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Calendário fóssil; corais, e os tempos passados

Mais de 24 horas por dia? Calendário com menos de 365 dias? isso é coisa do futuro!

Final de ano na Unicamp sempre me faz pensar em um pedido especial ao Papai Noel. Um pouco mais de tempo, por favor… isto é, dias com mais de 24 horas. Um calendário diferente.

A situação por aqui é quase como no seriado “24h”. A saga pela disponibilização de notas, avaliações para correção, bancas de todos os níveis (IC, TCC, MSc. e PhD), relatórios, comissões e as previsões para as atividades do próximo semestre. A narrativa é tensa por que todos os envolvidos demandam sua atenção. Um passo em falso, um dia sem trabalho e… caos. Não podemos nos permitir ao erro.

Estamos tão acostumados com as 24 horas dos dias que mesmo o Spock e o capitão J. Kirk usam estes intervalos de tempo telúricos para situar o tempo envolvido nas suas missões. Aqui na Terra, cada volta completa do planeta ao redor do seu eixo produz os dias com suas 24 hs. Na Enterprise essa referência se perde.

se você pudesse voltar no tempo, qual data do calendário escolheria?
O relógio do filme “De volta para o futuro”

No entanto, se algum dia tivermos a oportunidade de voltar ao passado, vamos ter que tomar cuidado. Já ouvi físicos debatendo sobre todos os cálculos necessários para que a volta ao passado não seja um triste fim: aparecer em ponto qualquer do espaço, em que, um dia o planeta se encontrava, mas naquela data do passado, a posição era outra, naquele momento. Não basta ajustar a data, a posição de tudo que está envolvido também deverá ser calculada, não é?

Saber a posição exata do planeta em relação ao sol, do sol na galáxia e da galáxia no universo são alguns dos pontos levantados pelos físicos. Mas, e o tempo? sim, vamos falar do tempo de novo. Mas esse é um questionamento novo…. na forma de calendários fósseis!

No Período Devoniano (419 à 358 M.a.) os corais rugosos (um tipo de coral que já não vive mais) viviam por mares rasos, límpidos e quentinhos. Eles eram felizes e cresciam depositando camadas finas de carbonato de cálcio no seu esqueleto. Todos os dias eram iguais, cada um, com uma camadinha a mais.

Essa é mais uma das histórias que os fósseis podem nos contar (veja outra aqui). Existem algumas espécies de organismos marinhos que produzem um pouco de sua “concha” todos os dias. Corais e alguns moluscos podem ser usados portanto, para este datação. Uma datação dos dias, meses e anos do passado, assim como do tempo em que cada organismo prosperou.

Coral rugosa e sua ornamentações que nos fornecem detalhes de um calendário do passado
Coral rugosa usada para datar os meses do ano no Devoniano.

Em corais funciona assim: as linhas mais finas representam crescimento diário. As bandas (conjuntos das linhas finas) representam meses e os anéis, estruturas mais largas, representam os anos. De acordo com os especialistas, em estações secas os corais crescem mais que nas estações chuvosas. Esse empilhamento de camadas também relaciona-se, portanto, com o ciclo lunar.

Assim, se você quiser saber quantos dias aquele organismo viveu, é relativamente fácil: depois de saber como observar seu esqueleto, é só dar a sorte de encontrar esses fósseis e voilà, nada mais simples que contar os dias de um calendário, neste caso, um calendário que já foi vivo. E para contar meses e anos? com vários exemplares temos uma medida média de quantos dias e meses, cada organismo guardou em seu calendário biológico.

E o que estes calendários dizem?

Com o estudos de fósseis de corais do Devoniano, conseguimos descobrir que, neste tempo (Devoniano, um dos períodos do Paleozoico) os anos eram compostos por cerca de 400 dias. Isso implica em algumas coisas importantes: os dias eram mais curtos, e o movimento de rotação terrestre era mais rápido.

Hoje temos anos com cerca de 365 dias… como o planeta desacelerou? Supõe-se que a Terra tem seu movimento de rotação desacelerado pelo movimento das marés (a velocidade diminui dois segundos a cada 100 mil anos!), além do afastamento da Lua (explicação física para o processo de desaceleração da rotação do planeta, ligada às leis de Newton). Portanto, além de ter dias mais curtos, a lua estava mais próxima de nós, no Devoniano e antes.

