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A Cólera, uma Pandemia Imperialista

Estamos vivendo uma nova pandemia. A cada pandemia, nossos recursos e nossa capacidade de reagir tem aumentado sensivelmente. Mas os nossos problemas, entretanto, ainda são os mesmos: desigualdade, infraestrutura precária, pouco comprometimento das autoridades públicas. E, da mesma forma, em meio à loucura coletiva que se instala, há muito esforço da população e da sociedade para superar e vencer estes momentos tão dramáticos.

Doente de Cólera (~1880)

Nosso exercício aqui é discutir e trazer alguns dados destas pandemias antigas no mundo e no Brasil. É um esforço para que, através do conhecimento histórico trazido por estas outras pandemias, nos ajude um pouco na compreensão do conturbado momento em que vivemos. Conhecer a história, neste caso um pouco de História da Ciência, é necessário para que este conhecimento possa nos ajudar e – por que não? –  nos guiar neste mar revolto que estamos atravessando.

A primeira pandemia da modernidade

No rol das grandes pandemias que assolaram a humanidades nos últimos duzentos anos, as pandemias de cólera merecem um lugar de destaque. (adoto aqui cólera, seguindo a professora Raquel Lewinson, pois, segundo ela, a palavra não é masculina). Sua virulência e sua letalidade, assim como a rapidez com que se espalhou por todos os continentes habitados fez dos diversos surtos de cólera que tem nos assaltado ate hoje (!) momentos de grande sofrimento e apreensão.

A cólera é causada por uma bactéria, o vibrião colérico. Em meados do século XX, além do vibrião colérico “clássico”, os biotipos El Tor e El-Tor-Inaba surgiram para complicar o quadro. Entretanto, o vibrião colérico não tem outros hospedeiros além do homem. Por outro lado, não existem hospedeiros animais conhecidos. O vibrião se encontra nas fezes, tanto de doentes quanto de pacientes assintomáticos. A contaminação das pessoas se dá por ingestão de água ou alimentos contaminados.

Depois de deglutido, se conseguir sobreviver à acidez do estomago, o vibrião chega ao trato digestivo humano. Lá instalado, o vibrião causa muita diarreia e vômitos, além de cólicas abdominais e espasmos musculares violentos. Quando infectada pela cólera, a pessoa fica rapidamente desidratada e com uma coloração azulada, a pele murcha. Assim, a morte se dá pela violenta perda de água, assim como dos eletrólitos nela dissolvidos. Isto causa desidratação, queda do volume de sangue circulando, hipertensão arterial e arritmias cardíacas, bem como falência das funções de circulação do sangue e dos rins.

A Cólera e o Império Britânico

A cólera é originaria da Índia, onde ela é uma doença endêmica, principalmente na região de Bengala. Existem notícias desde 500 a.C., escritas em sânscrito e em grego, relatando doenças parecidas com a cólera. Gaspar Correa, que participou da viagem de Vasco da Gama à Índia, anotou a ocorrência de uma fulminante doença na região do Malabar. Desta forma, Gaspar Correa descreveu uma doença fulminante, uma forte dor de barriga que matava as pessoas em oito horas.  

Entretanto, quem mais fez para que a cólera virasse uma pandemia foi o Exército Inglês. Pode-se dizer que a cólera foi a primeira grande pandemia imperialista. Viajando em modernos vapores, os soldados ingleses, os “red coats”, espalharam a doença a partir da Índia para quase todos os portos em que fizeram escala no Oceano Índico, até que chegaram às ruas sujas e fétidas da Londres oitocentista. De Londres, a cólera pegou o trem e espalhou-se rapidamente por todo o Reino Unido. De lá, o vibrião colérico atingiu toda a Europa e, pouco mais tarde, as Américas.

A Pandemia seus tentáculos

Assim, a cólera se espalhou por todo o mundo no século XIX. Os diversos surtos epidêmicos ocorreram principalmente entre os anos 1817-1823, 1826-1837, 1846-1862, 1864-75 e 1881-1896, chegando mesmo aos dias de hoje. Em sua nova forma, com o vibrião El-Tor, a doença voltou a reocupar algumas áreas da Ásia, África e Américas, de onde parecia ter sido extinta. No Brasil, os anos 1990 foram anos de epidemias muito intensas de cólera do tipo el-Tor-Inaba.

Durante a grande pandemia do cólera, que experimentou vários pequenos surtos de mais alta intensidade, as populações expostas a sua ação ficavam apavoradas e desnorteadas. Não era para menos. Entretanto, as autoridades públicas responsáveis por este enfrentamento, embora tomassem diversas medidas, não sabiam exatamente o que fazer. Desta forma, havia uma certa noção que a higiene era importante. Mas não se sabia como a cólera se transmitia. Nem qual seria o tratamento mais adequado.

Pacini e o vacilo de Koch

Os governos e dos cientistas de todos os países durante este tempo gastaram muito tempo e dinheiro na busca de uma solução para se descobrir as causas da transmissão e também a cura da doença.

Filipo Pacini, anatomista italiano, descobridor do Vibrião da cólera em 1854
Filipo Pacini, anatomista italiano, descobridor do Vibrião da cólera em 1854

O vibrião colérico foi descrito pela primeira vez em 1854 pelo médico italiano Filipo Pacini (1812-1883). O trabalho de Pacini, apesar de muito bem feito e com descrições muito boas do patógeno, foi praticamente ignorado pelos patologistas europeus. Algum tempo depois, pelo alemão Robert Koch (1843 – 1910) que fez o anúncio da descoberta do “comma bacillus” em 1883. Motivo pelo qual o vibrião ficou durante muito tempo conhecido como o “bacilo de Koch”.

(A gente não aprende que um dos princípios da ciência é a prioridade nas descobertas? Por este singelo motivo, o vibrião devia se chamar Bacilo de Pacini. No entanto, a questão, como mostraram vários pesquisadores da História das Ciências, é que a ciência não é neutra. Ela tem cara, etnia, gênero definidos. A comunidade médica Italiana tanto protestou contra o injusto esquecimento do excelente trabalho de Pacini. Tanto que, em 1965, o Comitê Internacional de nomenclatura Bacteriológica reconheceu a anterioridade de Pacini e o bacilo foi renomeado como Vibrio colerae Pacini 1854.)

