Arquivo mensais:dezembro 2017

A Morte no Gelo

Estação polar moderna, similar às estações onde Alfred Wegener viveu e onde finalmente morreu

A brancura do ambiente era total. Alguns pontos escuros na paisagem eram a exceção. Trenós mecanizados e também os puxados com cachorros cortando o gelo eram pontos atravessando a meseta central da Groenlândia.

Dois riscos pretos bem pequenos apareceram ao fundo no horizonte. Ao chegar mais perto, os homens dos trenós viram que eram dois esquis num montículo de neve. Ao escavar o montículo, surgiu o cadáver que eles tanto procuravam e não queriam encontrar. As buscas acabaram. Alfred Wegener, o chefe daquela expedição e um dos maiores cientistas do século, estava oficialmente morto.

Alfred Lothar Wegener nascera em 1° de novembro de 1880, em Berlim. Era filho mais novo de Ana Schwarz e do pastor Richard Wegener, teólogo e professor de línguas clássicas. Pouco se sabe da infância e juventude de Wegener.  O que se sabe é que, longe da vida pacata e prestigiosa de espiritualidade e leitura de seu pai, o jovem Alfred optou pela aventura e pelas atividades ao ar livre.

Estudou Física, tendo se graduado em 1905. Após sua graduação, ele começou a trabalhar com Meteorologia, principalmente com a utilização de balões atmosféricos. Neste tempo interessou-se pela pesquisa no Ártico.

Alfred Wegener casou-se em 1913 com Else Koppen (1892-1992), filha do grande climatologista russo-alemão Wladimir Koppen (1846 – 1940). Após seu casamento, Wegener tornou-se professor na Universidade de Marburg e dedicou-se às aulas, à pesquisa e à aventura polar. Não necessariamente nesta ordem.

NO MEIO DO GELO

Em 1° de novembro de 1930, dia de seu aniversário de 50 anos, Alfred Wegener havia partido em um trenó puxado por cães, juntamente com seu companheiro Rasmus Villumsen. Seu destino era a base de Eismitte (Meio-do-gelo, em alemão) para levar ajuda

Wegener e seu companheiro Villumsen, posando para a viagem da qual não retornariam

para os dois homens que estavam lá fazendo pesquisas. As condições do tempo estavam muito ruins e não havia comunicação entre as bases por rádio.

Somente na primavera do ano seguinte uma equipe conseguiu achar o corpo de Wegener no meio do gelo. Era 8 de maio de 1931. Provavelmente Wegener morreu no caminho e Villumsen enterrou o companheiro e prosseguiu a viagem. Villumsen, como era de hábito nestas circunstancias, estava levando os diários de viagem de Alfred Wegener, para salvá-los. No entanto, Villumsen jamais chegou a Einsmitte, e seu corpo jamais foi encontrado.

O EMPINADOR DE PIPAS

Aquela era a quarta expedição de Wegener à Groenlândia. A primeira havia sido em 1906-1908, sob a chefia do Dinamarquês Ludvig Mylius-Erichsen (1872–1907). Neste tempo Wegener fez diversas pesquisas meteorológicas. Boa parte delas era feita soltando balões atmosféricos e pipas. Com isso, varias informações eram obtidas das partes mais altas da atmosfera.

A segunda expedição que Wegener participou foi a liderada por Johann Peter Koch (1870–1928). O objetivo desta expedição eram pesquisas glaciológicas e meteorológicas. Koch e Wegener cruzaram a calota da Groenlândia de Leste a Oeste, num treno puxado por cavalos e pôneis islandeses. Extremamente fatigados, percorrendo um total de 1.200 quilômetros de gelo, eles chegaram finalmente ao destino.

Com a guerra em 1914, Wegener foi convocado para o front, tendo sido ferido duas vezes. Durante sua convalescencia, aproveitou para publicar alguns de seus trabalhos mais importantes sobre Meteorologia.

A EXPEDIÇÃO WEGENER

Alfred Wegener só conseguiu retornar a Groenlândia em 1929, depois que Koch já tinha morrido. Veio para uma expedição de reconhecimento e organização da expedição seguinte, que ele mesmo lideraria. A expedição de 1930-31 foi uma das maiores expedições enviadas para o Ártico até então. Contava com forte apoio do governo alemão e, mesmo num

A expedição no Ártico: os trenós, os pôneis islandeses e os cães. E, claro, também os homens.

ambiente de forte crise econômica e política, teve um bom financiamento.

