Arquivo mensais:maio 2018

As glossopetras dão com a língua nos dentes

Olá! Nós somos as glossopetras!

um selfie de glossopetras, mostrando como algumas de nós são bem grandinhas…

Somos fósseis pequenos, de milímetros a decímetros de tamanho. Somos encontrados em abundância nas melhores camadas sedimentares próximas de você. No entanto, somos mais comuns em alguns lugares específicos do mar Mediterrâneo, de onde somos extraídas

em grande quantidade. Um dos lugares mais famosos de ocorrência de glossopetras é a Ilha de Malta.

O nome glossopetra é um nome greco-romano. Reparem: glossós, ou língua, é uma palavra grega. Língua em latim é língua mesmo. E petra é pedra em latim, como até as pedras sabem. Glossopetra, portanto, é um nome greco-romano, que significa Língua de Pedra. Porque parecíamos com pequenas línguas.

Nós somos conhecidas em praticamente todas as línguas e culturas do Velho Mundo.

AMULETOS PARA “SOLTAR” A LÍNGUA…

Para os romanos, nós, as línguas de pedra, éramos amuletos importantes. Segundo se acreditava, nós poderíamos fazer “desatar” a língua das pessoas. Poderíamos também fazer com que as pessoas confessassem os crimes os mais secretos. Da mesma forma, nos usavam também para tornar as pessoas mais subornáveis e colaborativas. Por outro lado, era tamanho nosso poder que alguns romanos mais desabusados usavam nós glossopetras para seduzir pessoas castas para os atos mais inconfessáveis!

No entanto, sábios com Plínio, o Velho, eram mais céticos. Segundo Plínio, os mágicos diziam que as glossopetras caiam dos céus durante os eclipses da Lua. Já imaginaram, uma chuva noturna de pequenas linguinhas de pedra? No entanto, segundo Plínio, isso parecia não ser verdade.  Assim como ele também não compartilhava a crença antiga que as glossopetras acalmavam os ventos.

Monddrache, o Dragão da Lua. Gravura antiga atribuídas pelo astrólogo, nigromante e alquimista Agripa de Netesheim

Além disso, algumas glossopetras maiores  (ver figura acima) eram também chamadas de línguas de dragão. Tinham cerca de dez centímetros de comprimento ou mais. Existia uma lenda, que vinha do cultura nórdica, que atribuía a diminuição da Lua em alguns momentos de seu ciclo à ação de um dragão, o Monddrache, o Dragão da Lua. Essas glossopetras maiores, quase da palma de uma mão humana,  eram chamados de Dentes do Dragão da Lua (Zähne der Monddrache).

SÃO PAULO E AS GLOSSOPETRAS
Selo comemorativo do naufrágio de São Paulo na ilha de Malta. Depois desse naufrágio, nós glossopetras passamos a símbolos do cristianismo…

Na ilha de Malta, onde somos abundantes, há a lenda de que São Paulo, ao naufragar na ilha, teria sido picado por uma víbora. O Santo não se fez de rogado, e atirou a serpente ao fogo. Como resultado, todos os dentes e olhos das cobras de Malta foram petrificados. Por isso, em alguns lugares, somos também chamadas de línguas de serpente. As serpentes que hoje existem na ilha de Malta não são venenosas, confirmando assim, empiricamente, a ação milagrosa do apostolo. Essa lenda também aparece na Irlanda, com São Patrício. Aqui nós já comentamos sobre Santa Hilda de Whithby e os amonites.

Há uma outra lenda, muito posterior, dizendo que São Paulo transformou a sua própria língua em pedra, com numerosas propriedades medicinais. Por outro lado, os cavaleiros Normandos, que conquistaram Malta em 1090 AD, logo se aproveitaram dessa lenda e logo vendiam para toda a Europa as famosas (e milagrosas!) línguas de São Paulo. Com muito lucro, diga-se.

UM PODEROSO ANTÍDOTO CONTRA QUASE TUDO
Natterbaum, ou “arvore das serpentes”, peça em prata sobredourada representando a genealogia de Cristo. Esta peça era usada como proteção para venenos. No centro em cima há uma enorme Língua de Dragão.

Existiram, também, diversas as aplicações medicinais das glossopetras. Durante a Idade Média, acreditava-se que nós, glossopetras, éramos poderosos antivenenos. Poderíamos detectar a presença de veneno mudando de cor ao sermos mergulhadas numa taça de vinho. Desta forma, éramos usadas como contraveneno de cobra, para acelerar o parto e como poderoso talismã na proteção contra bruxarias.

