de uma tradição (2003) e é responsável pelo site www.osreisdocururu.com.br.
Segundo Elisângela, a profanação do ritual começou a ocorrer a partir da década de 1940, com a intensificação do processo de urbanização das cidades do interior paulista. Apesar de ainda manter o vínculo religioso, mas já sem a função original de catequese, o cururu contemporâneo é cada vez mais uma prática da sociabilidade caipira.
“Os cantadores passaram a falar mais da vida cotidiana, sobre os acontecimentos da cidade, intensificou-se o desafio entre eles”, descreve.
Versos sensuais
Até o fim do trabalho de campo, é de se imaginar que a pesquisadora terá muitas surpresas, como aconteceu na Festa do Divino de Piracicaba. Lá pelas tantas, Cido Garoto começou a descrever uma cena de sexo, cantando na carreira do A (com versos terminando em palavras como “cantá” e “gostá”).”Vou beijando ela da cabeça até os carcanhá”, rimou. E prosseguiu com versos sensuais que, se não chegam a ser impróprios para menores, foram capazes de surpreender tanto a plateia quanto a antropóloga. Cururu erótico?, pergunto a Elisângela. “Nossa, isso eu ainda não tinha visto”, confessa ela, rindo.
Publicado na edição de agosto de 2010 da Unesp Ciência.
Fotos: Luciana Cavalcanti
Diário do doutor da selva
Em 1905, Albert Schweitzer era um pastor luterano de 30 anos, professorde Teologia da Universidade de Estrasburgo (França), escritor e músico respeitado como um dos grandes intérpretes de Bach. Não satisfeito com o status que já desfrutava, começou a estudar Medicina com o propósito de se embrenhar nos tórridos e miseráveis rincões da África Equatorial para tratar seus enfermos. Oito anos depois estava no Gabão, então colônia francesa. Em 1952 entrou para a lista de ganhadores do prêmio Nobel da Paz.
Em Entre a água e a selva, Schweitzer narra essa experiência pioneira que inspiraria a criação da organização humanitária Médicos Sem Fronteiras, em 1971, também na França e igualmente premiada com o Nobel da Paz, em 1999. Lançada pela primeira vez no Brasil nos anos 1950 pela Editora Melhoramentos, a obra agora é reeditada pela Editora Unesp, com tradução de José Geraldo Vieira. O livro será lançado na Bienal Internacional do Livro de São Paulo, que acontece entre os dias 12 e 22 deste mês.
Schweitzer narra com muita objetividade as lições que aprendeu como “doutor da selva”, como ele se autodenominou, numa espécie de etnografia permeada de observações médicas, sociológicas, filosóficas ou simplesmente prosaicas, num texto ligeiro que entretém o leitor que aprecia a literatura de viagem e os diários de exploradores que desbravaram novos continentes.
A aventura começa em 1913, quando o médico embarca no navio que, antes de chegar ao Gabão, passa pelo Senegal e o Congo. “Não tive boa impressão de Dakar”, escreve. “Não posso me esquecer da brutalidade com que são tratados os animais naquele lugar.” Em Lambaréné, destino final da viagem, ele já na chegada se surpreendeu com o precário estado de saúde e a hostilidade dos gaboneses que ele teria de enfrentar.
O médico missionário tratou tudo, de diarreia a transtornos mentais, sempre com parcos recursos. Seu primeiro consultório foi montado num antigo galinheiro. Mas as dificuldades nem sempre vinham da falta de dinheiro. “Não sei como poderei continuar a alimentar meus doentes. Aqui passou a dominar quase a carestia total…por causa dos elefantes”, relata o médico no Natal de 1914.
Qualquer iniciativa agrícola era aniquilada pela abundância dos animais, cuja origem ele explica. “Se a população nativa diminui, como é o caso em muitas áreas, há bem menos caçadas. Além disso, os nativos esqueceram a arte primitiva da caça (primitiva e todavia tão sagaz) com que seus antepassados colhiam em armadilhas os bichos.”
