Arquivo mensais:junho 2018

Rodólitos: bolas fósseis, embora não de futebol

Esta semana lembrei do meu aluno que passou um bom tempo estudando comigo os organismos e minerais associados aos Rodólitos… será que ainda lembra deles? Também lembrei da vez em que tentei brincar com um rodólito na aula de Paleontologia acerca de recifes e, como não consegui pegar de volta na mão, um belo exemplar se espatifou no chão, e aí a turma toda parou para rir. Mas o que são os rodólitos? São algas vermelhas (Corallinales, Rhodophyta) calcárias, não articuladas, que habitam os mares do nosso planeta de forma extensiva desde as latitudes equatoriais até as polares, ocorrendo a partir das zonas de marés, até profundidades de 268 m. Uma das tantas curiosidades dessas estruturas é que as algas vermelhas possuem uma maior quantidade de carotenoides, que permitem utilizar mais intensamente a radiação azul para realizar a fotossíntese. Esta característica é importante porque a radiação azul penetra mais profundamente na água, permitindo que essas algas façam fotossíntese a profundidades maiores. Uma vez que os carotenoides refletem a radiação vermelha, essas algas possuem coloração avermelhada, diferente das plantas verdes que habitam a superfície que utilizam também a radiação vermelha para realizar a fotossíntese, refletindo a radiação verde.

Rodólito coletado na Ilha de Itaparica, BH. Barra de escala = 1 cm

O que poucos sabem é que na costa brasileira está localizado o mais extenso e contínuo banco de rodólitos do mundo, com cerca de 4.000 km, indo do Maranhão até Rio de Janeiro. Desse banco de rodólitos faz parte o arquipélago de Abrolhos, no litoral sul da Bahia, o qual eu quero muito conhecer já faz um bom tempo. Com relação à espessura desse enorme banco, ela geralmente varia entre 10 e 26 cm, chegando até 1 m de espessura em alguns locais. Na costa brasileira são encontrados verdadeiros mantos de rodólitos no topo e na margem de recifes e em depósitos isolados no fundo não consolidado.

Bancos como esses podem gerar rochas reservatório de petróleo, além de ser uma enorme fonte de calcário (CaCO3) e, portanto, um importante agente de sequestro de carbono na crosta terrestre.

Além de tudo isso, esses bancos são um paraíso de diversidade marinha, pois eles são constituídos por várias espécies de algas calcárias, que estão entremeadas em camadas juntamente com outros organismos incrustantes (p. ex. foraminíferos, poliquetas, etc.).

Rodólito
coletado na Praia de Maragoji, Alagoas. Barra de escala = 1 cm

As algas calcárias vermelhas, ao constituírem os rodólitos, podem modificar fisicamente o ambiente, pois são capazes de transformar o sedimento de fundo não consolidado em substrato duro e heterogêneo, produzindo um substrato firme sobre o qual outros organismos podem vir a se fixar. Seu registro geológico é continuo e bastante abundante a partir do Paleoceno (60 milhões de anos atrás), e seus fósseis podem ser encontrados em todos os continentes, embora eles não sejam tão famosos como os dos dinossauros e, portanto, desconhecido.

Uma vez que um mesmo rodólito por alcançar diâmetros semelhantes ao de uma bola de futebol, e que por apresentar crescimento continuo, porém lento (1 mm/ano), o mesmo exemplar pode sofrer a agregação de algas calcárias, além de outros organismos e sedimentos minerais ao longo de um século, compondo verdadeiros livros abertos ao estudo das mudanças ocorridas nos mares, pois camadas ou mantos de rodólitos possuem registros das variações climáticas ocorridas durante o seu desenvolvimento, já que mudanças de distribuição de luz, temperatura, turbidez, salinidade, pH, nutrientes, soterramento, etc. influenciam diretamente no seu crescimento. Dessa forma, períodos com temperaturas mais altas das águas marinhas induzem a maior precipitação de carbonatos e, portanto, um aumento sensível na sua espessura. Uma vez que seu desenvolvimento acontece de forma concêntrica, as camadas mais internas podem ser consideradas mais antigas e externas mais recentes, o que faz possível realizar datações utilizando métodos como C14 pelo menos até 60.000 anos atrás.

Mas como achar uma estrutura dessas? Com certeza quem já foi na praia no Brasil, já topou, ou quem sabe até chutou uma estrutura dessas. Elas muitas vezes são encontradas nas praias, pois como não se fixam ao substrato, podem ser facilmente transportadas pelas correntezas marinhas até a praia, de onde podem novamente ir para no fundo do mar.

 

 

Por que os filmes encantam a gente?

Ainda não assisti ao novo filme (Jurassic World), e vocês? Mas, claro, já me falaram muito bem dele.