Durante a Renascença, o geografo holandês De Laet (1581-1649) enviou algumas glossopetras para serem usadas para males bucais. Entre os usos registrados estão a dor de dentes e para aliviar as dores da dentição em crianças.

Os usos das glossopetras como medicamento foi muito difundido. A “Terra de São Paulo” , como era conhecido o material contendo as glossopetras maltesas, era comercializada como remédio até fins do século XIX. Um vasto mercado, como diríamos hoje. No entanto, a ocorrência de falsificações levou muitos governos desde o século XVII a realizar verificações e autuações em materiais tidos como Terra de São Paulo.

Nós, glossopetras, poderíamos contar muitas mais histórias e lendas, meninxs.

DENTES DE TUBARÃO?

No entanto, temos que confessar uma coisa: somos, na realidade, dentes de tubarão. Sim, dentes de tubarão. Boa parte de nós glossopetras somos simplesmente dentes de tubarões lamniformes. Contudo, as maiores glossopetras são provenientes do gigantesco Charcharodon megalodon, uma espécie extinta de um tubarão gigante que viveu entre o Mioceno até o fim do Plioceno (para vocês humanos que não tem noção de tempo, significa um período entre 23,3 até 3,3 milhões de anos atrás).

Uma estimativa do tamanho provável do Charcharodon megalodon (cinza e vermelho) com o tubarão Baleia, o tubarão Branco e um ser humano;

Como foi que mudou a ideia de que nós éramos pedras singulares com poderes mágicos e medicinais e nos tornamos meramente dentes de grandes bestas pré-históricas? Esta discussão, por mais simples que pareça, está na base da moderna Geologia.

BRINCADEIRAS DA NATUREZA

vocês podem não acreditar, mas nem sempre os fósseis foram aceitos como hoje: restos de organismos preservados por algum processo. Durante o Renascimento, a utilização de alguns conceitos aristotélicos, como a petrificação, levou alguns  sábios a aceitar que os fosseis poderiam ser objetos gerados espontaneamente nas rochas. Seriam as “virtudes plasticas” defendidas, entre outros, pelo sabio veneziano Girolamo Fracastoro (1476-1553). Seriam meras “brincadeiras da natureza”.

Outros sábios, entretanto, achavam que os animais e plantas petrificados eram realmente restos de organismos. Entre estes estavam, por exemplo, o famoso medico modenesi Gabrielle Falllopio (1523-1562).  Mas quais organismos seriam esses? existiriam realmente ou eram seres já extintos? Isso levava a uma outra questão: se os seres eram extintos, era sinal que eram seres imperfeitos? Deus, por acaso, fazia coisas imperfeitas? Essa era a grande discussão das ciências naturais nestes período.

FABIO COLLONA E AS GLOSSOPETRAS
o sabio neapolitano Fabio Collona (1567-1640), autor de importante estudo sobre nós, glossopetras!

Nós, as glossopetras, estivemos ativas neste debate. Um dos trabalhos mais imortantes sobre nós foi realizado pelo naturalista napolitano Fabio Collona (1567 – 1640), da Academia dei Lincei (dos linces, animal que enxerga mais longe) e amigo de Galileu. Collona estabeleceu que eramos restos de organismos. Para isso, ele calcinou algumas de nós (ui!) e viu que éramos formadas por matéria orgânica. Por outro lado, a terra que nos envolvia não tinha a mesma origem. Logo, segundo Collona, as glossopetras eram restos orgânicos.

a semelhança com os dentes de tubarão também chamou a atenção de Collona. Assm, ele sugeriu que pudessemos representar restos de antigos tubarões, e não pedras magicas ou antivenenos. Mas era necessário mais algum debate para poder afirmar isso com segurança.

NICOLAU STENO E OS DENTES DE TUBARÃO

Foi Nicolau Steno quem estabeleceu a relação dos tubarões com as glossópetras. Para

tubarão glossopetras
Cabeça de tubarão estudada por Steno e as glossopetras

tanto, ele estudou a carcaça de um tubarão capturado ao longo da costa de Livorno em 1666 e confirmou a semelhança entre as glossopetras e os dentes dos tubarões. Para isso, Steno usou de suas habilidades como anatomista e fez uma comparação usando o método da anatomia forense. Assim, tim-tim por tim-tim, ele explicou as semelhanças entre as duas.  Desta forma, ficou bem claro, para bons e maus entendedores, que as glossopetras eram dentes de tubarão.