Desta vez, além dos trens com cachorros e dos pôneis islandeses, Wegener contaria ainda com trenos mecanizados. Uma grande infraestrutura foi armada em diversos locais. Uma das grandes descobertas da expedição de Wegener foi a espessura da calota de gelo da Groenlândia. Através de experimentos de sísmica terrestre, foi possível calcular uma espessura de até 1800 m de gelo em alguns locais.

Existe um filme, editado em 1936, que mostra momentos importantes da expedição Wegener. Ali estão representando a chegada, a montagem dos equipamentos, como os balões meteorológicos. Também estão filmadas as explosões de dinamite nas pesquisas de sísmica terrestre. Mas impressionante é que o filme mostra até mesmo a partida de Wegener e Villumsen para a última viagem de suas vidas.

ALFRED WEGENER E A DERIVA CONTINENTAL

Apesar de ser um bom meteorologista, o nome de Alfred Wegener é mais conhecido, hoje em dia, pelas suas contribuições para a teoria da Deriva continental. Wegener começou a se interessar pelo assunto em 1908, quando começou a ler sobre os trabalhos que correlacionavam a geologia e a paleontologia de diversas partes do globo. Em meio as suas viagens a Groenlândia, ele ainda apresentou um breve resumo de sua teoria em 1912.

A ideia de Wegener foi também sugerida praticamente na mesma época pelo geólogo

Capa da edição inglesa de “origem dos continentes e Oceanos”, a partir da ultima edição alemã de 1929

norte-americano Frank Taylor (1860 – 1938).  Durante alguns anos, a teoria foi chamada de Teoria de Taylor-Wegener.  No entanto, as duas eram bastante diferentes. E a de Wegener foi a que teve mais poder explicativo e permaneceu.

O  livro de Alfred Wegener,  “Die Entstehung der Kontinente und Ozeane“, publicado em 1915 e reeditado em 1922,  foi muito bem recebido. Publicado em inglês em 1922, com o título “The Origin of Continents and Oceans”,  teve sua última edição em alemão revista por Wegener em 1929.

PAPO RETO

A estrutura do livro de Alfred Wegener é bastante simples, com uma linguagem também simples e direta. A discussão sucinta era o produto de muito trabalho de leitura e reflexão. Quando foi preciso, fez um bom uso de metáforas, como quando comparou os continentes a icebergs flutuando no gelo. Em sua pesquisa, Wegener conseguiu enfeixar no livro os mais importantes trabalhos de geofísica, geologia, paleontologia de seu tempo.

Como já disse aqui a professora Frésia aqui no blog, as correlações paleontológicas foram algumas evidências decisivas para a aceitação da teoria. A flora de glossopteris existente no grande continente de Gondwana, já identificado pelo geólogo austríaco Eduard Suess (1831 – 1914), foram argumentos importantes nesta correlação.

Da mesma forma, Wegener empresta de Suess o conceito de sal (silício mais alumínio), que representaria a composição da crosta continental granítica. Essa seria a porção que estaria a deriva num oceano de basalto, o sima (camada de silício mais magnésio). Advertido pela confusão que o termo sal provoca nas linguás latinas, Wegener modifica o conceito para sial, como hoje o conhecemos.

AS PONTES CONTINENTAIS

Através de argumentos que aliavam conhecimentos de geofísica, paleontologia e geologia, assim como dos paleoclimas, a teoria de Alfred Wegener colocou em xeque a teoria das pontes continentais. Essa teoria, já discutida aqui, postulava a existência de terrenos entre os continentes que poderiam ter existido no passado. Através das pontes continentais,segundo a teoria,  é que as faunas dos diversos continentes poderiam ter atravessado de um continente a outro.

Entre os defensores da teoria das pontes continentais  citado por Wegener estava Herman Von Ihering (1850 – 1930), biólogo alemão que veio para o Brasil, onde dirigiu o Museu Paulista de 1894 a 1916. Um estudo de sua vida e sua obra, pelas professoras Maria Margareth Lopes e Irina Podgony, pode ser encontrada aqui.

A AJUDA DO SOGRO

Vale a pena citar a importância de seu sogro Wladimir Koppen para a teoria da Deriva Continental. Koppen, nesta altura aposentado, deu uma importante contribuição para a teoria de seu genro.  O livro que publicaram em 1924 “Die Klimate der Geologischen

A capa de uma edição bilíngue moderna do clássico “Climas do Passado Geologico, de Koppen & Wegener; Veja-se aí o maduro climatólogo e o jovem meteorologista.