Negando os estereótipos da época, Schweitzer se esforçou em mostrar que o nativo africano não era um preguiçoso, “mas sim um homem livre”. Defendia que “o essencial é que exista um espírito de fraternidade” entre os povos, ainda que a forma pela qual ele colocava esse princípio em prática se revele hoje preconceituosa, paradoxo que não invalida o mérito de sua missão, porém.
“O negro é como uma criança”, escreveu. “Sem autoridade não se obtém nada de uma criança. Por consequência, preciso estabelecer fórmulas entre nossas relações de maneira que a minha autoridade natural se manifeste. Defino da seguinte forma a minha atitude para com o primitivo: ‘Sou teu irmão, mas teu irmão mais velho’.”
Resenha publicada na edição de agosto da Unesp Ciência.
A nova corrida do ouro
A bordo do Nautilus, a fantástica máquina submersível criada por Julio Verne no livro Vinte mil léguas submarinas, o capitão Nemo relata ao professor Pierre Aronnax as riquezas que havia encontrado. No fundo do mar, diz, existem minas de zinco, ouro e prata cuja exploração seria possível. Ele mesmo só não se embrenhava nisso porque não precisava dos minérios, mas eles estavam ali, ao alcance de quem quisesse. Era a mente engenhosa de Verne, nos idos de 1870, mostrando-se mais uma vez capaz de antever avanços tecnológicos, como submarinos, arranha-céus e viagens espaciais.
No leito marinho de fato repousam diversos minerais valiosos, e o interesse por eles vem crescendo no mundo todo. Alguns até já são explorados no litoral de certos países, como é o caso dos diamantes na Namíbia, do ouro no Alasca (EUA), do calcário na França e da cassiterita (fonte de estanho) na Indonésia. E o tema “recursos minerais do mar” entrou na agenda estratégica de várias nações, tanto nas desenvolvidas como nas emergentes – Brasil inclusive.
Com a previsão de que muitos minerais em terra vão entrar em escassez nas próximas décadas, é certo que, cedo ou tarde, o mundo vai precisar das fontes marinhas. As iniciativas, porém, ainda são pontuais, tendo em conta a vastidão azul que recobre 71% da superfície do planeta. Com exceção de petróleo e gás, a exploração da maioria dos minerais marinhos precisa superar desafios científicos, tecnológicos e ambientais consideráveis, cuja complexidade aumenta quanto mais fundo ou longe da costa eles estiverem.
Por aqui, por exemplo, falta saber melhor a localização e o tamanho das jazidas, como a extração será feita em grande escala, a que custo e com quais impactos ao meio ambiente. As pesquisas, entretanto, já se encontram em estágio relativamente avançado, principalmente no que se refere a águas rasas.
Com uma extensão litorânea de fazer inveja a muitos países (7.491 km), o Brasil se lançou na pesquisa mineral marinha com certo atraso em relação até mesmo a outros emergentes como China, Índia e Rússia. Em compensação, avança com o fôlego turbinado pelos recentes avanços na exploração marítima de petróleo profundo.
Para encontrar as jazidas do pré-sal na Bacia de Santos, a Petrobras teve de fazer um extenso e detalhado escaneamento do fundo do oceano sob jurisdição nacional, gerando uma infinidade de dados sigilosos que só nos últimos anos começaram a ser compartilhados com outras instituições.
“O pré-sal foi muito positivo porque mostrou que há outros minérios no mar além do petróleo”, afirma Kaiser Gonçalves de Souza, chefe da divisão de geologia marinha da CPRM (Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais), empresa do Ministério de Minas e Energia (MME). “Nós vivíamos de costas para o oceano”, diz o geólogo, que coordena projetos de pesquisa mineral marinha do governo, financiados com recursos do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), num total de R$ 18 milhões até o fim deste ano.