Contudo, a polêmica ainda durou mais alguns anos. Somente em meados do seculo XVIII é que os fósseis foram aceitos como restos de organismos e tomaram o sentido que tem hoje. Para tanto, nós, glossopetras, tivemos um papel fundamental.

COM A LÍNGUA NOS DENTES

Assim sendo, hoje nós não somos mais fósseis, e sim uma parte deles. Desta forma, não somos mais tão importantes e procuradas como no passado, empobrecendo talvez alguns mineradores. Contudo,  nós somo muito orgulhosas de nossa participação. De fato, nossa presença nestes debates serviu para que os fósseis fossem reconhecidos como hoje são. Mais que isso, houve uma mudança na maneira como as pessoas enxergavam as camadas de rocha.

Assim, o que era só brincadeira da natureza passou a significar também testemunhos da história terrestre. O grande livro da natureza podia afinal ser lido. A história da natureza, com o tempo, passou a ser maior que a história humana. Por um lado, a história natural pode ser lida em milhões e mesmo bilhões de anos. Por outro lado, outras preocupações vinculadas com esta historia natural passaram a ocupar o centro da vida das pessoas.

Entretanto, questões como evolução das espécies, mudanças climáticas, grandes extinções, etc só fazem sentido num tempo longo. E estão nas agendas das pessoas e dos governos de hoje. Contudo, nada disso seria possível sem entender que pequenas linguinhas encontradas nas rochas possam ser dentes de tubarões.

Nada mal, não?

PARA SABER MAIS:

Hsu, K.T., 2009. The path to Steno’s synthesis on the animal origin of glossopetraeThe Revolution in Geology from the Renaissance to the Enlightenment. Geological Society of America, Boulder, CO, Memoirs203, pp.93-106.

Rosenberg, G.D. ed., 2009. The Revolution in Geology from the Renaissance to the Enlightenment (Vol. 203). Geological Society of America.

O problema não é o 13, é o 14! O mito do Carbono 14 na Paleontologia

Há quem diga que o treze é um número da sorte. E há também aqueles que não gostam das sextas-feiras 13… 

Mas como professora de paleontologia já há alguns anos eu tenho dificuldades com o 14. Na verdade, com o Carbono 14 (C14).

Em algum momento da vida de vocês, meus queridos alunos e/ou leitores, alguém lhes falou sobre ele. E eu não sei bem os motivos da mídia e de alguns livros de conteúdo básico sobre geociências enfocarem a datação por carbono 14 como sendo a resolução de todos os problemas na vida de um paleontólogo; mas, claro, essa técnica não é tudo isso.

A simplificação que normalmente vejo nos textos sobre o assunto passa uma ideia errada de como a datação de materiais fósseis realmente funciona.

Mas vamos começar do início…

Datação de quê? Idade do organismo ou há quanto tempo ele viveu/morreu?

Para obtermos a idade de algum material, necessitamos de alguma técnica que meça a quantidade de anos que aquele material tem, ou que nos indique uma idade aproximada do material em questão. Com isso eu quero dizer o seguinte: se um organismo viveu durante 30 anos, no período Triássico (250-200 M.a.), a idade que iremos obter com algum método de datação é a idade triássica. A idade do organismo (se era jovem, adulto ou idoso) também pode ser obtida, de forma aproximada, com nossos conhecimentos sobre o desenvolvimento ontogenético do grupo ao qual aquele organismos pertence; mas não é sobre isso que iremos tratar aqui, ok?

O que é necessário para datar?

O método Carbono 14 necessita de matéria orgânica para ser utilizado.

Os fósseis, como nós já falamos por aqui no blog, nada mais são que restos ou vestígios de vida pretérita transformados (em algum grau) em rocha (litificados). Existem, sim, casos onde há preservação de material orgânico original. Mas na maioria das vezes, esse material é perdido no processo de litificação. Então, na maioria das vezes, não há Carbono para ser datado nos fósseis.

Quais as premissas da técnica?

Toda técnica utilizada pelos cientistas segue algumas premissas e possui alguns limites.

Uma das premissas é que o material tenha Carbono, como falamos antes. Então, se quisermos saber a idade de uma rocha (que não tenha C), o método de C14 não pode ser aplicado.

