Arquivo mensais:junho 2017

O QUE É UM FÓSSIL?

Você sabe o que é um fóssil?

Se nos perguntassem hoje o que significa a palavra fóssil, a resposta seria mais do que óbvia. Contudo, uma rápida olhadinha no Google e logo saberemos, por meio de diversos sites, que fósseis são restos ou vestígios de organismos vivos, que foram preservados no interior dos sedimentos e das rochas. Entretanto, os cinemas, filmes de aventura como “Jurassic Park” ou animações como “A Era do Gelo” sempre nos colocam em contato direto com essas fantásticas criaturas que viveram tempos atrás. Lojas de brinquedo nos oferecem fósseis para colorir, para montar, para pregar na parede. Existe inclusive uma rede de lojas com este nome, que vende “relógios e estilo de vida”. Assim, os fósseis estão em nossas mentes, em nossas casas e em nossas vidas tão naturalmente que nos fazem pensar que foi sempre assim.

Na verdade, se fosse perguntado aos sábios do passado, eles sequer iriam entender nossa pergunta. Contudo, não faria nenhum sentido para eles essa história de fóssil, de organismo extinto, nada disso. Por outro lado, nem mesmo o nome “fóssil” faria sentido. O que hoje chamamos de fóssil era chamado de “rochas com forma de animais”, “madeiras petrificadas”, ou qualquer outra coisa. Mesmo a palavra fóssil teria outro significado, significando coisa escavada, desenterrada. É essa a acepção do latim “fossile”. No século XVI, por exemplo, qualquer coisa desencavada da terra, como rochas e minerais, seriam “fósseis”.

O médico Georg Bauer (1494-1555), também conhecido pelo nome latinizado de Georgius Agrícola, era de fato um dos maiores especialistas de seu tempo em assuntos do reino mineral.  Agrícola viveu na rica província mineira da Saxônia, e escreveu vários livros sobre rochas minerais. Aliás, um estes livros, publicado em 1546, chamava-se justamente “De Nature Fossilium”, que poderíamos traduzir como “Da Natureza das Rochas e Minerais”. As coleções de materiais que ele denomina fósseis contém “pedras, terras, gemas, betume, âmbar”. As “rochas com forma de animais e de plantas”, como se dizia nesta época, eram somente mais um item destes materiais. Eram, entretanto, objeto de mera curiosidade.

Antes ainda, na Idade Média, vamos encontrar usos diversos para os fósseis. Algumas igrejas, como a Igreja de São Pedro em Linkeliholt, na Inglaterra, por exemplo, foi decorada com fósseis de equinoides (veja a figura abaixo).  Por outro lado, os fósseis tinham também uma função decorativa, devido ao seu formato regular e simétrico. Desta forma, desde o neolítico até tempos históricos, foram encontrados jazigos humanos de diversas idades, onde os fósseis estão junto com os cadáveres ali enterrados. Isto pode sugerir que foram usados como objetos rituais e mágicos ou talismãs.

Pórtico da igreja de São Pedro em Linkeliholt, Inglaterra, decorada com 25 fósseis de equinodermos; (ver aqui)

Tumba de mulher e criança da idade do Bronze em Dunstable Towns, Inglaterra, circundada por fósseis de equinoides. Desenho de Reginald Smith, 1894. ( Ver aqui)

 

 

 

Falando em usos religiosos dos fósseis, vale a pena comentar, entretanto, alguns exemplos. Primeiramente, podemos citar os amonitas, moluscos que viveram desde o Devoniano até o Cretáceo. Para começar, estes moluscos devem seu nome a seu formato elegantemente espiralado, assemelhando-se a chifres das cabras. Por causa desta semelhança, segundo Plínio o velho, o nome amonitas se deve à sua denominação como “os cornos de Amon”, o deus egípcio que tinha chifre de cabra. Na Índia, alguns fósseis de amonitas, como o Meekoceras varaha, encontrado no Triássico do Himalaia Central, é tido como um dos Chakras de Vishnu. Aliás, varaha, o nome da espécie, é um dos avatars de Vishnu na Mitologia do Hinduismo. Alias, Carolina Zabini também discutiu muito bem em outro post deste blog a origem dos dragões e a paleontologia (ver aqui).

O Chakra de Vishnu e o amonite como objeto religioso na Índia; ( ver aqui )

Como isso tudo mudou? Como chegamos até aqui? A moderna concepção de “fóssil” como restos de organismos é bastante recente, de meados do século XVIII. Por outro lado, esta mudança no conceito de fóssil e a compreensão dos fosseis como organismos e não como curiosidades ou talismãs está no discurso de fundação das ciências naturais modernas. Isso não é pouco.