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“Lost” animal
São nove da manhã na marina do Saco da Ribeira, em Ubatuba, litoral norte paulista, de onde sai diariamente o barco que leva ao trabalho os funcionários do Parque Estadual da Ilha Anchieta. O céu está aberto, mas o vento que agita o mar prenuncia virada no tempo. Durante o percurso de quase uma hora, a reportagem de Unesp Ciência vai ouvindo histórias estranhas.
A primeira vem de um oficial do Exército que, com uma equipe de seis homens, tem a inusitada missão de resgatar os destroços de um avião que caiu numa área de mata fechada da ilha em 1957. Depois, um vigia do parque relata causos de fantasmas do presídio que lá funcionou entre 1907 e 1955.
Pelo biólogo Paulo Cicchi, nosso anfitrião nesta viagem, conhecemos a história dos mamíferos que inadvertidamente foram parar ali há mais de 20 anos, como numa versão animal da ilha de Lost, e hoje protagonizam um verdadeiro drama ambiental.
Em 1983, os 828 hectares da Ilha Anchieta foram palco de um “experimento” atualmente considerado uma enorme insensatez. O objetivo era tentar recompor a fauna do lugar, que tanto sofrera com a devastação causada pelas atividades do presídio, hoje em ruínas. Para isso, a Fundação Parque Zoológico, com o aval da administração do parque, introduziu ali 14 espécies de mamíferos, num total de cem indivíduos.
Algumas se extinguiram rapidamente, como a preguiça e o veado catingueiro, este último típico do cerrado – a vegetação da ilha é Mata Atlântica. O problema atual está naqueles que, além de sobreviverem, se reproduziram além da conta por falta de predadores. É o caso de capivaras, cutias, quatis e saguis.
O impacto da fauna introduzida sobre as espécies nativas, tanto vegetais como animais, tem motivado diversos estudos, como o de Paulo Cicchi, doutorando do Instituto de Biociências da Unesp em Botucatu.
Ele começou a trabalhar na Ilha Anchieta em 2005, já com a ideia de investigar como os mamíferos exóticos ou alienígenas, no jargão dos biólogos, estavam afetando a diversidade de anfíbios e répteis, que são sua especialidade. “Acontece que não havia nenhum levantamento prévio desta fauna [antes da chegada dos mamíferos]”, conta. Ele decidiu fazer esse levantamento em seu mestrado. Ao longo de dois anos, registrou 17 espécies de sapos e 8 de répteis das quais 3 serpentes e 5 lagartos.
“É pouco se comparado com trechos continentais de Mata Atlântica”, explica o herpetólogo. “Mas a diversidade desses animais em ilhas nunca é muito alta”, acrescenta. Com esses dados, partiu para o doutorado, em 2007, a fim de entender qual seria a influência dos mamíferos exóticos nesses baixos números.
No fim de março passado, nós o acompanhamos em uma de suas últimas incursões por lá neste ano, para remover as armadilhas que ainda restam em alguns pontos da mata. O trabalho de coleta de informações acabou, e até dezembro Cicchi pretende consolidar os dados, alguns ainda não analisados, e se isolar na casa de veraneio da família na praia de Itamambuca, também em Ubatuba, para escrever a tese (sem deixar de pegar umas ondas no fim de tarde, como bom surfista que é, para aliviar o estresse).
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Cosmético que nasce em árvore
Em 2003, o americano Peter Agre ganhou o prêmio Nobel de Química pela descoberta das aquaporinas, proteínas tubulares que formam canais entre as células e permitiram entender como os tecidos do corpo, inclusive a pele, são capazes de reter tanta água.
Para a indústria cosmética mundial, esse foi o tiro de largada da corrida por uma nova geração de hidratantes, com tecnologia inovadora. O desafio era desenvolver produtos que estimulassem, de forma eficaz e segura, a síntese de aquaporinas na pele humana.
