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Coincidências (milagres??) paleontológicos: as preservações excepcionais

Qual a probabilidade de você conversar com alguém sobre algo que você não sabe muito bem e, no dia seguinte, abrir um livro e encontrar exatamente aquele assunto? Ou então, de você ir a um sebo e encontrar à venda um livro que um parente distante seu havia adquirido há anos atrás? Talvez estes pequenos exemplos não sejam reconhecidos como milagres. Na verdade, eu prefiro pensar em coincidência mesmo. Mas de uma probabilidade infinitesimalmente pequena.

Eu já falei em posts anteriores que o processo de preservação e também o da descoberta de um fóssil é um evento raro. Mas tem alguns casos que são surpreendentes, e é sobre um deles que vou escrever hoje; envolve a descoberta de um nodossauro de 110 M.a. na região de Alberta, Canadá.

Localização da cidade onde uma descoberta incrível ocorreu.

A história, que foi divulgada em vários sites, conta que um operador de máquinas de uma mina em Fort McMurray, trabalhava na retirada das rochas arenosas impregnadas com óleo (trabalho este que exercia há 12 anos pelo menos), quando se deparou com algo distinto, muito mais duro que as rochas do entorno. Em seu cotidiano de trabalho era comum encontrar troncos petrificados, mas nunca havia se deparado com um… resto de dinossauro. Resto de dinossauro! E a história não termina por aí. Não era apenas um conjunto de ossos de dinossauro, como a maioria dos registros de vertebrados que ouvimos falar…

O animal completo (isto é, todas as suas partes) deveria estar contido naquela rocha, e isso, por si só já é raro no registro. Mas o mais incrível desta história é que não são somente os ossos que ficaram preservados. As impressões da pele, escamas, osteodermas, ossos, e, possivelmente, até sua última refeição, estão ali! E ainda: sua forma original está mantida, ele não está intensamente deformado e achatado.

Apesar de ter sido encontrado em 2011, até hoje os estudos com o espécime continuam. Durante a retirada do fóssil do local em que foi encontrado, somente se conseguiu resgatar a sua porção mais frontal, do focinho até o quadril, e um outro bloco, com a cauda. Foram necessárias cerca de 7.000 horas de trabalho em laboratório para preparar o crânio e a cauda para estudo. Esta preparação consiste basicamente na retirada de rocha do entorno do fóssil. O torso do animal ainda está em preparação. O bloco que o contém pesa cerca de 15 toneladas. Hoje ele está depositado na coleção do Museu Real de Ontário (ROM). Seu nome científico é Zuul crurivastator.

Este é o fóssil mais bem preservado de nodossauro  já descoberto. Este é Zuul crurivastator. Foto da National Geographic

Todo o contexto geológico em que ele foi encontrado é também muito interessante. O animal que, em vida, era terrestre e herbívoro, foi encontrado em sedimentos que registram o fundo de um antigo mar. Acredita-se que seu corpo tenha sido carregado, inflado, boiando e em decomposição parcial, por um rio, e quando a carcaça liberou seus gases internos (produtos da decomposição), ela já estava em mar aberto, onde mergulhou para as profundezas, foi soterrada, e ali permaneceu para ser encontrada em 2011.

Zuul, um monstro do filme Caça-fantasmas

De acordo com o Museu Real de Ontário os nodosauros são dinos pertencentes à infraordem Ankylosauria e eram vertebrados terrestres com 4 patas, corpos achatados, longos e recobertos por uma armadura óssea. Sua cauda apresentava espinhos, e, por vezes, uma clava em sua extremidade. Quando em vida devia chegar aos 6 metros de comprimento e pesar cerca de 2,5 toneladas. Foi o fato de apresentar narinas largas e 4 chifres no crânio (atrás e embaixo dos olhos), que levou à classificação em um novo gênero, o Zuul. Este nome, aliás, remete a um monstro do filme dos Caça-fantasmas! Há! Não posso deixar de fazer referência a um post anterior do blog (este aqui). Já falamos que é possível que restos de fósseis de grandes tamanhos tenham dado origem às lendas dos dragões, não é mesmo? Vejam, no caso de Zuul, o monstro do filme, isto é, a criação humana para uma história de ficção científica, é anterior à própria descoberta do fóssil. Como pessoas influenciadas pelo seu contexto histórico e social, os cientistas envolvidos na taxonomia do fóssil de Alberta homenagearam a ficção! Não é legal?

Vocês acham eles parecidos? à esquerda a reconstrução artística do fóssil Zuul, à direita, Zuul, do filme Caça-fantasmas. Fonte: The guardian.

 

Veja a publicação científica desta descoberta aqui.