Figurinhas carimbadas da História da Ciência tiveram um papel decisivo nesse debate, como Steno, Palissy, Cuvier e outros. Mas não só. Mesmo anônimos colecionadores e vendedores de fósseis tiveram um papel importante. Por exemplo,  a britânica Mary Anning (1799-1847), foi uma das mais respeitadas colecionadoras de fósseis do século XIX. Por outro lado, um humilde topógrafo inglês, William Smith (1769-1839), reconheceu a distribuição dos fosseis nas camadas ao longo dos canais construídos na Inglaterra no século XVIII para o transporte de carvão. Como resultado, criou as bases da estratigrafia moderna.

Em conclusão, Essas são algumas peças do debate sobre os fósseis que veremos por aqui. Os fósseis dizem muito também sobre nós, e não só os fósseis de hominídeos. De onde viemos? Para onde vamos? Esses pálidos restos escondidos nas pedras têm muito a nos contar, enquanto esperamos pelo próximo meteoro.

 

Para saber mais:

Chandrasekharam, D. (2007). Geo-mythology of India. Geological Society, London, Special Publications273(1), 29-37.

McNamara, K. J. (2007). Shepherds’ crowns, fairy loaves and thunderstones: the mythology of fossil echinoids in England. Geological Society, London, Special Publications273(1), 279-294.

Georg Agricola. (1955). De Natura Fossilium (Textbook of Mineralogy): Translated from the First Latin Ed. of 1546 by Mark Chance Bandy and Jean A. Bandy for the Mineralogical Society of America (No. 63). Geological Society of America, pc1955.

As árvores mitológicas, filogenéticas, tentadoras: quando surgiram?

Ainda valem como obras que dão sentido a uma vida plantar uma árvore, escrever um livro e ter um filho? A figura de uma árvore é realmente muito poderosa. Eu, particularmente, sempre gostei das árvores gorduchas do Rembrandt que me proporcionam uma incrível sensação de aconchego. Mas quando apareceram as árvores dominando a paisagem do nosso planeta? Qual a sua influência, a partir de então, nos ecossistemas terrestres? Pelo menos até agora não temos evidências, ainda, de árvores extraterrestres.

A ponte de pedra. Óleo sobre tela 29,5 x 42,3  cm. Rembrandt
Rijksmuseum, Amsterdam. (http://www.rembrandtpainting.net/complete_catalogue/landscape/bridge.htm)

Bom, os mais antigos vegetais fósseis que conseguiram sobreviver no continente foram, ao que parece pelas evidencias, musgos e a partir desse momento surgiram outros vegetais mais adaptados a viverem no meio seco e nos quais a parte vegetativa tinha uma vida mais longa (esporófito) além de ser de maior em tamanho, enquanto que a parte reprodutora passou a ser menor e com uma vida mais curta (gametófito). Todas essas adaptações aconteceram no transcurso da Era Paleozoica. Mas o que caracteriza uma árvore? Seu tamanho? Ou possuir um lenho com crescimento secundário, ou seja, no qual se formam anéis de crescimento com o passar do tempo? Se for pelo tamanho, as primeiras árvores apresentavam um formato que lembra as palmeiras de hoje, sendo incluídas dentro dos gêneros Gilboaphyton e Eospermatopteris, cujos fósseis são encontrados perto de Nova Iorque, nos Estados Unidos e no norte da Venezuela, na cordilheira de Perijá. O surgimento da possibilidade de ramificação abriu novas possibilidades, assim como o desenvolvimento de sistemas radicular e vascular mais eficientes. Tudo isso aconteceu, pelo registro que se tem, durante o transcurso da segunda metade do período Devoniano, entre 398 e 385 milhões de anos atrás. O desenvolvimento desse novo tipo de vegetais, as árvores, trouxe profundas mudanças aos ecossistemas continentais, tanto pelo surgimento das florestas e com elas novas possibilidades a vida, quanto para o ciclo do carbono, intemperismo das rochas, estabilização da erosão, balanço do CO2 e consequentemente do clima. As primeiras florestas possivelmente viviam próximo aos cursos de água, de forma semelhante às florestas ciliares que hoje em dia acompanham o curso dos rios.