‘Life cannot be contained. Life breaks free,
life finds a way’

Neste post aqui foi comentado sobre  a (im)possibilidade de criarmos um dinossauro a partir de um genoma. Muitos vídeos na internet e muitos livros abordam o tema. Do ponto de vista paleontológico,  a preservação de material genético é impossível. A molécula de DNA é uma estrutura complexa e delicada, que se destrói rapidamente (já falamos aqui sobre o processo de fossilização). Não há como manter algo assim preservado numa rocha por milhões de anos. Então todo o início da série de filmes Jurassic Park e Jurassic World não é cientificamente viável.

Mas não é por isso que histórias de ficção baseadas em conceitos científicos não nos tocam. Conheço uma geração inteira de paleontólogos (vertebradólogos, ou seja, que estudam vertebrados, dentre eles, dinos), que surgiu com o encantamento ocasionado pelo(s) filme(s). No caso da paleontologia, trazer alguns conteúdos à tela foi excepcional.

Existem inúmeros posts e livros que podemos citar que debatem as etapas impossíveis que deveriam ser ultrapassadas para criar a situação representada nos filmes, mas, vamos aos pontos positivos?

Jurassic Park trouxe…

1- …talvez pela primeira vez, dinos retratados como animais, não como meros monstros malignos (apesar de eles gostarem de matar despropositadamente, mesmo nas séries Jurassic Park e seguintes);

2- …uma representação muito acurada destes animais vivos. Eles são imensos, desafiam a imaginação de qualquer um! de seus restos criamos as lendas de dragões, deuses, e outros mitos em quase todas as culturas humanas… vê-los em tamanho real, interagindo com pessoas, numa perspectiva extremamente realista é, simplesmente, sensacional.

Uma das  críticas mais comuns da exposição de bonecos de dinos que temos atualmente no instituto é o fato de não termos quase nenhum em tamanho real (com exceção do pterossauro que não faz parte da expo em si, e do banner com 3 dinos em tamanho real – mas não são bonecos, só fotos!);

3- …um pouco de ciência, no meio de muita ficção. Mas é isso que faz as pessoas se perguntarem:

  • tem gente que trabalha com dinossauros? sim, o paleontólogo, geólogo ou biólogo estão aí pra isso (dentre outras funções)…
  • será que é possível reconstruir um animal desses por um DNA preservado em âmbar? já vimos que não, mas…
  • e se tivessem mesmo como reproduzir um animal desses, o que poderia acontecer…? por mais que a história do filme traga muitas situações críticas, refletir sobre o assunto, por si só já é interessante;

Trazer as possibilidades à tona instiga as pessoas a saberem mais sobre a ciência; isso, por si só, é muito importante. A beleza da divulgação científica está em despertar o interesse. Plantar a semente.

4- …situações críticas (ambientais, ecológicas, biológicas) num mundo -relativamente- real, com pessoas normais. Não são super-heróis que lidam com os dinossauros. Em geral, os dinossauros não são monstros com poderes infalíveis, existe um certo compromisso com conceitos científicos modernos. Essa proximidade conosco instiga nossa imaginação e  desperta um efeito “wow”. É encantamento pelo grande, pelo desconhecido, pelo assutador.

Existem inúmeras maneiras de se divulgar ciência para o grande público. Investir milhões de dólares, em geral, não é algo disponível para quem tem esse objetivo e trabalha na universidade; mas uma série de filmes como Jurassic Park e Jurassic World traz a oportunidade de debate na paleontologia. Muitas coisas podem estar cientificamente erradas ali. Muitas outras têm fundamentos corretos. Quais? Como? Porquê?
Leiam, comentem, assistam, debatam!

É  assim que a ciência progride.

Uma historia de amor, magia e …. mineração!

Para Maria José, minha Martine de Bertereau

Martine de Bertereau e Jean de Chastelet são um dos casais mais interessantes da história da mineração. Jean e Martine, O barão e a baronesa de Beau-Soleil, trabalharam dezenas de anos lado a lado na função de descobrir e explorar jazidas minerais.  Neste caminho, juntando alquimia, magia, acusações de bruxaria e um sólido casamento, construíram uma obra das mais originais da história da mineração moderna.

As mulheres também tinham papeis importantes na ciência alquímica. esta imagem mostra uma alquimista preparando suas experiências da “Grande Arte”

Jean de Chastelet, Barão de Beau-Soleil, nasceu em 1578 em Brabant, nos Países Baixos espanhóis. Hoje, Bélgica. Não se sabe onde estudou. Contudo, seus conhecimentos o levaram para a mineração.  Com 22 anos, Jean de Chastelet foi chamado para trabalhar na França pelo superintendente de Minas, para trabalhar como mineralogista, alquimista e “mineiro”. Mineiro, na linguagem da época, seria algo próximo do atual engenheiro de minas.

