Estamos vivendo uma nova pandemia. A cada pandemia, nossos recursos e nossa capacidade de reagir tem aumentado sensivelmente. Mas os nossos problemas, entretanto, ainda são os mesmos: desigualdade, infraestrutura precária, pouco comprometimento das autoridades públicas. E, da mesma forma, em meio à loucura coletiva que se instala, há muito esforço da população e da sociedade para superar e vencer estes momentos tão dramáticos.
Nosso exercício aqui é discutir e trazer alguns dados destas pandemias antigas no mundo e no Brasil. É um esforço para que, através do conhecimento histórico trazido por estas outras pandemias, nos ajude um pouco na compreensão do conturbado momento em que vivemos. Conhecer a história, neste caso um pouco de História da Ciência, é necessário para que este conhecimento possa nos ajudar e – por que não? – nos guiar neste mar revolto que estamos atravessando.
A primeira pandemia da modernidade
No rol das grandes pandemias que assolaram a humanidades nos últimos duzentos anos, as pandemias de cólera merecem um lugar de destaque. (adoto aqui cólera, seguindo a professora Raquel Lewinson, pois, segundo ela, a palavra não é masculina). Sua virulência e sua letalidade, assim como a rapidez com que se espalhou por todos os continentes habitados fez dos diversos surtos de cólera que tem nos assaltado ate hoje (!) momentos de grande sofrimento e apreensão.
A cólera é causada por uma bactéria, o vibrião colérico. Em meados do século XX, além do vibrião colérico “clássico”, os biotipos El Tor e El-Tor-Inaba surgiram para complicar o quadro. Entretanto, o vibrião colérico não tem outros hospedeiros além do homem. Por outro lado, não existem hospedeiros animais conhecidos. O vibrião se encontra nas fezes, tanto de doentes quanto de pacientes assintomáticos. A contaminação das pessoas se dá por ingestão de água ou alimentos contaminados.
Depois de deglutido, se conseguir sobreviver à acidez do estomago, o vibrião chega ao trato digestivo humano. Lá instalado, o vibrião causa muita diarreia e vômitos, além de cólicas abdominais e espasmos musculares violentos. Quando infectada pela cólera, a pessoa fica rapidamente desidratada e com uma coloração azulada, a pele murcha. Assim, a morte se dá pela violenta perda de água, assim como dos eletrólitos nela dissolvidos. Isto causa desidratação, queda do volume de sangue circulando, hipertensão arterial e arritmias cardíacas, bem como falência das funções de circulação do sangue e dos rins.
A Cólera e o Império Britânico
A cólera é originaria da Índia, onde ela é uma doença endêmica, principalmente na região de Bengala. Existem notícias desde 500 a.C., escritas em sânscrito e em grego, relatando doenças parecidas com a cólera. Gaspar Correa, que participou da viagem de Vasco da Gama à Índia, anotou a ocorrência de uma fulminante doença na região do Malabar. Desta forma, Gaspar Correa descreveu uma doença fulminante, uma forte dor de barriga que matava as pessoas em oito horas.
Entretanto, quem mais fez para que a cólera virasse uma pandemia foi o Exército Inglês. Pode-se dizer que a cólera foi a primeira grande pandemia imperialista. Viajando em modernos vapores, os soldados ingleses, os “red coats”, espalharam a doença a partir da Índia para quase todos os portos em que fizeram escala no Oceano Índico, até que chegaram às ruas sujas e fétidas da Londres oitocentista. De Londres, a cólera pegou o trem e espalhou-se rapidamente por todo o Reino Unido. De lá, o vibrião colérico atingiu toda a Europa e, pouco mais tarde, as Américas.
A Pandemia seus tentáculos
Assim, a cólera se espalhou por todo o mundo no século XIX. Os diversos surtos epidêmicos ocorreram principalmente entre os anos 1817-1823, 1826-1837, 1846-1862, 1864-75 e 1881-1896, chegando mesmo aos dias de hoje. Em sua nova forma, com o vibrião El-Tor, a doença voltou a reocupar algumas áreas da Ásia, África e Américas, de onde parecia ter sido extinta. No Brasil, os anos 1990 foram anos de epidemias muito intensas de cólera do tipo el-Tor-Inaba.
Durante a grande pandemia do cólera, que experimentou vários pequenos surtos de mais alta intensidade, as populações expostas a sua ação ficavam apavoradas e desnorteadas. Não era para menos. Entretanto, as autoridades públicas responsáveis por este enfrentamento, embora tomassem diversas medidas, não sabiam exatamente o que fazer. Desta forma, havia uma certa noção que a higiene era importante. Mas não se sabia como a cólera se transmitia. Nem qual seria o tratamento mais adequado.
Pacini e o vacilo de Koch
Os governos e dos cientistas de todos os países durante este tempo gastaram muito tempo e dinheiro na busca de uma solução para se descobrir as causas da transmissão e também a cura da doença.