Vibrião colerico, descrito por Pacini, 1854

Robert Koch e a bacteriologia

O bacilo (na verdade um vibrião) da cólera foi, portanto, (re)descoberto em 1883-84 pelo Dr Robert Koch (1843 – 1910) e sua equipe. A descoberta do vibrião foi um esforço dos cientistas que construíam a “teoria dos germes”, ou teoria contagionista. Esta teoria pressupunha que as doenças seriam transmitidas através do contato entre as pessoas, que transmitiram os “germes” de uma a outra, provocando o contágio. Entretanto, a aceitação desta explicação, como tudo em ciencia, não era unversal. Existia uma outra teoria, a teoria miasmática, que pressupunha que a doença se espalharia pelo ar contaminado, os “miasmas”. Voltaremos a este assunto em outro post.

Robert Koch, bacteriologista alemão, foi importante na descoberta dos bacios da difteria, antraz, tuberculose e cólera
Robert Koch, bacteriologista alemão, foi importante na descoberta dos bacios da difteria, antraz, tuberculose e cólera

Robert Koch, a partir de seu laboratório em Berlim fez várias descobertas importantes, como as bactérias que causam o antraz, a difteria e a tuberculose. Trabalhando em paralelo com Louis Pasteur e outros, foi um dos criadores da moderna bacteriologia. Desta forma, seu laboratório em Berlim foi um dos primeiros no mundo a desenvolver as técnicas de cultura de bactérias que usamos até hoje.

Ilustração do vibrião num periódico cientifico do seculo XIX
Seção de submucosa intestinal de uma mulher vitima de cólera quatro dias após o óbito, com comunidades de bactéria s em forma de bastão (vibriões?)

Koch conseguiu isolar o seu “comma bacilus” numa viagem que fez ao Egito e à Índia, para acompanhar dois surtos importantes da doença. A carta que escreveu em 1884 de Calcutá foi importante como o início de novas formas de entender e trabalhar coma doença.

Entretanto, não foi um caminho fácil. Koch ainda teria que provar que o seu “Bacilo” era o transmissor da cólera. Seu embate com o famoso médico alemão Max von Pettenkofer, que defendia uma teoria que mesclava emanações miasmáticas a partir de interações entre o solo e o lençol freático, foram debates importantes neste período.

Pandemias e Sociedade

Entretanto, o desenrolar de uma pandemia, como estamos vendo muito bem no presente, não se resume a contendas de ideias ente cientistas. A força da doença e os impactos na saúde das pessoas também acaba por provocar grandes comoções sociais e políticas. Assim, é desta intrincada relação que temos que escolher os fios que guiam a história destes eventos.

A cólera, juntamente com as outras doenças endêmicas como a tuberculose, a difteria, a febre amarela e tantas outras foi responsável por um grande número de respostas dadas pelas diferentes sociedades para sua erradicação. Entretanto, depois da Pandemia de cólera, a humanidade não seria mais a mesma. Por outro lado, a pandemia não envolveu somente cientistas em seu trabalho de laboratório, por mais importante que este fosse. Envolveu médicos, mas também envolveu engenheiros, arquitetos e políticos.

Desta forma, a cólera, como qualquer outra epidemia/pandemia,  quando ataca uma sociedade, e tornou evidentes as suas contradições, principalmente as questões de desigualdade social. Assim, as pestes, por mais democráticas que pareçam, tem uma especial predileção pelas populações mais pobres e, portanto, mais vulneráveis. Por isso, pandemias também são quase sempre misturadas aqui e ali por numerosos protestos e revoltas populares.

Não é à toa que em representações mais antigas a peste esteja sempre associada as suas irmãs, a guerra e a fome.

Temos muita coisa a discutir.

Para saber mais:

Lewinsohn, Rachel. “Três epidemias: lições do passado.” Ed Unicamp, 2003: 318 p.

Coleman, William. “Koch’s comma bacillus: the first year.” Bulletin of the History of Medicine 61, no. 3 (1987): 315-342.

CAmpo de golfe e as antigas cavas de argila mostrando pegadas de Dinossauros e mamíferos, alem de restos de plantas.

No Mesozoico, jogando golf com Fred Flintstone

Estaria o blogueiro pirando? Golf? Mesozoico? Fred Flintstone?

Sim, desta o blogueiro viajou. Era no mês de junho. Estava um sol forte aquela hora da manhã, e eu estava caminhando por uma trilha que levava a estação de trem de Jefferson County, no estado americano do Colorado. Vez em quando passava alguém de bicicleta pela trilha. Foi quando eu vi a plaquinha indicando: Triceratops Trail. Será que eu ia encontrar com um feroz Triceratops na minha frente se eu seguisse aquele caminho? meio receoso, entrei.

CAmpo de golfe e as antigas cavas de argila mostrando pegadas de Dinossauros e mamíferos, alem de restos de plantas.Campo de golfe e as antigas cavas de argila mostrando pegadas de Dinossauros e mamíferos, alem de restos de plantas. Ao fundo o Morro da Mesa (Table mountains), onde estão os basaltos Terciários.

Quando entrei na trilha do Triceratops, a primeira coisa que eu vi foram algumas cavas, com uma vegetação secundaria crescendo de dentro delas. Todavia, eu havia visto algumas maquinas grandes enferrujando no meio do mato. Já nem dava pra reconhecer, mas eu estava entrando numa área antiga de mineração. No entanto,o que isso tinha a ver com o Triceratops?

ENTRANDO NA CAVA DE ARGILA

Soube pelos cartazes que tinham por ai que aquelas perigosas cavas que estava vendo, com vários metros de altura, eram antigas cavas de argila. Estas cavas foram exploradas pela Família Parfet, que produzia cerâmicas, tijolos e tubos de esgoto para todo o pais.  Primeiramente, uma foto num cartaz na entrada de uma destas cavas mostrava  patriarca George Parfet, sua esposa Mattie e seus seis filhos. Alem do mais, outras fotos antigas mostrava o febril trabalho de escavação realizado pela empresa dos Parfett.

Como o cartaz orgulhosamente descrevia, a mansão do governador, varias escolas publicas e a antigas sede do fórum do condado de Jefferson foram construídos com tijolos feitos aqui. Durante quase 70 anos, escavadeiras e draglines escavaram as argilas da formação Laramie para fazer objetos cerâmicos. Nesta hora, eu estava ali andando por entre o que sobrou desas cavas. Parte era um campo de golf, parte um museu geológico.