Até agora apenas duas empresas conseguiram realizar o intento. Uma delas é a Nivea, a multinacional de origem alemã presente em 150 países, que lançou seu produto na Europa em janeiro deste ano. A outra é a Chemyunion, uma empresa de Sorocaba, interior de São Paulo, com 100 funcionários, que comercializa seu Aquasense desde 2008.
Pouco conhecida pelo grande público, a Chemyunion fabrica matérias-primas para a indústria cosmética do Brasil e do exterior. Faturou R$ 40 milhões em 2009, vendendo para clientes como Natura, Avon, Unilever, Loreal, Victoria’s Secret e Estée Lauder.
O Aquasense é um extrato feito com a casca de uma árvore da Mata Atlântica, que pode ser adicionado às fórmulas de uma ampla linha de produtos com o objetivo de aumentar a hidratação da pele. Já é exportado para Argentina, Colômbia, Rússia e Estados Unidos.
A pequena empresa conseguiu esse feito após adotar uma série de atitudes que diferem bastante do business as usual. Levou apenas quatro anos para desenvolver um produto de vanguarda, de padrão internacional, baseado na exploração sustentável da biodiversidade brasileira.
Estabeleceu parcerias bem-sucedidas e duradouras com universidades (Unesp e Unicamp) e agências de fomento (Fapesp e Finep). E para fazer pesquisa e desenvolvimento (P&D) por conta própria, emprega mestres e doutores atualmente ocupados com a invenção de novos produtos, dos quais dez serão lançados até 2011.
Algo raro num país em que o grosso da ciência e da tecnologia é produzido no meio acadêmico, ou, o que é bem mais comum, chega pela alfândega como mercadoria ou serviço importado.
A história do Aquasense começa num sábado de 2004, numa livraria na capital paulista. “Eu estava olhando a estante de plantas medicinais e quando puxei um livro de uma prateleira alta, caiu outro bem na minha cabeça”, conta a química Carmen Velazquez, diretora científica da Chemyunion.
Era Plantas medicinais na Amazônia e na Mata Atlântica (Editora Unesp, 2003), de Luiz Cláudio Di Stasi e Clélia Akiko Hiruma-Lima, professores do Departamento de Farmacologia do Instituto de Biociências da Unesp em Botucatu.
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Tempo
O tempo é o maior tesouro de que um homem pode dispor; embora inconsumível, o tempo é o nosso melhor alimento; sem medida que o conheça, é contudo nosso bem de maior grandeza: não tem começo, não tem fim; é um pomo exótico que não pode ser repartido, podendo entretanto prover igualmente a todo mundo; onipresente, o tempo está em tudo; existe tempo, por exemplo, nesta mesa antiga: existiu primeiro uma terra propícia, existiu depois uma árvore secular feita de anos sossegados, e existiu finalmente uma prancha nodosa e dura trabalhada pelas mãos de uma artesão dia após dia; existe tempo nas cadeiras onde nos sentamos, nos outros móveis da família, nas paredes da nossa casa, na água que bebemos, na terra que fecunda, na semente que germina, nos frutos que colhemos, no pão em cima da mesa, na massa fértil dos nossos corpos, na luz que nos ilumina, nas coisas que nos passam pela cabeça, no pó que dissemina, assim como em tudo que nos rodeia; rico não é o homem que coleciona e se pesa no amontoado de moedas, e nem aquele, devasso, que se estende, mãos e braços, em terras largas; rico só é o homem que aprendeu, piedoso e humilde, a conviver com o tempo, aproximando-se dele com ternura, não contrariando suas disposições, não se rebelando contra o seu curso, não irritando sua corrente, estando atento para o seu fluxo, brindando-o antes com sabedoria para receber dele os favores e não sua ira; o equilíbrio da vida depende essencialmente deste bem supremo, e quem souber com acerto a quantidade de vagar, ou a de espera, que deve pôr nas coisas, não corre nunca o risco, ao buscar por elas, de defrontar-se com o que não é (…)
Lavoura arcaica, Raduan Nassar, Companhia das Letras, 1989, págs. 51-3.
Foto: tonivc