Contudo, e apesar dessa restrição na sua distribuição, uma das mais importantes mudanças dentre as acima comentadas foi introduzida pelos sistemas radiculares (raízes) que se tornaram mais efetivos, complexos e profundos. Esses avanços trouxeram como consequência o desenvolvimento de solos com conteúdo orgânico, bem como a intensificação do intemperismo químico do entorno abiótico que rodeava as raízes. Por sua vez, as raízes desde o inicio já apresentavam uma associação com uma classe especial de fungos denominada como micorrizas, hoje presentes em 90% dos vegetais, e que auxiliam na obtenção de nutrientes do solo e, portanto, na alteração química das rochas. Outra ventagem do advento de sistemas radiculares maiores foi a diminuição da erosão e como consequência, da quantidade de sedimentos que era incorporada aos sistemas fluviais e costeiros.

Sistemas radiculares maiores e mais complexos, juntamente com o surgimento de um sistema vascular formado por tubos ou traqueídes com paredes agora lignificadas e provistas de perfurações para auxiliar na melhorar a circulação de água e nutrientes por todo o corpo do vegetal, permitiram também a sustentação de uma porção aérea maior em altura e com maior área de copa. Essas melhorias permitiram que os vegetais alcançassem vários metros de altura e aumentassem consideravelmente o seu tempo de vida, abrindo um novo capítulo nos ecossistemas terrestres e oferecendo proteção dos raios solares e mais umidade.

Registros de paleosolos devonianos que se desenvolveram em ambientes costeiros e fluviais são uma das evidências acerca do desenvolvimento e sofisticação dos sistemas radiculares, pois neles foram preservados moldes das raízes ou raízes permineralizadas junto com as micorrizas.

Mas calma: essas primeiras árvores ainda não possuam uma reprodução por meio de sementes e, portanto, grandes áreas no interior dos continentes ainda continuavam a desabitadas. As primeiras sementes surgiram no período seguinte, conhecido como Carbonífero, e com elas a possibilidade das florestas cobrirem as terras emersas até hoje.

Paisagem com árvores, construções da fazenda e uma torre. Rembrandt Harmensz. van Rijn (1606–1669) Gravura, 123 x 319 mm Städel Museum, Frankfurt am Main Photo: Städel Museum, Frankfurt am Main (http://www.themorgan.org/rembrandt/print/179857)

Os achados do Marrocos e as novas raízes da espécie humana (e por que é comum que a ciência se reconstrua)

Na Paleontologia e na Biologia Evolutiva, a evolução humana é um dos assuntos mais populares e, ao mesmo tempo, mais polêmicos. Não poderia ser diferente, afinal trata-se do nosso ramo na árvore da vida. Se por um lado, a evolução humana atrai a curiosidade dos sedentos por ciência, por outro, atrai reações menos amistosas dos negadores da ciência. Para aqueles que negam o fato de nossa ancestralidade em comum com todos os outros organismos do planeta, é uma afronta se deparar com a história mais próxima desta relação de parentesco. É uma afronta se deparar com o fato de que há uma íntima relação de parentesco dos humanos com os símios sem rabo, como o chimpanzé, o bonobo, o gorila, o orangotango ou o gibão.

Relações evolutivas dos Hominidae viventes. Da esquerda para a direita: Pongo pygmaeus (orangotangos), Gorilla gorilla (gorilas), Homo sapiens (humanos), Pan troglodytes (chimpanzés) e Pan paniscus (bonobos). Fonte: Nature, 2012.

Por conta disso, são comuns perguntas como: “se os humanos vieram dos macacos, por que não vejo um macaco dar a luz a seres humanos?”. Por mais absurdo que pareça este questionamento, ele é comum em um país como o Brasil, onde existem muitos analfabetos científicos. Muitos brasileiros estão acostumados a explicar seus eventos rotineiros com base em misticismo (vide a quantidade de pessoas que acredita em horóscopos e afins). Por conta disso, a ciência precisa urgentemente ser popularizada, se tornar acessível. No que concerne o assunto principal deste texto, é importante esclarecer sobre uma pergunta tão difundida, pois ela apresenta em sua formulação um desconhecimento da Biologia Evolutiva. É provável que as pessoas que façam esta pergunta se refiram a macacos atuais, e que muitas delas pensem que Darwin defendia que os chimpanzés eram os ancestrais dos humanos. No entanto, o surgimento de uma espécie não é instantâneo, ele comumente leva de décadas a milhares de anos (é certo que quando o ciclo de vida de um organismo é curto, como com bactérias ou mesmo moscas das frutas, o tempo de especiação é bem menor). E nós humanos não descendemos dos chimpanzés, ou dos gorilas ou de nenhum outro macaco atual. Nós possuímos ancestrais em comum com os macacos atuais, e se formos voltando no tempo, encontraremos ancestrais em comum com outros mamíferos, ancestrais em comum com os répteis e aves, ancestrais em comum com qualquer tetrápode, ancestrais em comum com qualquer vertebrado, com qualquer animal, com qualquer eucarioto, com qualquer organismo. Dentre estes ancestrais, o nosso ancestral mais recente é também ancestral dos chimpanzés e dos bonobos.