Vorzeit (Os climas do passado geológico)” foi decisivo para a discussão dos paleoclimas. Um resumo do livro de Koppen e Wegener está resumido no capitulo 7° da edição inglesa do “Origins of Continents and Oceans”.

Foi também Koppen quem incentivou o iugoslavo Milutin Milankovitch (1879-1958) a publicar a sua hoje famosa teoria dos ciclos solares, conhecidos como ciclos de Milankovitch. Com isso, pela primeira vez havia uma teoria simples e unificada que poderia explicar as glaciações do passado. Provavelmente, sem o apoio de Koppen, um cientista de fama mundial, Alfred Wegener não tivesse tido a atenção que teve.

Depois da morte de Wegener foi Koppen, já octogenário, quem cuidou da reedição dos livros e da revisão cientifica de sua obra. Ao morrer, aos 93 anos, Koppen havia recentemente concluído a que foi  a ultima revisão de “Climas do Passado Geológico“.

UMA TEORIA  REVOLUCIONÁRIA?

Alfred Wegener foi um destes cientistas que não cabem num rótulo. Sua contribuição para a teoria da Deriva Continental foi seminal. Sua contribuição à meteorologia e à exploração do Ártico também foram importantes. Sua capacidade de articular a experiência de campo e a pesquisa também foram notáveis.

A Deriva continental, refutada por tantos e em tantas ocasiões, retornou nos anos 1960 com a Tectônica de Placas. Apesar de ter muito pontos falhos, a teoria de Wegener teve

As Placas Tectônicas, como as conhecemos hoje

uma grande aceitação. Sua simplicidade e originalidade contam muito. A explicação unificadora, que juntava tantas disciplinas numa explicação única também foi muito importante. Mas o espirito analítico de Wegener, seu amplo conhecimento de temas de geofísica e climatologia (daí a paleoclimatologia) foram decisivos.

Alfred Wegener, com a tecnologia da sua época, jamais poderia ter provado a sua teoria. Os avanços da sismologia, da magnetometria e o desenvolvimento da geocronologia depois de sua morte foram decisivos para a comprovação de sua teoria. No entanto, as grandes perguntas de Alfred Wegener pautaram a pesquisa cientifica nestas áreas durante boa parte do século XX. As discussões contidas no “Origem dos Continentes e Oceanos” seriam as perguntas mais

Alfred Wegener fazendo graça

importantes para a comunidade geocientífica no seculo XX.

A morte de Wegener no gelo da Groenlândia foi o fim provável de um grande explorador e aventureiro.

Quase um século depois, seu exemplo de cientista de campo e notável teórico em campos tão diversos como a meteorologia e a geologia nos fazem lembrar de quanto o conhecimento só avança pelas bordas.

Pelas in(ter)disciplinas.

Para saber mais:

Alfred Wegener institut  https://www.awi.de/en.html

McCoy, Roger M. Ending in ice: the revolutionary idea and tragic expedition of Alfred Wegener. Oxford University Press, 2006.

Greene, Mott T. Alfred Wegener: Science, Exploration, and the Theory of Continental Drift. JHU Press, 2015.

O ANIVERSÁRIO DE ALFRED WEGENER E A FLORA DE GLOSSOPTERIS: IDEIAS QUE LITERALMENTE MUDAM O PLANETA.

Sob a denominação de Flora de Glossopteris, ou Província Florística do Gondwana, são reunidos todos os registros de plantas, sejam eles folhas, caules, sementes, lenhos, pólens, charcoals, etc. que apresentam similitudes morfológicas e aparecem no meio das rochas sedimentares de idade permiana (298 – 252 Ma) que são encontradas na porção sul da África e América do Sul, bem como na Austrália, Antartica, Nova Zelândia e a Índia. Todos esses continentes hoje se encontram separados por oceanos, mas durante muitos milhões de anos, aproximadamente de 500 até 160 Ma ficaram unidos formando um grande paleocontinente denominado como Gondwana. O nome foi inspirado no local da India onde os primeiros indícios do paleocontinente foram encontrados, entre eles a Flora de Glossopteris.