Uma lua mais próxima, seria maior. Os dias mais curtos… talvez fossem mais agitados? se pensarmos que eram os peixes os reis dos mares naquele tempo, junto com uma profusão de invertebrados, dentre eles trilobitas e afins, talvez sim, houvesse alguma agitação nos oceanos. Mas não podemos dizer o mesmo dos continentes. Além da vida vegetal e dos invertebrados terrestres, os primeiros tetrápodes deixaram seus primeiros registros por volta desse tempo. Eles estavam começando a sair da água para conquistar os continentes.

Fato que foi um mundo completamente diferente.

Se você pudesse voltar no tempo… o que gostaria de ver?

Veja aqui um texto sobre como contar os dias e anos de corais paleozoicos.

O Dinamarquês das Cavernas

Um fim de tarde no interior
A praça central de Lagoa Santa (MG) no inicio do seculo XX

Estávamos em 1878, 56º ano da independência do Brasil. Fazia já 38 anos do Reinado de sua alteza Imperial, D Pedro II.

Era um fim de tarde quente na pequena vila de Lagoa Santa, no interior de Minas Gerais. As nuvens se acumulavam atrás da Serra da Piedade. Era um prenuncio de chuva para amenizar o calor abafado. Uma banda de música se fazia ouvir, lá para os lados da praça central.

O som da música ia aumentando, a medida em que nos aproximamos. A cidade era uma rua, com as casas dispostas em amplos quintais cheios de arvores de todos os tipos: pequizeiros, umbuzeiros, mangueiras. Os buritizeiros eram muito comuns, assim como outros tipos de coqueiro. O contraste das outras arvores e os coqueiros davam um recorte especial às casas da pequena cidade.

As casas eram simples, com cercas de madeira na frente. a grande maioria era de telhado simples, mas as maiores tinham até quatro águas. Eram caiadas de branco, com portas e janelas de madeira. Algumas janelas, nas casas maiores, eram de vidro, com duas guilhotinas. A madeira das janelas era pintada de azul ou vermelho. Muitas possuíam amplas varandas, onde se viam redes, cadeiras de descanso e vasos de plantas.

Quando cessa a música, os músicos começam a se dispersar. Um velhinho, que parecia ser o maestro da banda, começa a descer a rua acompanhado de um menino. Quando entram na grande casa da esquina, pode se ver as luzes sendo acesas.

O velhinho que cuidava da banda de Lagoa Santa era ninguém menos que Peter Wilhelm Lund. O famoso paleontólogo dinamarquês, que havia chegado ali na pequena vila havia uns trinta e cinco anos. Agora, já com quase oitenta anos, era uma figura pública do lugar. Da varando de sua casa dava conselhos, emprestava dinheiro e cuidava da pequena banda da cidade.

A Banda Santa Cecilia
O Paleontologo Dinamarques Peter Wilhelm Lund (1801-1880), em foto de 1868

A banda Santa Cecília era um dos xodós de Peter Lund. Ele havia dado o dinheiro para comprar os instrumentos e também participava dos ensaios. Lund era conhecido na cidade como um bom músico e havia sido, na juventude, um bom pé-de-valsa.

Naqueles dias, entretanto, sentindo-se cansado, Lund deixava-se ficar em casa. Reclamava muito de reumatismo, e deixava-se ficar na rede, descansando. Só raramente ia aos ensaios, acompanhado de seu afilhado Nereo. O garoto era filho de Luís Cecílio, seu colaborador no trabalho de escavação das grutas calcárias da região.

A exploração das cavernas de Lagoa Santa

Durante cerca de dez anos, entre 1835 e 1845, desde que ali chegara, Lund havia escavado quase todas as cavernas da região na procura de fósseis. Era um trabalho duro. Lund contratou dezenas de pessoas, comprou muitas mulas e construiu equipamentos para retirada do material das cavernas e para a obtenção dos fósseis e esqueletos.

Quase todas as grutas da região foram escavadas. Durante o período de intensa exploração, dezenas de toneladas de material eram escavados, numa operação que muito similar a uma exploração mineira convencional. O trabalho era tão gigantesco que Lund gastou nele praticamente um quinto de sua fortuna.