Isótopos são elementos químicos (isto é, têm prótons, nêutrons e elétrons) que possuem número atômico igual (número de prótons) mas um número de massa diferente (média ponderada das massas dos isótopos, isto é prótons + nêutrons). No caso da Carbono, encontramos na natureza vários isótopos, e os mais comuns são C12, C13 e o famoso C14. A abundância natural desses isótopos é diferente, sendo o C12 o mais estável e mais comum dentre todos. Sendo o mais comum (e também por outros motivos) os organismos utilizam-se mais do C12. No entanto, o C14, apesar de raro, também é incorporado pelos organismos.

O C12 com 6 prótons e 6 neutrons. Fonte.

O C14 não é tão comum quanto o 12 basicamente por dois motivos: porque ele se forma na alta atmosfera pela ação de raios cósmicos e descargas elétricas em nitrogênios (eventos aleatórios), e porque o C14 é um isótopo instável de Carbono, isto é, ele se transforma em nitrogênio novamente, para alcançar sua estabilidade. Esse fenômeno é muito bem explicado no vídeo que coloquei nas referências deste texto.

No princípio do desenvolvimento da técnica de C14, uma premissa importante para o estudo era que a formação do C14, apesar de rara,  seria constante para os últimos séculos. Hoje sabe-se que houve variação e uma tabela já foi construída para adequação das análises.

O quadro abaixo mostra os diversos isótopos de Carbono e a duração de suas meias-vidas na natureza ( em segundos “s” ou minutos “m”. Fonte):

Simb % natural Massa Meia vida
9C 0 9,0310 0,127 s
10C 0 10,0169 19,3 s
11C 0 11,0114 20,3 m
12C 98,93 12,0000 Estável
13C 1,07 13,0034 Estável
14C 0 14,0032 5715 a
15C 0 15,0106 2,45 s
16C 0 16,0147 0,75 s
17C 0 17.0226 0,19 s

Como o C14 chega a fazer parte da matéria de um carnívoro?

As plantas, por meio de fotossíntese, utilizam os CO2 produzidos pelas descargas elétricas e impactos de raios cósmicos nos N; seguindo a cadeia alimentar, os animais que predam plantas, incorporam esse C instável, e por conseguinte, o C14 chega aos carnívoros que predam estes herbívoros.

Todo paleontólogo usa esta técnica?

Nem todo o paleontólogo sabe dizer a idade exata (em números absolutos) do material com que trabalha. Eu, por exemplo, nunca datei absolutamente nenhum fóssil com que já trabalhei. O C14 é usado para datar materiais de até 50 ou 60 mil anos. Eu trabalho com fósseis de 400 milhões de anos!

O limite do método se dá por um viés analítico. Como o C14 é muito raro em proporção na matéria a ser analisada, após 10 decaimentos suas porcentagens são tão pequenas que ele fica quase impossível de ser detectado. Após 10 decaimentos o material tem cerca de 50 mil anos, uma vez que a meia-vida do C14 tem 5.730 anos.

Como se conta o C14?

O primeiro a realizar a contagem de C14 foi o pesquisador Libby, utilizando um contador Geiger. Ao se desintegrar, um C14 emite uma partícula beta; essa partícula é detectada pelo referido equipamento. Ao colocarmos 1 grama de C atual (de algum ser vivo), temos 13,6 contagens por minuto. Sabendo disso, usamos da matemática para saber quanto 1g de alguma amostra fóssil pode indicar em termos de idade. Se a contagem for de 6,8, significa que uma meia vida já passou, isto é, o organismo em questão morreu há 5.730 anos. Outras técnicas mais recentes e precisas já foram desenvolvidas, utilizando, por exemplo, a contagem dos átomos em si e comparando-se suas proporções. Mais detalhes sobre isso podem ser lidos aqui.

É fato que a maioria das pessoas, quando questionada sobre datação, lembra do C14. Mas veja, para o estudo paleontológico de materiais mais antigos que 50 mil anos, a técnica não pode ser utilizada! Lembrando que o planeta tem 4,5 G.a., o C14 não é o principal método de datação em paleonto…! Outros métodos são muito mais comuns, como a datação relativa das camadas e também as datações absolutas de rochas ígneas + datação relativa das camadas de rochas sedimentares.

Como datar absolutamente uma camada?