MARTINE E JEAN

Em 1610, ele se casa com Martine de Bertereau, moça culta e educada, que vinha de uma antiga família de mineradores. No entanto, não se conhece muitos detalhes de sua familia.  A própria Martine escreveu anos depois que  a ciência das minas era “hereditária na família“. De toda forma, Martine falava diversas línguas, era fluente em latim e sabia os rudimentos de hebraico. Tinham também sólidos conhecimentos de alquimia, química, metalurgia, geometria, hidráulica e outras ciências.

O casal vai trabalhar sob a proteção do rei Henrique IV, rei liberal e patrono das artes e das ciências, inclusive da alquimia. No entanto, com a morte do rei logo a seguir, Jean e Martine perdem seu emprego. Apesar de tudo, isso não os tirou da mineração: nos 16 anos seguintes, eles passam viajando e conhecendo as mais diversas minas da Europa. Há evidências que teriam também trabalhado nas famosas minas de Potosi, na atual Bolívia, então as maiores minas de prata do mundo.

Em 1626, o casal volta à França. Nesta época, o barão e a baronesa de Beau-Soleil foram comissionados para ordenar as áreas de mineração francesas, as quais haviam sido negligenciadas por anos. Eles tinham que localizar minas antigas, prospectar novos depósitos e reavaliar as condições das minas em funcionamento. Era uma tarefa grande. No entanto, o barão e a baronesa tinham certeza de um ganho financeiro muito grande. Nestes anos, segundo suas contas, eles haviam gasto cerca de 300 mil libras no trabalho.

ACUSAÇÕES DE BRUXARIA

No entanto, um episódio muito desagradável ocorreu na vida da família Beau-Soleil na pequena cidade francesa de Morlaix, na Bretanha. Corria o ano de 1627. Um bailio, antigo oficial de Justiça provincial, invadiu os alojamentos do casal, que estava fora em viagem. Nos alojamentos, o bailio encontrou pedras preciosas, amostras de minerais, instrumentos de prospecção e refino de metais, livros sobre fundição e alquimia, cadernos e papeis de todos os tipos. Parecia evidente: o estranho casal praticava as mais estranhas feitiçarias.

Uma acusação de bruxaria nesta época era muito séria. Apesar do magistrado de Rennes, que julgou o caso, ter absolvido o casal, os bens confiscados pelo bailio nunca retornaram a seus antigos donos. Assustados, Jean e Martine fugiram e se refugiaram na Áustria, onde Jean foi nomeado conselheiro das minas da Hungria pelo imperador Ferdinando II.

O PEDIDO AO CARDEAL

Pouco tempo depois, no entanto, procurando reaver o dinheiro investido, Jean e Martine retornaram à França. Em 1632, Martine de Bertereau escreveu “Declaração verdadeira ao rei e aos cavalheiros do conselho sobre os ricos e estimados tesouros recentemente descobertos no reino da França”. Nesta publicação, que era uma mistura de relatório e solicitação de reembolso, Martine descreve as minas descobertas ou trabalhadas pelo casal Beau-Soleil na França até então. A estratégia tem sucesso, e Jean recebe a patente de inspetor geral das minas da França.

No entanto, as condições financeiras não melhoraram. Em 1640, Martine de Bertereau escreveu uma nova carta. Não ao Rei, mas ao todo poderoso Cardeal Richelieu. Nesta carta, publicada com o título de La Restauration de Pluton (A restituição de Plutão), Martine de Bertereau descreve novamente diversos depósitos minerais, suas técnicas de pesquisa e exploração. Também, é, claro, pede o retorno do dinheiro investido pelo casal no trabalho.

O cardeal Richelieu, a grande sombra dos reis franceses; ele mandou Jean e Martine para a prisão em 1642, de onde não mais retornariam

Desta vez, não funcionou. O cardeal Richelieu mandou prender Jean e Martine, sob o pretexto de que o casal praticava astrologia quiromancia e leitura de horóscopos. Jean acabou morrendo na terrível Bastilha em 1645. Martine e sua filha, aprisionadas na prisão de Vincennes, desapareceram sem deixar traços.

A RESTITUIÇÃO DE PLUTÃO

A Restituição de Plutão é um curso de mineração. Nele, Martine de bertereau dá uma longa lista de depósitos metais como prata, chumbo, ouro, ferro, cobre. Dá também uma lista de outras substâncias importantes, como pigmentos minerais, pedras de moinho, carvão, rochas ornamentais e pedras preciosas. Durante muito tempo, as informações contidas nos escritos de Martine foram muito valiosas na descoberta de bens minerais.

Cartas astrologicas para encontrar metais; Martine de Bertereau encontrou diversas minas com esta técnica.