Lund era um homem rico, herdeiro de um prospero comerciante dinamarquês.  Ao morrer, o velho Henrik Lund deixou para cada um de seus filhos o suficiente para que não se preocupassem com dinheiro ou trabalho. Seus irmãos dedicaram-se as finanças. Lund estudou e virou um renomado naturalista. Mas a família era cheia de talentos. Um primo famoso de Peter Lund foi o filósofo dinamarquês Soren Kierkegaard.

O “priminho Soren”

O famoso filósofo precursor do existencialismo moderno era treze anos mais moço que Lund. Nas cartas e correspondências com a família via-se que Peter Lund o tratava como “o priminho Soren”. Aludia a ele como um adolescente imaturo e autocentrado. Para Kierkegaard, por outro lado, ele era o primo Peter, naturalista. Certa vez, numa polêmica com Hans Christian Andersen, citou os formigueiros brasileiros, na certa derivados de observações de Lund.

Soren Kierkegaard (1813 – 1855), o “priminho Soren” de Lund e uma dos maiores filósofos da Modernidade

Numa carta que nunca enviou a Lund, Kieerkegaard mostra-se entusiasmado com as ciências naturais. No entanto, imagina que a “monstruosa dedicação” do naturalista a pequenos detalhes impede a compreensão de coisas maiores. Enquanto isso, no outro lado do mundo, Lund embrenhava-se

com dedicação monstruosa para resolver os problemas paleontológicos das cavernas de Lagoa Santa.

Lund, o Catastrofista

As pesquisas de Peter Lund em Lagoa Santa foram um marco para a paleontologia. Nós já falamos sobre os inícios do conhecimento sobre a fauna pleistocênica de Minas, com o trabalho de Simão Sardinha, no seculo XVIII. No século XIX Lund preencheu importantes lacunas do conhecimento sobre a fauna do Pleistoceno. Preguiças Gigantes, Megatérios, Gliptodontes e outros mamíferos extintos foram encontrados em suas escavações. Com base nestes fósseis, Lund escreveu diversos trabalhos, publicados nos mais importantes periódicos científicos da época.

Lund e o Tigre de dentes de sabre, num documentário dinamarquês sobre o cientista e seu trabalho nas cavernas de Minas Gerais (https://www.dr.dk/nyheder/viden/naturvidenskab/fem-ting-du-boer-vide-om-danskeren-der-fandt-sabeltigeren

Neles, Lund explicava sobre as faunas extintas devido as “grandes Revoluções do Globo”, como havia aprendido com seu professor em Paris, Georges Cuvier. Cuvier, de quem nós já falamos aqui, era um dos maiores expoentes da teoria chamada “catastrofismo”. O catastrofismo propunha que as diferenciações entre as faunas eram devidas a diversos tipos de cataclismos. O grande problema do catastrofismo era que ele não propunha uma boa alternativa para a mudança das diferentes espécies animais e vegetais que eram encontradas.

Diferentemente, ao correr do século, as teorias sobre a mudança dos seres vivos eram explicadas pela mudança gradual das espécies pelos diferentes mecanismos de evolução. Lund, em seu refúgio de Lagoa Santa, não participou destes embates. No entanto, dada a qualidade de seu trabalho, sua pesquisa chegou a ser citada elogiosamente por Charles Darwin A Origem das Espécies, de 1859.

Um naturalista “aposentado”
A casa de Lund em Lagoa Santa;

Quando isso aconteceu, Peter Lund já se encontrava “aposentado”. Depois de publicar seus artigos mais importantes, ele tratou de despachar sua coleção para a Dinamarca. Hoje, sua coleção está no museu de história natural de Copenhague. Muitos hoje veem como uma atitude imperialista. No entanto, parte das atividades de Lund fora parcialmente financiada pela Coroa dinamarquesa. O desenhista de Lund, Peter Andreas Brandt, era pago com uma bolsa fornecida pela academia dinamarquesa de ciências.

Desenho de P.A. Brandt mostrando o trahalho nas cavernas. os homens almoçando dentro da caverna e os jumentos usados para carregar a terra retirada fazem contraste com a bela cortina calcária ao fundo.