Placa na Cava de Argila, mostrando o Triceratops e as marcas deixadas pelo animal

PASSANDO PELO CAMPO DE GOLFE

A maior parte da área era tomada pelo campo de golfe, ocupando as partes mais baixas das antigas cavas de argila. Contudo, a parte do campo de golf não me interessava. Não me interessava aquela grama verdinha e rente. Não me interessava aqueles carrinhos com aqueles senhores de bermuda e camiseta polo. Todavia, com seus chapeuzinhos ridículos, eles passavam acelerados, e nos atropelavam indiferentes em busca de suas ignominiosas bolinhas. Senti o risco iminente de ser uma vitima do golf e me afastei daqueles maniacos.

Alem do mais, o mato ao redor estava cheio de bolinhas de golf, o que provava cabalmente a imperícia dos senhores de tênis e meias brancas. Contudo, lembrei-me de Fred Flintstone, um dos poucos jogadores de golfe pelo qual eu tinha alguma estima. Assim, pela primeira vez, senti alguma conexão ali. Golfe, Fred Flintstone, dinossauros: fui ver os bichinhos.

A GEOLOGIA DE GOLDEN: O COLORADO FRONT RANGE

A geologia de Golden é muito interessante. Durante o Mesozoico, aquela área era uma grande planície deltaica, cheia de pântanos, rios e lagos. Da mesma forma, nos rios, uma areia fina era depositada, formando barra de meandros. Por outro lado, nas planícies, uma fina argila branca ia se depositando. Camadas de turfa também eram comuns neste ambiente.  Além do mais, nesta área, num clima mais quente que hoje, tínhamos muitas palmeiras e muitas especies de animais.

Geologia de Golden, Colorado
Bloco-Diagrama mostrando a geologia de Golden simplificada. a área do Triceratops trail está no centro da foto, onde as camadas estão verticalizadas.

Mais para o fim do Cretáceo, este ambiente úmido e quente foi se alterando. Quando houve na região a transição do Mesozoico para a  Terciário, com a extinção dos dinossauros, a região já havia se tornado mais quente e seca. Finalmente, lavas basálticas aparecem já no paleoceno, indicando uma mudança na dinâmica da região.

Contudo, o desenvolvimento de grandes falhas geológicas, como a Zona de falha de Golden (Golden Fault) e a Falha da Margem da Bacia (Margin Basin fault), marcam a transição da região das Grandes Planícies com as Montanhas  Rochosas. Assim, por ação destas falhas, o terreno mais a oeste, predominantemente granítico, literalmente “cavalga” sobre as rochas Mesozoicas/Terciárias e termina por dobra-las. Desta forma, pequenos morrotes, formados por rochas mesozoicas e terciarias dobradas marcam a transição geográfica da montanha para a planície. É o chamado Colorado Front Range.

DINOSSAUROS SUBINDO PELAS PAREDES

Como dissemos antes, o Triceratops trail esta situado no contexto do  Colorado Front Range. Aqui, as camadas da formação Laramie, do Mesozoico, estão todas verticalizadas, por ação da Clay Pits fault, a falha local do sistema. Com isso, a sensação que temos é a de que os dinossauros estão subindo pelas paredes. No entanto, não foi isso que aconteceu. centenas de milhares de anos após terem vivido por ali é que as camadas nas quais deixaram seus rastos foram basculadas e verticalizadas.

marca de pegada de Tiranossauro
Pegada de Tiranossauro

Desta forma, a exposição das pegadas e das diversas marcas ficou muito facilitada. Ali, podemos ver pegadas gigantes do gigante tiranossauro. Também podemos ver as marcas das pegadas do Triceratops.

Da mesma forma, podemos ver também pegadas de pequenas aves e mamíferos. De modo similar, nas Clay Pits podemos ver os restos de folhas de palmeiras. Alem das palmeiras, podem ser encontradas sicômoros, nogueiras, um tipo de gengibre e um parente distante do abacate.

Esta vegetação, juntamente com a ocorrência comum de marcas de animais pequenos e grandes mostra uma região que, no Mesozoico era quente e talvez por isso, muito rica em vida.

UM OUTRO MUNDO É POSSÍVEL

marcas de palmeiras fósseis
Marcas de folhas de antigas palmeiras; As especies de pnatas indicam um clima muito mais quente que o de hoje na região.

No final do Mesozoico, durante o período Cretáceo, a América do Norte era coberta por um mar raso, com algumas porções mais elevadas. Provavelmente, estas porções elevadas eram pequenas ilhas, das quais a região de Golden era uma delas. Ao redor, uma serie de . Com o passar do tempo, o soerguimento das Montanhas Rochosas acabou por acabar com este mar raso. Neste período, estava provavelmente localizada em latitudes menores. Este era o ambiente perfeito para o desenvolvimento, nas partes mais úmidas, de uma fauna abundante e diversificada.

A medida em que que as placas tectônicas continuavam se movimentando, a região das montanhas rochosas começa a ser “empurrada” para o leste. De fato, esta movimentação deu origem as falhas que conformariam a estrutura da região de Golden, onde eu me encontro agora, olhando pegadas de dinossauros na parede. Afinal, ver pegadas de animais extintos na parede de uma cava de argila nos dá noção de que vivemos num planeta dinâmico e em perpetua transformação. Desta forma, ao contrario do que alguns pensam, nós humanos não somo s o suprassumo da criação. Isto é, supondo que tenha havido uma criação.

SAINDO DA CAVA

Desta forma, assim que saí da cava, comecei a pensar em quantas informações diferentes havia ali naquela pequena área. Contudo, será que as pessoas que passavam aqui e ali teriam noção disso? Será que os caras do golfe ali do lado, mesmo que somente perseguindo suas inúteis bolinhas, saberiam disso?

O tempo da vida humana é muito curto. Decerto, algum grego ou romano já falou sobre isso. o detalhe é que, por certo, não temos condições de enxergar estas grandes mudanças no decorrer de nossas vidas. Primeiramente, para enxergar isso, o senso comum não ajuda. os vestígios da natureza, por outro lado, são muito sutis e complexos. Ali, saindo da cava do Triceratops trail, me dei conta do quanto as Ciências da Terra nos ajudam a enxergar o mundo.

AJUDA FRED FLINTSTONE!!