Para Martine de Bertereau, existiam diversas regras que deveriam ser seguidas para se achar um deposito mineral. Cavar, para ela, era a menos importante. Mais do que só cavar a terra, era necessário observar as plantas, o gosto da água, os vapores emitidos pelas montanhas. E, também, o uso de instrumentos.

Entre estes instrumentos estavam as varas divinatórias para encontrar metais. Estas varas, sete no total, uma para cada tipo de planeta. Para a astrologia, cada planeta estava relacionado com um metal. Assim, o ouro estava relacionado ao sol, a prata a lua, marte ao mercúrio, e assim por diante.

AS CIÊNCIAS DA MINERAÇÃO

Entre as ciências relacionadas com os trabalhos mineiros, Martine relaciona a astrologia, a arquitetura, a geometria e a aritmética, a hidráulica, o direito, a medicina, a lapidaria (a atual petrografia), a botânica e a química. Contudo, para desespero dos que hoje bradam contra as Humanidades, Martine recomenda as Letras, o Direito e a Teologia entre os conhecimentos uteis para a boa prática da mineração.

Que ciência era essa que Martine e Jean praticavam? Certamente, a arte das minas. Neste tempo, conhecimentos que hoje desprezamos como inúteis, bobagens ou pseudociência eram os conhecimentos necessários. Causa mais espanto, talvez, a presença da alquimia e da astrologia.

Os métodos de pesquisa de minerais seguiam os preceitos da alquimia e da astrologia, alem da procura dos sinais da natureza. ilustração do De Re metellica (1556) de Georgius Agricola (1494 – 1555)

No entanto, para os mineiros da época, os espantos eram maiores. Martine trata também da presença de duendes nas minas, “pequenos seres vestidos como os trabalhadores” que podiam ser vistos nos subterrâneos. Entretanto, Padre Kircher, de quem já falamos aqui, confirmava a presença destes seres em seus livros. Essa era uma ciência ainda cheia de sobrenatural e de magia, tão típica do platonismo da Renascença.

Entretanto, essa estranha reunião de saberes nos faz pensar em como serão os trabalhos mineiros (se é que haverão minas) daqui a cem anos. Quais serão as ciências utilizadas? Quais serão as ciências descartadas? E quais as desprezadas? Fica aqui a dica para uma interessante conversa de bar…

UM CASAL AFINADO

Por outro lado, tudo nos leva a crer que Martine e Jean trabalhavam juntos, lado a lado. Esse é um espanto num mundo mineiro moderno que ainda acha que as mulheres “dão azar” nas galerias subterrâneas. E um bom exemplo a ser seguido.

A parceria era tal que cada um tinha seu papel. Martine, certamente, era a erudita do casal, a que escrevia e estudava. E que escrevia os livros. Jean era provavelmente o executivo, o que estava em campo. Entretanto, isso era admirável. Por um lado, o trabalho conjunto e igual de Jean e Martine, num mundo em que as acusações de bruxaria e feitiçaria eram comuns e naturais, causa-nos um espanto ainda maior. Acusações que lhes foram feitas e que lhes custaram a morte nas masmorras do ancien regime.

A VIDA PÓSTUMA DE MARTINE DE BERTEREAU

Segundo a historiadora Martina Kolb Ebert, a vida póstuma de Martine de Bertereau foi ainda mais agitada que sua atribulada existência terrena. Durante o Iluminismo, ela foi considerada meramente uma charlatã e aventureira. Por outro lado, durante a industrialização francesa no seculo XIX ela foi considerada uma heroína, uma economista visionaria. Da mesma forma, para os nacionalistas românticos, Martine de Bertereau era uma legítima heroína nacional.

Hoje, os trabalhos que se ocupam dela e de sua vida põe em relevo seu papel de heroína feminista, mulher cientista, “a primeira geóloga da França”. É o que vem a nossa mente quando lemos sobre ela. Impossível, para nossa moderna mentalidade, não pensar nisso. no entanto, precisamos saber mais sobre Martine de Bertereau, alem dos estereótipos e das lendas.

Numa época em que ciência e magia eram uma coisa só, Martine de Bertereau foi uma sábia notável . Também foi mãe de pelo menos três filhos. E, como companheira e colega de trabalho de Jean de Chastelet, foi incansável na busca pelo sucesso material do casal. A junção de amor, magia e mineração foi um traço inseparável dos dois.

Que estranho. E que notável.

PARA SABER MAIS:

Kölbl-Ebert, Martina. “How to find water: the state of the art in the early seventeenth century, deduced from writings of Martine de Bertereau (1632 and 1640).” Earth Sciences History 28, no. 2 (2009): 204-218.

Findlen, Paula. “Histoire des femmes de science en France. Du Moyen Age à la Révolution.” (2005): 518-520.