Quando temos rochas ígneas, podemos usar métodos de datação como Rubídio-Estrôncio, Chumbo-Chumbo, Urânio-Chumbo, Potássio-Argônio, entre outros. Neste caso, esses elementos químicos instáveis foram formados  quando houve a geração dos minerais que compõem as rochas, por isso, assim que eles solidificam, seu decaimento inicia e a contagem do tempo através das suas meias-vidas pode ser obtida. Cada relação isótopo-pai/isótopo-filho tem uma longa série de intermediários que se formam e possibilitam a datação absoluta. 

E agora... você já sabe quais métodos mais usamos?
Por isso o C14 não é uma técnica utilizada em materiais mais antigos que 50 mil anos, e portanto, não é muito utilizado em Paleontologia. Observe, portanto, a imagem abaixo e me diga o que poderia ser melhorado nela?!

 

decaimento radioativo do C14
Ilustração que mostra o decaimento radioativo do C14… mas que induz as pessoas a achar que é possível datar um fóssil de dinossauro com C14. Fonte.

 

Referências

http://www.deboni.he.com.br/dic/quim1_006.htm

https://manualdaquimica.uol.com.br/quimica-geral/isotopos.htm

http://www.seara.ufc.br/donafifi/datacao/datacao5.htm

Um outro post nosso sobre o tempo geológico, pode ser lido aqui.

Abstrato e concreto: as duas caras de uma concreção

As concreções são aquelas bolas, bolinhas, etc. que estão presentes em muitos locais, associadas a camadas de rochas. Em geral elas são produto da cimentação diferencial de minerais como cálcio, sílica, ferro, pirita, etc. ao redor de um núcleo, por efeito de variações no meio circundante, que podem ser consequência de mudanças no pH, por exemplo. Caso do núcleo ao redor do qual acontece a deposição seja um resto orgânico, poderá ocorrer a preservação e, por conseguinte, a fossilização. Também podem ser formadas concreções nos rins ou cálculos renais, mas aí é bem mais doloroso que no caso das fossilíferas. Um tipo muito famoso de concreções são aquelas que contêm os fósseis de peixes da Formação Romualdo, do Cretáceo da bacia do Araripe. Nelas, o concreto são os fósseis e o abstrato, a interpretação de quando, como e por que. A maioria dessas concreções possui no seu interior osteíctes (peixes ósseos), em muitos casos com todo o corpo e até com músculos, como o coração, e a última refeição ainda a meio digerir dentro do estômago. No caso das concreções (ou ictiólitos) da Formação Romualdo, o mineral associado a elas é o carbonato de cálcio. Uma das explicações acerca da sua formação e abundância refere-se a episódios de mortandade em massa, como consequência de variações na salinidade, temperatura e oxigênio. Neste caso, muitos dos peixes teriam sido preservados devido à liberação de gases produzidos pela sua decomposição (principalmente metano), gerando mudanças do pH, o que que criou um micro ambiente ao redor deles, dentro de um lago hipersalino, propiciando a deposição do carbonato sobre os organismos, o que favoreceu a sua rápida preservação. A deposição do carbonato só parou na medida em que a emissão de metano cessou.

Trincheira para coleta de concreções na Formação Romualdo, as setas vermelhas indicam a localização das concreções no meio das camadas de rocha

Em diversas pedreiras de carbonatos da Formação Irati, aqui no estado de São Paulo, é possível encontrar, entre as camadas rochas calcárias, concreções de sílica cujas dimensões variam de centímetros a metros. Neste caso, as camadas de rocha correspondem à deposição de carbonato num ambiente de sedimentação marinho raso dentro um clima semi-árido. Assim, o silício que estava dissolvido nessas águas alcalinas (pH acima de 7) foi sendo depositado na forma de um gel em momentos de nível do mar mais baixo, ou de pH mais ácido devido à decomposição da matéria orgânica, que libera CO2. Podendo ser encontrados níveis mais ricos em concreções de sílica do que outros ou mesmo camadas completamente silicificadas. Algumas concreções crescem em formatos mais alongados, tocando concreções vizinhas, formando o que denominamos “bonecas de sílica”. No meio delas muitas vezes tem microfósseis, como pólens, fragmentos de carvão de queimadas, cianobactérias etc.

Outras concreções podem ser ferruginosas, ou seja, compostas por camadas sucessivas de ferro e associadas a locais com climas muito úmidos e quentes, característicos de regiões equatoriais, com a Amazônia. Outras concreções, mais familiares a nós, são os cálculos renais ou biliares, que tanto fazem sofrer aos seus donos para serem expulsos …enfim, o conteúdo e a composição são a cara concreta das concreções.