Num mundo em que a Ciência encontra-se tão ameaçada, certamente o conjunto de evidencias como o que havia ali no Triceratops trail é muito relevante. Estavam expostas ali, a céu aberto, muitas discussões interessantes sobre o passado, o presente e o futuro de nosso Planeta. Por certo, a maior parte das pessoas não está nem ai pra essas coisas. Da mesma forma, o fato de Fred Flintstone conviver com dinossauros parece plausível para muita gente. Entretanto, como se sabe, o ser humano só conviveu com os dinossauros nos últimos duzentos anos. Somente quando começamos a entender que aqueles esqueletos estranhos não eram obra do acaso ou restos de gigantes é que eles começaram a habitar entre nos, em nossas ideias, em nossos  pensamentos.

Por tudo isso é que repito: a Ciência deve entrar mais na vida das pessoas. Independente de sua posição no mundo, o letramento cientifico é cada vez mais necessário para um numero cada vez maior de pessoas. Temos que fazer de cada esquina um museu da historia da terra. Podemos não ter em todos os lugares historias tão interessantes como a do Triceratops trail e seu mergulho de cabeça nos pântanos do Mesozoico.

CIÊNCIA, LAZER E BICICLETAS

Projeto Geobike
Logo do Projeto Geobike, do Prof Wagner Amaral: trilhas geológicas em Campinas

Da mesma forma, aqui em Campinas, temos o  Projeto  Geobike, mais uma boa ideia do professor Wagner Amaral, do Instituto de Geociências da Unicamp. Assim, apaixonado por Geologia e por sua querida Campinas, o professor Wagner leva os amantes da bicicleta a locais nos quais eles até já poderiam andar, mas cuja historia (natural) ignoravam. Que enriquecedor! Juntar esporte, lazer e Ciência foi uma boa sacada. Que tal na sequencia juntar Ciência e Arte, juntar Ciência com tudo?

Entretanto, no caso das Ciências da Terra e do ambiente, nós precisamos de mais e mais trilhas como estas, que nos levem ao passado da Terra. Trilhas que nos ajudem a pensar melhor nosso presente e projetar melhor nosso futuro.

Bora lá?

O BIFE DETETIVE E O REFOGADO LAVOISIER

Lavoisier no bandejão

Quando eu escuto falar de Lavoisier, imediatamente lembro do refogadinho de legumes do bandejão. Sim, lá em priscas eras, no século XX, costumávamos dizer que o tal refogadinho, em geral servido nos jantares do bandeco, eram o reaproveitamento das sobras do dia. Logo, eram a mais perfeito tradução do “nada se perde, nada se cria, tudo se transforma” que havíamos aprendido nos bancos escolares. Em geral, o tal “Refogado Lavoisier” era servido juntamente com o sempre presente “Bife Detetive” – duro, frio e com nervos de aço.

No entanto, o que sabemos de Lavoisier?

Retrato de Antoine-Laurent Lavoisier (1743 – 1794)

Quando pensamos nele para além do refogado do bandeco, o significado de Lavoisier é mais difícil, retirado a fórceps da memória. Por exemplo, Lavoisier negou a noção de “flogisto”, uma noção meio primitiva e esquisita sobre a composição das substâncias. Com isso, estabeleceu as bases da Química Moderna. Descobriu o oxigênio? Foi guilhotinado durante o período do terror na Revolução Francesa?

Em resumo: conhecemos pouco de Lavoisier.

 

 

O “Pai” da Quimica?

A discussão como o ele venceu o debate sobre o flogisto é interessante. Vez ou outra, esta narrativa vem com uma afirmação de que Lavoisier trouxe racionalidade para um debate obscuro e primitivo. Apesar de ser parcialmente verdade, esta afirmação traz um pouco a noção de uma ciência que trazia a Luz contra as Trevas.

Na verdade, a discussão sobre o flogisto foi um debate entre dois paradigmas importantes do século XVIII. Entretanto, nenhum dos lados era “irracional” ou obscuro. Lavoisier tem culpas (e responsabilidades) pela Química Moderna, mas ele não foi o “Pai” da Química, como muitos tentam entender.

Da mesma forma, Lavoisier também fez inúmeras proposição de temas e discussões que não tiveram vida longa no arcabouço da Química. Muitos de seus trabalhos e idéias também foram abandonadas por obsoletos.

Da mesma forma, a sua execução em 20 Floreal Ano II da Revolução (8 de maio de 1794) é tida por alguns como uma prova de que a Revolução Francesa era anticientífica. É um debate posterior, dos séculos XIX e XX, durante o qual diferentes correntes políticas disputaram o significado da Revolução Francesa. Lavoisier, entretanto, foi executado menos por ser um cientista, e mais por ter sido um funcionário do Antigo Regime, cumprindo o odiado papel de coletor de impostos.

Entretanto, Lavoisier foi isso, nada disso e muito mais.

A infância e a juventude de Lavoisier

Antoine-Laurent de Lavoisier nasceu em Paris em 26 de agosto de 1743. Pertencia a uma família rica, que fazia parte da chamada noblesse de robe (em português nobreza de toga). A nobreza de toga eram grupos de funcionários do governo francês do Antigos Regime, que ocupavam cargos na administração ou na justiça. Não eram nobres, mas sim burgueses enriquecidos, que eram acolhidos pelos governantes na administração do Estado.

Por outro lado, sua mãe, Émilie Punctis, era filha de uma abastada família de açougueiros parisienses. Os Lavoisier não eram parisienses, mas sim da pequena Villiers-Cotterets, distante cinquenta milhas a noroeste de Paris. O pai de Antoine, Jean-Antoine Lavoisier, embora de família enriquecida, era um forasteiro em Paris.  Na época, as relações familiares eram tudo. Foi graças aos esforços do um tio, que Jean Antoine alcançou o cargo de procurador do parlamento.

Émilie Punctis morreu quando o pequeno Antoine tinha cinco anos. Com a herança recebida da mãe, o menino se tornou uma pessoa rica. Com isso, dedicou-se a estudar: estudou no College des Quatre Nations, também conhecido como Colégio Mazarin, em Paris. Finalizados seus estudos iniciais, Lavoisier primeiro estudou leis, como seu pai. Ingressou  na ordem na Ordem dos Advogado com a idade de vinte e um anos. No entanto, não tinha a menor intenção de seguir a carreira, embora soubesse da importância do título de advogado na sociedade de seu tempo.