Você pode ver as imagens e a matéria que inspirou este post abaixo:

http://www.nationalgeographic.com/magazine/2017/06/dinosaur-nodosaur-fossil-discovery/

https://www.scientificamerican.com/article/new-dinosaur-resembles-ghostbusters-monster-zuul/

 

Fonte das imagens:

https://www.theguardian.com/science/2017/may/10/meet-zuul-destroyer-of-shins-the-75m-year-old-ghostbuster-dinosaur

http://www.nationalgeographic.com/magazine/2017/06/dinosaur-nodosaur-fossil-discovery/

Grandes Extinções: um dia da caça, outro do caçador

 

Algumas das mas famosas vitimas das extinções, trilobitas, ammoide, nautiloide reto e bivalve.

Extinção é para sempre, como casar pela igreja … mas no último caso, os interessados combinam a hora, dia, mês e ano. Mas no caso das extinções, o processo precisa da conjunção de vários fatores e os principais envolvidos … bom… não estão assim muito felizes!

O que define uma extinção em massa? Pelo geral, o desaparecimento de pelo menos 50% das espécies continentais e marinhas conhecidas, deve se tratar de um evento cosmopolita e pode acontecer somente num pulso ou em vários estágios. Nós estamos aqui graças à última das extinções em massa, que aconteceu há 66 Ma e os nichos diurnos ficaram disponíveis aos mamíferos até então mais restritos à noite.

Nos últimos 540 Ma da história da vida no nosso planeta acredita-se, por enquanto, que aconteceram pelo menos cinco extinções em massa e 15 intervalos de extinções menores. Então extinções não são fatos isolados na história da vida! As cinco maiores aconteceram, da mais antiga à mais recente, na seguinte ordem:

– próxima do limite entre os períodos Ordoviciano-Siluriano (443 Ma). Nesse evento, segundo evidências do registro fóssil, desapareceram 85% da fauna marinha (ainda não existia vida nos continentes) especialmente invertebrados (trilobitas, graptozoários, braquiópodes, moluscos, etc.);

– final do período Devoniano (359 Ma). Aqui, 75% da vida desaparece, incluindo formas de vida marinhas e continentais;

– limite entre as eras Paleozoica e Mesozoica ou extinção do Permiano-Triássico (240 Ma). Também conhecida como mãe de todas as extinções, pois com ela 95% de todas das formas de vida desaparecem (entre eles muitos invertebrados como corais, crinoides, além de vegetais etc.). Contudo, o evento foi menos severo para os tetrápodes e como consequência os amniotas virão se tornar dominantes;

– próxima do limite Triássico- Jurássico. Acredita-se que foram vários pulsos de extinções que transcorrem durante 18 Ma;

– e por fim, o último grande evento de extinção aconteceu no limite entre as eras Mesozoica e Cenozoica, mais conhecido como extinção do Cretáceo-Paleógeno. Neste evento 70% da vida se extinguiu.

O que produz um evento de extinções em massa? Existem várias causas, entre elas vulcanismo, impacto de asteroides, mudanças climáticas drásticas, deriva continental, anoxia (falta de oxigênio) generalizada nos mares, ou todas elas juntas. Como atuam essas causas? Podemos tomar como exemplo a extinção do Cretáceo-Paleógeno, que teve como causa culminante a queda de um asteroide. Pelas evidências, quando o asteroide atingiu o planeta foi liberada uma energia equivalente a 10 bilhões de bombas como a de Hiroshima. O local da queda é hoje conhecido como a cratera de Chicxulub e fica no golfo de Yucatan, México. A cratera tem aproximadamente 200 km de diâmetro e uma profundidade de 30 km, pelo que se calcula que o asteroide teria ao redor de 15 km de diâmetro. Hoje em dia, a cratera na sua maior parte se encontra emersa e recoberta por mais de 600 m de sedimentos. A porção que se encontra em terra está recoberta por rocha calcária, mas seu contorno ainda pode ser devidamente traçado.

No final do Cretáceo o local da queda era ocupado por um mar pouco profundo e quente, rico em recifes de corais, no qual ocorria a deposição de evaporitos como o gesso – gipsita, Ca(SO4) – rico em sulfeto. Como consequência da queda, as águas desse mar foram vaporizadas e em consequência, toneladas de enxofre foram para a atmosfera, propiciando chuva ácida ao redor do planeta. Como se fosse pouco, com a liberação de semelhantes quantidades de energia também surgiram grandes ondas (tsunamis), cujos registros são atualmente encontrados em locais distantes como a costa da Venezuela. Além do impacto desse asteroide, o final do Cretáceo também foi marcado por intensas erupções vulcânicas na Índia as quais se calcula que tenham liberado de 100 a 1.000 bilhões de toneladas de cinzas, que perduraram de 100 a 1.000 anos na atmosfera superior. Também a separação entre a África e a América do Sul trouxe a abertura do oceano Atlântico Sul teve como consequência a queda no nível dos mares e, por consequência, uma mudança nas correntes oceânicas com a queda das temperaturas. Assim, a soma desses fatores “favoreceu” a extinção em massa.