Agora, qual seria o lado abstrato das concreções? O lado abstrato está associado às interpretações que são realizadas sobre o conteúdo e os elementos que a formam as concreções, ou seja, interpretações sobre a idade dos fósseis envolvidos nas camadas, qual era o clima reinante na época da deposição, a causa da morte etc.

Concreções de osteites expostas no museu de Santana Ana do Cariri, CE

O mesmo acontece quando somente empilhamos e descrevemos camadas de rochas levando em consideração só a parte concreta, ou seja, apenas o que vemos na rocha, como minerais, fósseis etc., enquanto que outra visão, abstrata, diz respeito à interpretação do que a forma, ou seja, as inferências acerca do significado do seu conteúdo que pode variar conforme a ciência avança… e se refere a uma abstração… Assim, temos o tempo rocha ou litoestratigráfico, que é o lado concreto, e o cronoestratigráfico, que abarca concreto e abstrato… e por fim as unidades geocronológicas que são totalmente abstratas e que tratam das divisões do tempo geológico: (i) Éons (por exemplo Arqueano, Fanerozoico, etc.);

(ii) Eras (por exemplo Paleozoica, Mesozoica, etc.); (iii) Períodos (como Cambriano, Cretáceo, Quaternário, etc.) e (iv) dos seus limites, que estão relacionados a eventos geológicos/biológicos como extinções, orogenias, etc

 

**texto de autoria da Profa. Frésia

O sólido dentro do sólido: Nicolau Steno, o cientista que virou santo

Nicolau Steno
Retrato de Nicolau Steno, pintado em Florença

Nicolau Steno foi um dos homenageados no Congresso Internacional de Geologia de 2004, realizado em Firenze. Lá, os cientistas inauguraram uma placa, onde faziam menção às suas imorredouras contribuições para a Mineralogia, a Paleontologia e a Estratigrafia. Boa parte delas havia sido realizada no tempo que que Nicolau Steno morou ali, na Toscana.

No entanto, alguns anos antes, em 1988, o Papa João Paulo II o proclamou como “bem-aventurado Nicolau Steno”. Sabemos que, quando morreu, Nicolau Steno era um bispo católico, que trabalhava no norte da Alemanha. Seus últimos anos lhe deram aura de Santo. E quase santo ele é. Hoje ele é um Beato e a festa litúrgica em seu nome ocorre no dia de sua morte, em 5 de dezembro.

Quem era, afinal, Nicolau Steno? O cientista ou o beato?

NIELS STENSEN, O SOBREVIVENTE

Nicolau Steno é uma latinização de seu nome dinamarquês, Niels Stensen. O pequeno Niels nasceu e foi batizado em Copenhagen em 1638. Era o filho do ourives que prestava serviços para o rei Cristiano IV da Dinamarca. O pequeno Niels, que era muito doente a ponto de não poder brincar com as outras crianças, cresceu numa família fervorosamente luterana. Na falta dos brinquedos, brincava com os objetos de ourives de seu pai.

O pequeno Niels, no entanto, era mais forte do que se supunha. Na escola que frequentou, mais de duzentas crianças morreram entre 1654-1655 por causa de uma peste. Contudo, Niels Stensen sobreviveu. E tomou interesse por estudar os corpos humanos. Seu interesse era a Anatomia.

A Anatomia era uma febre (!) na época. Aulas de Anatomia eram disputadas ferozmente pelos acadêmicos. Tudo fervilhava de curiosidade de conhecer melhor o corpo humano.  Aos 19 anos, Niels Stensen entrou para a universidade de Copenhagen, para estudar medicina. Em seus estudos acadêmicos, revelou-se um promissor anatomista. E Copenhagen começou a ficar pequena para seu talento.

NICOLAU STENO, ANATOMISTA

A partir daí, Niels Stensen passou a viajar. E nunca mais parou. Inicialmente, esteve em várias cidades da Europa, estudando anatomia. Em Amsterdam estudou com Gerard Blasius, que estava estudando o sistema linfático. Da mesma forma, em Amsterdam, Stensen também conheceu o filosofo e polidor de lentes Baruch de Spinoza. O que será que eles devem ter conversado?

O jovem estudante Niels Stensen era apaixonado pela filosofia de René Descartes. No entanto, mais tarde, ele renegou a teoria cartesiana. Muito cedo, Steno percebeu algumas contradições na obra do mestre. Descartes, por exemplo, afirmou que a glândula pineal era a sede da alma humana. Steno, com base em suas observações, mostrou que Descartes estava errado.