Todavia, seu interesse estava noutro lugar. Seu desejo não estava na carreira de advogado de seu pai, mas sim numa carreira na ciência. E aqui o jovem Antoine inicia sua carreira para se tornar um ícone da ciência moderna. E nome de Refogado.

(continua)

 

O ILUMINISMO E AS TRILHAS NO ALTO DO MORRO

(Este texto é dedicado a Gabriela Medero e Georges Goussetis)

No verão de 1776, Adam Ferguson (1723 – 1816) estava intrigado com algumas coisas que havia verificado ao andar pelo morro de Arthur´s Seat, em Edimburgo.

O morro Arthur´s Seat, em Edimburgo

Arthur´s Seat é uma pequena elevação urbana na parte leste de Edinburgo, próxima ao centro da cidade. As rochas que formam o topo do Arthur´s Seat são de composição basáltica, provenientes do resfriamento de uma antiga câmara magmática. No entanto,  embora essa história respire geologia, não é de basaltos que vamos falar aqui, e sim de Iluminismo.

Um trio de peso

Professor Adam Ferguson, Filosofo e historiador escocês

Adam Ferguson, filosofo e historiador escocês, adorava caminhar no Arthur´s Seat. Nestas caminhaadas deve ter tirado alguma inspiração para sua vasta obra. Nela, Ferguson mostrava seu apreço pelas sociedades tradicionais, como os clãs das Highlands, em contraste com os habitantes da cidades, que considerava mais “fracos. Entretanto, neste verão especifico, ao caminhar pelo Arthur´s Seat, Ferguson observou algumas manchas esbranquiçadas formando “trilhas” com formatos diferentes na vegetação do morro. Intrigado, Ferguson chamou alguns de seus amigos para verificarem o curioso fenômeno.

Os amigos chamados por Ferguson foram os medicos Joseph Black e James Hutton. O trio é um dos mais importantes do chamado Iluminismo EscocêsJoseph Black (1728 – 1799), como Ferguson, era professor da Universidade de Edimburgo, médico e um importante nome da química moderna. Foi ele quem descobriu o dióxido de carbono, em 1754. Entre seus feitos também se destacam a invenção de balanças de precisão e a descoberta do calor latente das substâncias.

Dr Joseph Black, um dos maiores nomes da Química no seculo XVIII

James Hutton (1723 – 1799), médico e cavalheiro escocês, por outro lado, é tido como um dos fundadores da geologia moderna. Tendo estudado medicina na Holanda, Hutton foi sobretudo um fazendeiro. De sua experiencia arando as terras das Lowlands escocesas, Hutton percebeu a relação que existia entre erosão, transporte e deposição de sedimentos.

Assim, Hutton estabeleceu claramente o conceito de ciclos de deposição e erosão, os quais formariam as rochas dos continentes e oceanos. Sua obra mais importante nos dias de hoje, Theory of the Earth, foi inicialmente lida por Joseph Black na Real Society of Edinburgh em 1785. Em 1797, após inúmeras revisões, ela foi finalmente publicada.

As “Trilhas” no Arthur´s Seat

O medico e Naturalista James Hutton, um dos pioneiros da geologia no seculo XVIII

Neste verão de 1776, entretanto, os três amigos estavam ainda pelo morro, verificando as marcas na vegetação, e interrogando diversas pessoas das redondezas. James Hutton, dois anos mais trade, escreveria um pequeno texto, publicado nos anais da Real Sociedade Cientifica de Edimburgo.  O texto se chama “Of certain Natural appearances of the ground of the Hill of Arthur´s Seat”.

Este texto, embora não tenha importância na obra de Hutton, é bastante interessante como um exercício de utilização do método científico. Nele, Hutton inicia a introdução com uma breve descrição do problema. Tratava-se de “trilhas” no morro, formada por plantas mortas e esbranquiçadas. De longe, parecia uma trilha, mas não estava relacionada com as trilhas dos caminhantes. Logo, teria outra origem, e que deveriam ser entendidas.

Ver, analisar, estudar

Por outro lado, as explicações de que tais marcas eram devidas a raios não pareceu suficiente. Hutton então, passa a descrever as marcas: elas ocorriam sobretudo nas partes mais altas do morro, e existiam marcas recentes e marcas mais antigas. As marcas mais recentes eram esbranquiçadas, enquanto as mais antigas eram enegrecidas, causadas pelo apodrecimento das plantas.

Assim, Hutton descreve que as marcas eram compridas, mas poderiam também ocorrer marcas com larguras similares aos comprimentos. As marcas eram paralelas umas às outras, e Hutton examinou algumas marcas de um verde intenso, crescendo junto com as marcas dos anos passados. Assim, lhe pareceu que estas marcas mais antigas eram agora cobertas pela vegetação nova, formando faixas de verde mais intenso.

Contudo, ao estabelecer tal sucessão, Hutton indaga: “quantas trilhas sucessivas poderiam ser detectadas pela observação de suas aparências?”. Depois de suas atentas observações no Arthur´s Seat, Hutton estabelece que “no mínimo” cinco sucessões de trilhas poderiam ser detectadas. Deveria haver mais, mas estas são as que se possui evidências concretas, afirma.

Insetos ou Raios?

Depois de descrever as trilhas, Hutton começa a discutir suas causas. Parece evidente que tal fenômeno ocorreu ali no mínimo, nos últimos oito ou nove anos. Embora muitos naturalistas tenham atribuído estes fenômenos aos trovões, Hutton observa que muitas das feições são formadas na primavera, quando não há tempestades elétricas na região. Também observa que as descargas tem direções variadas, o que contrasta com a similitude das trilhas, com sua disposição paralela umas as outras.

Hutton também considera a possibilidade da ação dos insetos na formação das trilhas. Da mesma forma, considera as possiblidades de colônias de insetos construírem as trilhas paralelas.  Mais uma vez, rejeita, com base nas suas observações, tal possiblidade.

Ao discutir estas possibilidades, Hutton observa: nos métodos de investigação do meio natural, é preciso muito cuidado ao considerar causas e efeitos e suas conexões: ambas as prováveis causas do fenômeno (eletricidades, insetos) estão longe de serem consideradas suficientes para uma adequada explicação do fenômeno.