Figura 1. Comparação entre as geografias de hoje e do Permiano, com América do Sul, África, Austrália, Índia, Antártica reunidas no Gondwana

Na Figura 1 podemos observar os locais onde hoje estão localizados os registros das floresta permianas da Flora de Glossopteris. Logicamente parece meio difícil acreditar que a presença de fósseis vegetais com morfologias semelhantes em regiões tão distantes se deva somente uma coincidência. Mas sensato é pensar que possivelmente todos esses locais hoje distantes poderiam ter formado parte do mesmo continente, onde as migrações de plantas e animais foram possíveis, favorecidas por se tratar de uma mesma massa continental.

Fragmento de folha de Glossopteris, coletada na Bacia do Paraná, Brasil. Barra de escala: 5 cm.

Dentro da denominação de Flora de Glossopteris são reunidos vários grupos vegetais, entre eles samambaias e plantas com sementes, como as glossopterídeas (que só ocorrem no Gondwana e apenas durante o Permiano) e outras gimnospermas (vegetais com sementes, mas sem flores) como coníferas, ginkgoales, entre outras. A Flora de Glossopteris reúne os vários tipos de floresta que se sucederam durante o período Permiano e que experimentaram variações climáticas severas. Essas florestas surgiram em climas temperados frios e sobreviveram em climas cada vez mais quentes até semi-áridos próximos ao final do Permiano, quando desapareceram devido a uma grande extinção em massa. Assim, no início do Triássico, apesar de ainda o paleocontinente Gondwana continuar existindo, a vegetação muda bastante na sua composição.

Umas das primeiras Glosspteris conhecidas para o Brasil foi descrita por David White no ano de 1908, em fragmentos de rochas provenientes das minas de carvão de Criciúma, em Santa Catarina. Hoje sabemos que as jazidas de carvão do sul do Brasil, foram formadas graças ao acúmulo de plantas em locais próximos à costa, onde essa biomassa (o corpo das plantas) foi sendo soterrada e amadurecida até se transformar em carvão. Sabe-se também que os bosques da época formavam parte da vegetação que cobria pelo menos a porção Sul do Gondwana durante o Permiano.

Folhas de Glossopteris, coletadas na Bacia de Sidney na Austrália. Barra de escala: 5 cm

Em particular, o gênero Glossopteris reúne folhas de formato ovalado (em forma de língua), de margens retas e caracterizadas por uma venacão distinta, em formato de malha, sulcada por uma série de feixes longitudinais ou nervura central, como pode ser observado nas figuras dessas folhas.

No dia 1º de novembro deste ano, Alfred Wegener celebraria o seu 137º aniversário. Wegener, juntamente com Eduard Suess e Alexander Du Toit, formaram parte do grupo de cientistas que desde o final do século 19 vinham considerando seriamente a possibilidade dos continentes antes mencionados terem estado juntos, formando um grande paleocontinente no hemisfério Sul, e uma das evidências mais importantes dessa união são precisamente os registros das folhas de Glossopteris. A teoria de uma geografia diferente a atual, na qual os continentes estaria reunidos de forma diferente, foi publicada por Wegener em 1915, mas não teve êxito. Uma enorme quantidade de evidências vem sendo acumulada desde então a favor da existência do Gondwana, sendo hoje um fato amplamente aceito sobre a evolução do nosso planeta.

Folha de Glossopteris, ilustrada por Feistmantel na sua publicação de 1889, acerca dos fósseis da Bacia do Karoo na África do Sul.

Uma vez que no Brasil também tem aumentado o conhecimento do registro fóssil do Permiano, hoje em dia existem descritas muitas espécies de Glossopteris, não só para Santa Catarina, mas também no Rio Grande do Sul, Paraná e estado de São Paulo. Quem sabe se você já não viu uma linda folha de Glossopteris no seu quintal….

Referências

Feistmantel, O.1889. Übersichtliche Darstellung der geologisch-palaeontologischen Verhältnisse Süd-Afrikas. Th 1: die Karroo-Formation und die dieselbe unterlagernden Schichten Abh. K. Böhmischen. Ges. Wiss., 7, 1-89

Veevers, J.J. 2004. Gondwanaland from 650–500 Ma through 320 Ma merger in Pangea to 185–100 Ma breakup: supercontinental tectonics via stratigraphy and radiometric dating. Earth-Science Review, 68, 1–132.

White, D. 1908. Relatório sobre as “Coal Measures” e rochas associadas do sul do Brazil. Rio de Janeiro, p.2-300. (Relatório Final da Comissão de Estudos das Minas de Carvão de Pedra do Brazil parte I).