Steno descobriu, entre outras coisas, que existe um duto que leva saliva até a boca, os dutos parotídeos ou dutos de steno. Por outro lado, Steno descobriu também que o coração era um músculo. E que os cálculos eram pedras que se formam por acúmulo nos órgãos. Descobertas notáveis, por certo.

O CARTESIANO ANTI-DESCARTES

Um a um, Steno acabou por desmentir diversos postulados anatômicos de Descartes. Com o tempo, tornou-se violentamente anti-cartesiano, negando qualquer relação de suas descobertas com o pensamento do filosofo francês. Não obstante, com o perdão do trocadilho, pode-se dizer que Steno não descartou Descartes.

Efetivamente, ao apreciar a obra de Steno, percebe-se o quão cartesiano ele era.  Quando se vê o mundo de idéias construído por Steno, o que se vê é um universo mecanicista, tipicamente cartesiano. Por outro lado, neste universo stenoniano,  a matéria sólida e particulada se movimentava segundo leis físicas determinadas, como um grande mecanismo.  Logo, tudo se movia no universo de Steno de acordo com a filosofia de Descartes.

A “REPÚBLICA DAS LETRAS”

Em suas viagens Steno acabou por conhecer o seu conterrâneo Ole Borch, importante anatomista da época e um sábio relacionado com as Academias de Ciência que então surgiam. Esse movimento de acadêmicos de vários países em constante comunicação formaram o que se chamou de “República das Letras“.  Era o embrião do moderno sistema de academias e periódicos científicos que se formava. Não por acaso, muitos periódicos modernos ainda ostentam em seu nome a palavra “Letter“. Pois não eram mais que isso: cartas enviadas para as diferentes associações cientificas, que eram lidas nas sessões ordinárias destas academias e discutidas por seus membros.

Todavia, uma vez que Ole Borch, como membro destacado da Republica das Letras,  tinha muitas ligações com a Royal Society de Londres. Foi através de Borch que Steno teve contato com a teoria atomística de Robert Boyle. Esta foi outra das grandes inspirações de Steno. Por meio da leitura de Boyle e sua obra, Steno começa a se interessar por uma Ciência que ainda não existia, a Geologia. Foi neste ponto de sua carreira que ele foi convidado por Ferdinando II, Grão-Duque da Toscana, a ser o anatomista da corte. Em Firenze, sua vida iria mudar. De novo.

Lá, Nicolau Steno vai desfrutar do ambiente da Corte e, principalmente, dos sábios reunidos na “Academia Del Cimento“. Essa academia, fundada pelos Médici, reunia alguns dos mais importantes pensadores italianos da época. Steno torna-se amigo de Marcello Malpigui, Vicenzo Viviani, Francesco Redi, entre outros.

 PEDRAS EM FORMA DE LÍNGUA

Em 1666, um tubarão foi pescado na costa de Livorno. A cabeça deste tubarão foi enviada à Firenze para que Steno pudesse disseca-lo. Steno notou que os dentes do tubarão eram muito parecidos com as glossopetras. Estas glossopetras, as “Línguas de pedra”, eram fósseis muito comuns no mediterrâneo. Eram conhecidas desde os tempos romanos. Havia muito tempo que Outros sábios haviam reivindicado que as glossopetras eram dentes de tubarão. Entre eles, destaca-se Fábio Colonna. no entanto, a pericia anatômica de steno foi muito importante para que estes objetos fossem reconhecidos como restos de animais, ou no sentido moderno, fósseis.

tubarão glossopetras
Cabeça de tubarão estudada por Steno e as glossopetras

Em seguida, Nicolau Steno, de anatomista, passou a naturalista. Fez diversas viagens pela Toscana, onde juntou material para escrever sua grande obra. Aparentemente,  essa obra seria muito grande. Tão grande que Steno começou a escrever o principio, ou o “pródromo”. E assim surgiu uma das grandes obras da Ciência moderna.

PRÓDROMO DE UM SOLIDO CONTIDO EM OUTRO SOLIDO

No Pródromo, Steno procura explicar que haviam varias formas distintas de sólidos contidos nas rochas. Alguns destes sólidos eram fragmentos que eram depositados junto com as rochas, como os fósseis. Um sólido dentro de um solido. Assim ele justificava a existência de diversos materiais parecidos com organismos vivos encontrados nas rochas. como , por exemplo, as glossópetras.