Ciencia e Causalidade

Assim, Hutton termina o texto sem propor uma explicação para a trilhas de diferente coloração na vegetação do Arthur´s Seat.  Entretanto, é importante sua observação sobre a causalidade dos fenômenos. Quantas vezes atribuímos causas sem levarmos em conta uma correta leitura dos fenômenos? Quantas vezes saímos a dizer nossas verdades “cientificas” penduradas em interpretações parciais e (muitas vezes equivocadas) sobre as relações de causa e efeito dos fenômenos que estamos observando?

Contudo, podemos observar que o texto de Hutton tem uma estrutura parecida com nosso atuais papers: introdução, formulação do problema, descrição dos fenômenos, discussão das causas, conclusões.

Era um tempo de profundo questionamento. Intrigados, os três amigos andam pelo Arthur´s Seat procurando respostas. Estas respostas estão vinculadas a questões de causa e efeito (qual é o agente causador das “trilhas”?). No entanto, as respostas disponíveis não são suficientes. Não se pode ir adiante com estas observações. E fim. Encerra-se uma pesquisa, com dicas e questionamentos para os próximos, a subir nos ombros dos gigantes.

Ah, o Iluminismo!

Neste tempo de “autoproclamados” sábios, de terraplanismo social e de fake News, que falta que você faz…

Para saber mais:

Buchan, James. Capital of the mind. Birlinn, 2012.

Playfair, John. “Biographical account of the late Dr James Hutton, FRS Edin.” Earth and Environmental Science Transactions of the Royal Society of Edinburgh 88.S1 (1997): 39-99.

MULHERES ASSISTINDO UMA PALESTRA CIENTIFICA

Era uma noite fresca e agradável de junho no Rio de Janeiro. Dentro do anfiteatro, o sábio professor falava sobre os peixes da Amazônia num francês suave e macio. O salão estava cheio. Na primeira fila, a esposa do sábio cientista o olhava risonha, parecendo saborear o instante. Também na primeira fila saboreando o instante, mas de outra forma, estava um senhor louro, alto, de belos e tristes olhos verdes e com uma barba já bastante grisalha.

o biólogo franco-suiço Louis Agassiz

O sábio era o Ilustre Jean-Louis Agassiz (1807 – 1873) famoso biólogo e paleontólogo franco-suíço, radicado nos Estados Unidos. Sua esposa era Elizabeth Cary Agassiz (1822 – 1907), que acompanhava em sua viagem ao Brasil. O velho senhor de olhos verdes e barbas brancas era ninguém mais ninguém menos que o Imperador Pedro II.

MULHERES INTERESSADAS EM CIÊNCIA?

Elizabeth Cary Agassiz (1822 – 1907)

Aquela era a segunda palestra que Agassiz dava no Rio de Janeiro. Na primeira, havia duas semanas, havia sido quebrado um tabu: fora a primeira vez no Rio que mulheres foram convidadas a participar de uma reunião cientifica. Contudo, no salão, não haviam muitas mulheres, mas já era um começo.

Havia pouco, Agassiz havia perguntado ao Imperador porque as mulheres não participavam dos encontros científicos da corte.  O Imperador não entendeu direito a pergunta, e disse que elas não se interessavam “por estes assuntos”. No entanto Agassiz insistiu, e Dom Pedro assentiu em convidar também as mulheres.

Elas viriam com seus maridos, como era de costume nas festividades da corte. Haviam várias delas segundo o Dr Pacheco Jordão, “muito interessadas” em assuntos científicos. Um pouco incomodadas, segundo Elizabeth Agassiz, pois não sabiam como deveriam se trajar para aquela ocasião. Elas acabaram vindo em pequeno número na primeira palestra. Na segunda, o número já era um pouco maior.

A EXPEDIÇÃO THAYER AO BRASIL (1865-66)

Em suas palestras, Agassiz falou sobre os peixes da Amazônia, que ele viera estudar no âmbito da Expedição Thayer. Esta expedição, financiada em parte pelo milionário americano Nathanael Thayer e em arte pelo governo brasileiro, durou dois anos.  Teve com alvos principais o Rio de Janeiro e o entorno da Corte, e a Amazônia.

Na expedição Thayer vieram alguns cientistas ajudantes de Agassiz, que eram seus alunos nos Estados Unidos. Entre eles estava Charles Frederick Hartt (1840-1878), geólogo americano e futuro fundador do primeiro Serviço Geológico brasileiro, a Comissão Geológica do Império. Como auxiliar de Hartt viera também um jovem aprendiz, Orville Derby (1851 – 1915). Derby,  depois de completar seus estudos de geologia na Universidade de  Cornell, veio para o Brasil auxiliar Hartt em sua expedição. Esta expedição seria a primeira grande expedição geológica financiada somente pelo governo imperial. Entretanto, com a morte de Hartt em 1877 e o fim da Comissão Geológica, Derby ficou por aqui até o fim da vida. Foi um dos maiores geólogos brasileiros, com uma vasta obra em termos científicos e primeiro diretor do Serviço Geológico Brasileiro, já na República. Mas isso são outras histórias…

A Expedição Thayer era um presente de Natanael Thayer para seu amigo Agassiz. Agassiz foi um professor importante da Universidade de Harvard. Todavia, nos últimos anos, dedicara-se a construir o Museu de Zoologia daquela universidade. Era um cientista poderoso e popular.

AGASSIZ: CRIACIONSMO E GELO

No entanto, Agassiz estava desgostoso nos Estados Unidos. Lá, começava a ter alguns contratempos. Agassiz era o defensor de uma teoria criacionista e poligênica, que negava veementemente os indícios da nascente teoria da evolução de Darwin. Embora ainda poderoso e popular, ele começou a enfrentar resistências entre seus jovens alunos e alguns eminentes colegas, como o biólogo Asa Grey (1810 – 1888) e o geólogo James Hall (1808 – 1898), o criador da Teoria Geossinclinal.

Todavia, Louis Agassiz viera ao Brasil para recuperar sua saúde e sua paz de espirito e fazer pesquisas. Contudo, ainda muito jovem, fora o primeiro a determinar a existência de uma “era do gelo” na Europa e América do Norte. Seus dados e sua interpretação sobre as glaciações do que hoje chamamos de Pleistoceno foram muito importantes para o entendimento da história da Terra.