Brandt, assim como Lund, nunca voltou para a Dinamarca. Seus desenhos das escavações e as ilustrações dos esqueletos encontrados foram muito importantes para o trabalho de Lund. O traço de Brandt ligou-se ao texto de Lund. Mesmo passando com sua família passando por diversos percalços na Escandinávia, Brandt ficou em lagoa Santa até morrer em 1862.

Viver e morrer em Lagoa Santa

Lund estivera pela primeira vez no Brasil entre 1825 e 1829. Nesta primeira viagem, ele ficou principalmente no interior da província do Rio. Tratou de voltar em 1834, quando fez uma viagem que atravessou o Rio, São Paulo e Goiás, terminando em Minas. Em São Paulo, visitou a fábrica de ferro de São João de Ipanema, grande centro industrial da época. Esteve também na Vila de São Carlos, a atual Campinas, antes de partir para o cerrado dos Goiás.

Quando chegou a Minas, entretanto, Lund deixou-se ficar. Escolheu a pequena Lagoa Santa como seu ponto de apoio. Quando terminou suas escavações, deixou-se ficar na pequena vila. Dizia a família que estava doente, e que temia retornar ao frio do inverno dinamarquês. Arrumou mil desculpas. Foi ficando, ficando e ficou. Incorporou-se e foi incorporado à pequena Lagoa Santa. Era, como vimos, um pacato e benquisto cidadão. No tempo em que ali viveu, Lund colocou a pequena vila no mapa da ciência.

Lund faleceu em 1880, aos 79 anos. Toda a população da pequena cidade seguiu o enterro. Em seu funeral a banda Santa Cecília tocou desde sua casa até o cemitério. O velho Lund havia deixado ordens em seu testamento que em seu enterro ninguém deveria chorar.

Peter Lund, o cientista

Peter Lund foi muito importante para a Paleontologia. Seus achados de animais consolidaram a questão das faunas de mamíferos pleistocênicos. Suas descobertas foram importantes para os debates sobre a teoria da evolução das espécies, embora Lund tenha permanecido sem criticar o catastrofismo de seu mestre Cuvier.

Os esqueletos humanos encontrados em lagoa Santa são os mais antigos até hoje descobertos no continente americano. Lund, ao comparar os esqueletos humanos e a fauna pleistocênico concluiu afirmativamente pela sua grande antiguidade. Era o famoso “homem de Lagoa Santa”. No entanto, hoje mais famosa é uma mulher. Foi nestas cavernas que foi encontrado, no inicio deste século, o esqueleto de Luzia. Trata-se do mais antigo esqueleto humano das Américas, descrito pela equipe do arqueólogo Walter Neves.

A reconstrução do cranio chamado de Luzia: a mais antiga americana até hoje conhecida.

Lund também se correspondeu com os cientistas brasileiros do Instituto Histórico e Geográfico brasileiro. Embora nunca tivesse saído de Lagoa Santa, ele acabava por atrair diversos pesquisadores para a pequena vila. Seu mais assíduo visitante foi JT Reinhardt, botânico dinamarquês, que fez importantes observações e descrições das plantas do cerrado. Outro visitante ilustre foi outro botânico, Eugene Warming.

O “Pai” da Paleontologia Brasileira?

Quando se pensou numa história das ciências geológicas no Brasil, o nome de Lund não pôde deixar de ser citado. Entretanto, os historiadores mais envolvidos com teorias positivistas resolveram simplificar:  Lund foi proclamado o “pai” da paleontologia brasileira.

A ciência não tem pais. Nem mães. A ciência é uma atividade da cultura humana com outra qualquer. Apesar de sua imensa contribuição, Peter Lund não é nosso “pai”, na medida em que não nos deixou “filhos”. Não há uma tradição, uma maneira de pensar, uma sequência de paleontólogos criados a partir de Peter Lund.

O homem de Lagoa Santa era tudo isso. Complexo e contraditorio. Um grande cientista que queria viver só e pacatamente no interior da Brasil. Em Minas Gerais, quem não quer?

Para saber mais:

Holten, Birgitte, and Michael SterllPeter Lund e as grutas com ossos em Lagoa Santa. Editora UFMG, 2011.