Por outro lado , haviam substancias que cresciam no interior das rochas, os cristais. Steno propôs que os cristais de uma mesma especie teriam o mesmo ângulo entre as faces. E que os cristais poderiam crescer dentro das rochas. Um sólido, um outro sólido, dentro de outro solido. Com esta proposição, a moderna mineralogia começa a existir.

Além disso, Steno também propôs uma evolução geológica para as rochas da região da Toscana. Segundo se pode ler no pródromo, as rochas sofriam erosões internas, com intensos abatimentos de blocos. estes blocos abatidos eram ocupados por outras rochas, mais novas e assim por diante. Com isso, ele explicou diversas sucessões estratigráficas, alem de enunciar o principio de superposição de camadas que hoje leva o seu nome.

Steno
Assim Steno explicou os ciclos sedimentares que ele observou nos arredores de Firenze
PADRE STENO ? BISPO STENO?

No entanto, uma outra mudança se operava com Nicolau Steno. Influenciado por seus amigos da academia Del Cimento, Steno acabou por se converter ao catolicismo em 1671. Mais do que isso: praticamente abandonou seus estudos de Anatomia e Geologia e passou a dedicar-se aos estudos teológicos. Assim, em 1675 ordenou-se padre católico e em 1677, bispo.

Nicolau Steno, vestido como Bispo Católico

Movido pela religiosidade, no entanto, Steno devotou cada vez mais tempo para sua fé. Sua energia e seu entusiasmo o levaram a ser evangelizador católico no norte da Alemanha, uma terra ferrenhamente protestante. E foi isso que Steno foi em seus últimos anos de vida. Desta forma, andando de cidade em cidade, tentando converter as pessoas ao catolicismo romano, Steno empregou todas as suas forças. Adquiriu fama de santo.

UM MÁRTIR CATÓLICO

Steno trabalhou inicialmente em Hanover, onde conheceu Leibniz, de quem se tornou amigo. Depois, foi para a cidade de Schwerin. Lá, em meio hostil, Steno trabalhou incansavelmente. Contudo, sua saúde começou a fraquejar. Muito doente, acamado, Steno morreu em 5 de dezembro de 1686 cercado por seus paroquianos.

Sua fama de evangelizador foi intensa. Desta forma, o caráter de sua conversão do luteranismo para o catolicismo de um sábio destes porte o transformou num herói católico. por conta de um processo de beatificação que durou mais de 50 anos recolhendo provas, Steno foi beatificado pelo para João Paulo II em 1988.

BEATO  OU CIENTISTA?

A vida de Nicolau Steno, entretanto, nos deu mostras do intenso ambiente intelectual do

seculo XVII. Como filosofo natural (a palavra cientista ainda não existia), Steno fez algumas afirmações interessantes e duradouras. Contudo, haviam ainda um grande caminho pela frente. Nada do que disse ou escreveu mudou instantaneamente a historia da Ciência ou da humanidade. Por um lado, muitos filósofos naturais continuaram a obra de Steno, e foram elaborando as bases da nova Ciência que só foi surgir, afinal, no seculo XIX, a Geologia.

Por outro lado, Steno e sua conversão, sua vida de Beato, foram exemplos para muitas pessoas que tinham preocupações religiosas. Não foi à toa que seu processo de beatificação foi levado a efeito no século XX, um século tão esmagadoramente dominado pela Ciência. Como que para provar para nós todos que mesmo um grande cientista pode ter preocupações de natureza religiosa.

Sem dúvida, o método cartesiano do experimento e da dúvida foi o grande marco na vida de Steno. A dúvida fez com que ele fosse cada vez mais rigoroso em suas observações e seus experimentos, do lado cientifico. Entretanto, do lado religioso, a dúvida fez com ele ele perdesse sua fé e se iniciasse numa outra, numa fé nova. E isso não é trivial.

Santo ou cientista, contraditório e paradoxal, Nicolau Steno foi um baita ser humano.

para saber mais:

Yamada, T., 2009. Hooke–Steno relations reconsidered: Reassessing the roles of  Ole Borch and Robert Boyle. The revolution in geology from the renaissance to the enlightenment203, p.107.

Vai, G.B., 2009. The Scientific Revolution and Nicholas Steno’s twofold conversion. The Revolution in Geology from the Renaissance to the Enlightenment203, p.187.