O vibrião colérico foi descrito pela primeira vez em 1854 pelo médico italiano Filipo Pacini (1812-1883). O trabalho de Pacini, apesar de muito bem feito e com descrições muito boas do patógeno, foi praticamente ignorado pelos patologistas europeus. Algum tempo depois, pelo alemão Robert Koch (1843 – 1910) que fez o anúncio da descoberta do “comma bacillus” em 1883. Motivo pelo qual o vibrião ficou durante muito tempo conhecido como o “bacilo de Koch”.
(A gente não aprende que um dos princípios da ciência é a prioridade nas descobertas? Por este singelo motivo, o vibrião devia se chamar Bacilo de Pacini. No entanto, a questão, como mostraram vários pesquisadores da História das Ciências, é que a ciência não é neutra. Ela tem cara, etnia, gênero definidos. A comunidade médica Italiana tanto protestou contra o injusto esquecimento do excelente trabalho de Pacini. Tanto que, em 1965, o Comitê Internacional de nomenclatura Bacteriológica reconheceu a anterioridade de Pacini e o bacilo foi renomeado como Vibrio colerae Pacini 1854.)
Robert Koch e a bacteriologia
O bacilo (na verdade um vibrião) da cólera foi, portanto, (re)descoberto em 1883-84 pelo Dr Robert Koch (1843 – 1910) e sua equipe. A descoberta do vibrião foi um esforço dos cientistas que construíam a “teoria dos germes”, ou teoria contagionista. Esta teoria pressupunha que as doenças seriam transmitidas através do contato entre as pessoas, que transmitiram os “germes” de uma a outra, provocando o contágio. Entretanto, a aceitação desta explicação, como tudo em ciencia, não era unversal. Existia uma outra teoria, a teoria miasmática, que pressupunha que a doença se espalharia pelo ar contaminado, os “miasmas”. Voltaremos a este assunto em outro post.
Robert Koch, a partir de seu laboratório em Berlim fez várias descobertas importantes, como as bactérias que causam o antraz, a difteria e a tuberculose. Trabalhando em paralelo com Louis Pasteur e outros, foi um dos criadores da moderna bacteriologia. Desta forma, seu laboratório em Berlim foi um dos primeiros no mundo a desenvolver as técnicas de cultura de bactérias que usamos até hoje.
Koch conseguiu isolar o seu “comma bacilus” numa viagem que fez ao Egito e à Índia, para acompanhar dois surtos importantes da doença. A carta que escreveu em 1884 de Calcutá foi importante como o início de novas formas de entender e trabalhar coma doença.
Entretanto, não foi um caminho fácil. Koch ainda teria que provar que o seu “Bacilo” era o transmissor da cólera. Seu embate com o famoso médico alemão Max von Pettenkofer, que defendia uma teoria que mesclava emanações miasmáticas a partir de interações entre o solo e o lençol freático, foram debates importantes neste período.
Pandemias e Sociedade
Entretanto, o desenrolar de uma pandemia, como estamos vendo muito bem no presente, não se resume a contendas de ideias ente cientistas. A força da doença e os impactos na saúde das pessoas também acaba por provocar grandes comoções sociais e políticas. Assim, é desta intrincada relação que temos que escolher os fios que guiam a história destes eventos.
A cólera, juntamente com as outras doenças endêmicas como a tuberculose, a difteria, a febre amarela e tantas outras foi responsável por um grande número de respostas dadas pelas diferentes sociedades para sua erradicação. Entretanto, depois da Pandemia de cólera, a humanidade não seria mais a mesma. Por outro lado, a pandemia não envolveu somente cientistas em seu trabalho de laboratório, por mais importante que este fosse. Envolveu médicos, mas também envolveu engenheiros, arquitetos e políticos.
Desta forma, a cólera, como qualquer outra epidemia/pandemia, quando ataca uma sociedade, e tornou evidentes as suas contradições, principalmente as questões de desigualdade social. Assim, as pestes, por mais democráticas que pareçam, tem uma especial predileção pelas populações mais pobres e, portanto, mais vulneráveis. Por isso, pandemias também são quase sempre misturadas aqui e ali por numerosos protestos e revoltas populares.
Não é à toa que em representações mais antigas a peste esteja sempre associada as suas irmãs, a guerra e a fome.
Temos muita coisa a discutir.
Para saber mais:
Lewinsohn, Rachel. “Três epidemias: lições do passado.” Ed Unicamp, 2003: 318 p.
Coleman, William. “Koch’s comma bacillus: the first year.” Bulletin of the History of Medicine 61, no. 3 (1987): 315-342.
Matéria esclarecedora, principalmente para mim, analfabeto nessas coisas da saúde. Abraço amigo.
Meu querido Edu!! que bom que você gostou!! uma hora destas a gente bate um papo pra botar as conversas em dia...
Artigo muito esclarecedor e com reflexões muito importantes para pensarmos o nosso tempo presente! Parabéns e obrigada!
Muito obrigado, Ana!! É muito importante a gente conhecer nosso passado...e nosso passado epidêmico também...