Comparado aos dias de hoje, na época em que Darwin publicou “A Origem das Espécies”, haviam poucos dados que suportassem a ideia de que os humanos fossem relacionados aos símios sem rabo (embora já existissem muitos dados de diversas outras relações de parentesco da árvore da vida). Hoje, o registro fóssil é extremamente rico e evidencia este fato com robustez. Não obstante, a cada nova descoberta que muda o rumo da história, surgem os negadores da ciência argumentando que a Biologia Evolutiva é falha ao explicar seus fatos, porque põe por terra o que antes havia construído. Recentemente, novos fósseis de humanos foram descobertos no Marrocos, fósseis que trazem duas principais contribuições para mudar o rumo da história. A primeira delas é sua idade, datada em 300 mil anos, muito mais antiga do que os 195 mil anos, dos mais antigos fósseis de humanos até então descobertos na Etiópia. A segunda novidade é sua localização, fora do leste africano, o palco principal da evolução humana, e onde se acreditava ter surgido nossa espécie. Nas postagens das notícias veiculadas nas redes sociais, por conta dos dois artigos publicados no periódico Nature (vide os links ao final), fica evidente que não são poucos os negadores da ciência em nossa país (fiz o não recomendado para qualquer notícia, li muitos comentários). Por que é falho o argumento de que estes achados mostram uma fragilidade do fato da evolução humana, simplesmente por mudarem o rumo da história?

Fósseis recém descobertos no Marrocos dos primeiros humanos (esquerda) comparados a humanos atuais (direita). O crânio daqueles é levemente alongado se comparado ao nosso. Fonte: Nature, 2017.

É falho porque os novos fósseis apenas apontam uma origem mais antiga e uma maior dispersão dos primeiros humanos, não são uma prova contrária a nossa ancestralidade em comum com os símios sem rabo. A Paleontologia até então apresentava evidências de que nossa espécie tinha surgido mais recentemente do que mostram estes fósseis, mas é corriqueiro que a medida em que novos fósseis sejam descobertos, que algumas datas de eventos importantes sejam modificadas. O registro fóssil não é completo, é uma pequena página de tudo o que ocorreu. A maioria da história se perdeu, mas aquela que ficou registrada traz robustez à Biologia Evolutiva. A evolução é um fato suportado por um registro fóssil que é falho, mas que mesmo assim, indubitavelmente, é uma forte evidência.

O sítio onde foram descobertos os fósseis do Marrocos. Acredita-se que foi uma antiga caverna ocupada pelos primeiros humanos. Fonte: Nature, 2017.

Os livros não deixarão de apresentar o fato da evolução humana, mas modificarão o que contam sobre nossa espécie. Ela parece ter não apenas o leste africano como berço, mas uma região mais ampla da África. De certa maneira, isto não deve ser encarado de forma tão surpreendente, pois nós somos uma espécie que colonizou o globo todo. Esta propensão já estava presente em nossas raízes, nos primeiros momentos da existência do Homo sapiens. Estes primeiros momentos parecem ter sido anteriores ao que acreditávamos. Também não há nada tão surpreendente nisso, uma página desconhecida do livro da vida foi lida. E ela continua nos contando que surgimos de um ancestral comum aos símios sem rabo e que fomos nos tornando diferentes, bípedes, com significativo aumento do cérebro e glabros, e agora que nossa humanidade possui raízes que alcançam além do leste africano que são mais profundas, chegando até cerca de 300 mil anos atrás. Não é difícil atualizar o conhecimento que está nos livros, é difícil leva-lo para além dos livros, difundi-lo em um país onde cada vez mais a ciência parece ameaçada. No entanto, não há melhor arma do que continuar a propagar, continuar a popularizar. A ciência deve ser para todos, de forma que todos compreendam, sem qualquer surpresa, que a ciência se reconstrói a todo o momento.

Para saber mais, leia os artigos publicados na Nature:

On the origin of our species.

Oldest Homo sapiens fossil claim rewrites our species’ history.