O FRACASSO DE AGASSIZ NO BRASIL

uma das fotos tiradas por Agassiz no Brasil, para ilustrar suas teses racialistas. Entretanto, os negros e índios brasileiros foram mais complexos que as ideias do cientista, que não deu seguimento à pesquisa

Agora, no entanto,  Agassiz viera ao Brasil para provar que a sua teoria de uma grande glaciação se aplicava também à América do Sul. Da mesma forma, viera para provar outra teoria: que a miscigenação racial formava o que se chamava de raças degeneradas. Tanto um quanto outra não prosperaram: geólogos brasileiros, como o Barão de Capanema (1824 – 1908), ousaram afrontar o grande sábio e mostraram que os depósitos glaciais das serranias cariocas eram produtos de depósitos torrenciais recentes.

Todavia, a teoria racial de Agassiz jamais foi divulgada. Recentemente, uma mostra das “fotografias secretas” de Agassiz foi mostrada no Brasil. Nela, as inúmeras fotos de índios e negros nus, que serviriam para provar que as raças no Brasil estariam se degenerando. Entretanto, a realidade era outra, e mais complexa do que as teorias racistas de Agassiz pudessem imaginar.

EDUCAÇÃO FEMININA E MIMIMI

Contudo, naquela noite de junho,  as damas da corte estavam assistindo pela primeira vez a uma apresentação cientifica. Algo começou a mudar. Cerca de dez anos depois, ainda timidamente, a educação feminina já ousava ir além das prendas domésticas. Jornais discutiam a teoria da evolução para mulheres. Desta forma, uma destas fontes de divulgação foram as cartas do jornalista Rangel S. Paio no Vulgarizador, jornal sobre temas científicos que saiu no Rio entre 1870 a 1880.

Carlotta Maury no Laboratório de Paleontologia em Cornell (NY), data desconhecida (Arnold, 2014)

Ainda iria demorar para que as mulheres pudessem estudar numa faculdade e ter carreira acadêmica. Como, naquela época, fez a norte americana Carlota Joaquina Maury, que nós já discutimos aqui. Mimimi, dizem alguns hoje em dia quando as mulheres protestam por seu espaço na sociedade. Quem viveu estas experiencias sabe que nunca foi nem é fácil.

Uma breve espiadela naquela reunião cientifica no Rio de Janeiro Imperial expõe um grande abismo existente em nossa sociedade. E olhe que nem falamos dos escravos, que tanto impressionaram Louis e Elizabeth Agassiz em sua estadia no Rio de Janeiro.

Naquele mesmo ano de 1866 em que Louis e Elizabeth Agassiz estiveram no Rio, numa das travessas da cidade, uma mulher negra vendia comida na rua. Estava vestida de roupas africanas e colares de miçangas coloridas. Com um turbante branco na cabeça, fumava um cachimbo e olhava feliz para as crianças que brincavam ao seu redor. Aquela mulher anônima na noite carioca não poderia ser uma trisavó de Marielle Franco? Ou então, de uma cientista importante, como Sônia Guimarães  ou Anita Canavarro?

Viva o Povo Brasileiro!

Política e Ciência: Newton morde a maçã

Não se pode pensar Ciência sem Política. Ciência pressupõe pesquisa, busca, invenção. Politica significa antes de mais nada fazer escolhas. No mundo em que vivemos, uma convive com a outra, se interconecta com a outra. No Brasil também sempre foi assim, com as suas peculiaridades. Existem muitos problemas a serem resolvidos e enfrentados usando ciência e usando política. Isso é fazer política. E isso também é fazer ciência.

CIÊNCIA, NEWTON E A MAÇÃ

Uma maçã caindo no chão é somente uma maçã. Para que essa maçã vire ciência, é preciso Newton observando a maçã cair. Para que Newton observe a maçã cair e isso vire ciência, Newton precisa subir no ombro de gigantes: isso pressupõe escolas, professores, despesas com educação. E isso é política: escolhas que devemos ter sobre quais escolas, quais professores e qual financiamento devermos controlar para que possamos ter Newton vendo a maçã cair e isso vire ciência.

Newton e a maçã: uma alegoria (e uma lenda) da Ciência…

Você não precisa de ciência para viver. Isso é uma escolha. Política. Podemos viver naturalmente, tendo o que a natureza nos dá. Alguém se habilita? Nós também não precisamos fazer Ciência. Se tivermos recursos, comprar ciência, comprar tecnologia. Como fizemos no passado, podemos vender borracha e comprar pneus. Vender ferro e comprar navios. É uma escolha política sem muitos riscos. Claro que continuaremos pobres. Alguns, que possuem o seringal e a mina de ferro, viverão confortavelmente. Aos demais, restará o trabalho duro e uma subsistência difícil. Mas, como sempre, é uma escolha política da ciência que queremos ter em nossas vidas.

QUE CIÊNCIA QUEREMOS?

Mas, e se nós quisermos ter Ciência? Ciência de verdade? Que tal não viver com a lenda de Newton e a maçã, a qual, como já mostraram seus biógrafos, não passa de uma lenda? O que precisamos para ter nosso próprio desenvolvimento cientifico? O que precisamos para vencer nossos problemas de educação, saúde, produção industrial, produção intelectual?

Não existe milagre na ciência. Ciência requer trabalho. Leitura, estudo, experiencia. Como recentemente disse uma colega, horas-bunda na cadeira. E isso requer que tenhamos pessoas que façam isso como profissão. Pessoas que possam cada vez mais viver disso. E que tenham condições de fazer suas pesquisas, discutir livremente os seus resultados e suas ideias com outros cientistas, com os políticos, com a sociedade.

QUE CAMINHOS TRILHAR?

Todos os países que tem um nível razoável de vida para seu povo fizeram e fazem isso. A Inglaterra, desde o século XVIII tem uma cultura de manutenção e financiamento de pesquisas. A Alemanha, desde que era Prússia, reformulou a sua universidade a partir de 1811 e num século deixou de ser um país atrasado que era para se tornar uma potencia mundial.

No século XX tivemos a Coreia, um país pobre e arrasado por guerras. Em 1960, os índices de vida e renda da Coreia eram inferiores aos do Brasil. No entanto, o país investiu firmemente em educação e hoje é uma das principais potencias industriais do planeta.

Tudo isso são escolhas. Tudo isso é política. A forma como escolhemos nossa Ciência, por outro lado, impacta nossa maneira de ser e estar no mundo.