No evento do Pint of Science

Minha palestra no evento Pint of Science – Campinas no dia 16/05/2017 foi relativa a esse tema. Obrigada por me convidar foi ótimo.

Cobras, sombra e água fresca. Enfim, campo!

Uma das maiores vantagens ou alegrias da carreira de paleontólogo é, em minha opinião, poder realizar trabalhos de campo. Como bióloga, eu poderia ter escolhido uma área de trabalho que se restringisse ao laboratório, ou somente à sala de aula. Mas escolhi atuar em algo que tem tudo isso e um plus: o campo. Mas, o que vem a ser uma saída a campo, TC (trabalho de campo), CC (campanha de campo), ou simplesmente “campo”?

É sim possível que na sua mente, neste momento, a imagem de Indiana Jones se forme e que você, mesmo que por um instante, acredite que todos os campos em paleontologia sejam sempre realizados em locais remotos, com cobras e muitas armadilhas. Bem, as cobras sempre estão lá. Junto com escorpiões, vespas e aranhas, elas adoram os paredões em que a gente trabalha. Mas não é necessário ir a locais remotos para encontrar fósseis. Eu mesma realizei as coletas da minha pós-graduação num afloramento de rocha à beira de uma estrada, muito próxima a uma cidade. Era só parar no acostamento e trabalhar.

Como já passamos da época de estabelecimento das diversas áreas científicas, processo que ocorreu por volta da transição entre os séc. XVIII e XIX, em que pouco se sabia e as áreas científicas (inclusive a geologia e paleontologia) estavam sendo delimitadas, atualmente os trabalhos de campo não são mais (em geral) tão desbravadores assim. Já temos todo um mapeamento geológico do território brasileiro, e com isso temos uma boa ideia da distribuição das rochas e de suas idades. Assim, antes de irmos a campo, olhamos o mapa e vemos onde estão as rochas que queremos procurar e que devem conter os fósseis da idade que estudamos.

Afloramento aberto pela construção de uma estrada, MT

O segundo passo nesta história é encontrar locais onde estas rochas afloram, ou seja, lugares em que elas estão disponíveis em superfície. Caso elas estiverem somente em subsuperfície, não teremos como acessá-las tão facilmente. Uma forma de acessar estas rochas ainda “escondidas” é com a obtenção de testemunhos de sondagens, muito úteis para os paleontólogos que trabalham com microfósseis. Como os testemunhos tem um volume de rocha pequeno, a maior quantidade de fósseis que eles podem carregar tem que ser de tamanhos muito pequenos, certo? No entanto, como eu trabalho com organismos macroscópicos (de tamanhos que variam de mm a cm), eu trabalho com rochas que aflorem na superfície terrestre.

E como fazemos para encontrar tais afloramentos rochosos? Com o mapa em mãos, sabendo onde as rochas escolhidas podem ocorrer, procuramos por locais onde naturalmente elas podem estar expostas, como paredões de cachoeiras, margens de rios, cânions, encostas. Existem outros processos que podem expor estas rochas, e são antrópicos: margens de estradas e ferrovias, minas, ou grandes obras que necessitem escavações, como as lavras, por exemplo.

Afloramento de rochas do Ordoviciano, em Goiás

Encontradas as rochas, o nosso trabalho árduo começa. Todo o afloramento é medido e descrito detalhadamente, estrato a estrato. Devemos delimitar o espaço e tempo de trabalho, para fins comparativos. E, enfim, podemos começar a quebrar as rochas com nossos martelos, a fim de procurar os fósseis. Cada fóssil encontrado tem sua posição registrada e recebe um número ainda em campo. Depois da coleta, o material é levado ao laboratório e uma nova etapa de análise se inicia.

Lembro-me da primeira vez que encontrei um fóssil, ainda na graduação. A sensação de encontrar um resto de um organismo que morreu há cerca de 400 milhões de anos, quase que completamente ao acaso (no sentido de que se eu não tivesse escolhido aquele ponto, mas outro, eu não teria tido sucesso; ou ainda: que se tivesse batido com o martelo de outro jeito, poderia ter estragado ou sequer percebido que aquele fóssil estava ali) foi perturbadora. Pense bem: não há como escolher o melhor lugar para se encontrar algo escondido entre as rochas. É um lance de sorte. Uma daquelas coisas que nos faz sentir pequenos frente à vastidão da história geológica e biológica da Terra, mas que também nos faz sentir como parte de algo imenso e maravilhoso. Poder conhecer um pouco do que foi a vida num passado tão distante é sim uma grande aventura, e um privilégio.