O BRASIL CONSTRÓI SUA CIÊNCIA

Nos últimos 100 anos, o Brasil também investiu em ciência. Neste tempo, erradicamos diversas doenças de nossas cidades. Ainda falta muito, mas a medicina brasileira progrediu. Hoje, conquistamos, com ajuda da ciência, solos que até então não eram férteis, e os fizemos produzir. Se hoje há agronegócio no Brasil, é porque houve pesquisa agropecuária, é porque houve a Embrapa.

No início do século XX, éramos um país que não conseguia se desenvolver porque não tínhamos fontes de energia suficientes e boas. Hoje, graças ao esforço de varias gerações de geólogos, temos uma reserva de petróleo das maiores do Mundo, a qual só é possível explorar com altíssima tecnologia.

Tá OK. Mas e a parte vazia deste copo?

Ainda precisamos avançar. Como ter uma indústria competitiva e inovadora? Como ter uma Ciência de alto impacto? Como resolver os grandes problemas de nossa sociedade, como saúde, segurança, trabalho? Como resolver isso?

POLÍTICA E CIÊNCIA. CIÊNCIA E POLITICA

Precisamos de uma politica que invista mais, e não menos, em ciência. Se queremos realmente um futuro, devemos plantar as sementes hoje. Investimos pouco, e mal. Nossa despesa com ciência em 2015 (um ano ainda “rico”) foi de U$199 dólares por habitante. Empatamos com a Turquia. Perdemos feio para os países do Leste Asiático, Europa, América do Norte.

E isso apesar de termos uma das maiores comunidades cientifica da América Latina. Uma comunidade briosa, que vem aumentando sua participação no quinhão da ciência nos últimos 15 anos. Mas que, como uma flor sensível, ainda corre sérios riscos.

A participação publica vem diminuindo sua participação no financiamento da ciência desde 2015. E a política, que poderia trazer soluções, só nos tem trazido pesadelos. Claramente, ciência e a tecnologia não são prioridade de governo. As ameaças vêm de todos os lados.

PARA ONDE VAMOS?

Há os que sonhem com uma ciência sem estado. Houve o assessor de um candidato que chegou a dizer que “as pessoas subestimam o poder da filantropia”. Com isso, o douto senhor está nos dizendo que a contribuição privada para a ciência era uma fonte que nós não exploramos direito. Por outro lado, o financiamento privado é hoje irrelevante no financiamento da ciência.

Entre os candidatos a presidente, qual deles menciona em seu programa a palavra ciência? E dos que o fazem, quais deles confundem ciência com ensino? Embora sejam parceiras, ciência e educação são coisas distintas, com pautas necessidades distintas. Não se faz ciência tirando dinheiro do ensino.

A política vai ditar a ciência que queremos. Será que vamos escolher seguir um caminho de mais financiamento e uma busca maior de eficácia na resolução de nossos problemas? Ou será que vamos achar que não precisamos fazer ciência?

São Heisenberg, rogai por nós!

Fazer Ciência no Brasil: a que será que se destina?

Fazer Ciência no Brasil nunca foi fácil.

No entanto, sem Ciência o Brasil não existiria. Como pensar o país que temos e queremos sem Ciência?

CIENCIA E DESCOBRIMENTO

Jean (ou Nicole) D`Oresme, provando, no seculo XII,que a Terra era redonda…

Sem os avanços tecnológicos do fim da Idade Média, por exemplo, a expansão europeia não aconteceria. Com a introdução da bússola e da pólvora (invenções chinesas) e sem o avanço técnico da navegação jamais Cabral aportaria aqui.

E não só isso: sem os grandes cartógrafos e matemáticos, como Jean de Oresme e outros, Colombo não saberia que a terra era redonda. Ficaria lá na sua Gênova natal dando milho aos pombos(aliás, nem milho, porque o milho é americano..). O mundo jamais poderia ser cartografado, como o fez Mercator.

CIÊNCIA E COLONIZAÇÃO

Os métodos de pesquisa de minerais seguiam os preceitos da alquimia e da astrologia, alem da procura dos sinais da natureza. ilustração do De Re metellica (1556) de Georgius Agricola (1494 – 1555)

Os avanços da maquinaria durante o Renascimento é que permitiram a instalação dos primeiros engenhos de cana que fizeram a riqueza nos primeiros anos de Brasil. Sem os conhecimentos técnicos de mineração, tanto europeus quanto indígenas, as jazidas de ouro e prata das Américas jamais teriam sido riquezas.  Para isso foram importantes o conhecimento de pessoas como Georgius Agricola, Martine de BertereauBartolomeu de Medina, entre outros.

No século XIX os solos de São Paulo foram exaustivamente pesquisados para melhor acolher as lavouras de café. A Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo, liderada por Orville Derby pesquisou exaustivamente os rios e cachoeiras paulistas para determinar seu potencial para a produção de energia elétrica. Ciência para alavancar a agricultura e a indústria.

CIÊNCIA E DESENVOLVIMENTO

Inúmeras pesquisas foram feitas para achar carvão mineral no Brasil. Nosso carvão era (ainda é) pouco e ruim. É o que temos para hoje. Mas isso não é culpa de Wagoner, Francisco de Paula Guimarães e outros que o pesquisaram. Nosso ferro foi trabalhado com carvão vegetal, com custos ambientais muito maiores e com eficiência menor. Graças aos esforços de homens com Varnhagen, Bloem, e Mursa  no século XIX, temos uma produção siderúrgica respeitável.

No século XX o Brasil se industrializou. Para isso foi necessário construir estradas, ferrovias, melhorar os portos. Nossa engenharia foi convocada e deu conta do recado. Ainda falta muito a se fazer, mas não é por culpa da Ciência ou da Técnica.

SER CIENTISTA NO BRASIL

Orville Derby, ainda moço, quando veio ao Brasil pela primeira vez; depois, comandaria a Comissão Geografia e Geologia que desbravou e fez o reconhecimento cientifico do interior paulista requerido pela pujante cafeicultura.

O cientista brasileiro sempre foi um ser bizarro e raro. Na Colônia e no Império, os poucos que entre nós haviam estavam sempre sobrecarregados. Além de seu trabalho de pesquisar, estudar e ensinar, também tinham que cuidar dos serviços públicos, do governo e até da aplicação das leis.

Além de ser um Filósofo Natural importante na Minas Gerais dos Setecentos, Simão Sardinha foi encarregado também de prender o célebre facínora Cabeça de ferro (dá pra colocar isso no Lattes?). Desviados de sua atividade científica para os necessários labores do país que então se fazia temos nomes ilustres, como José Bonifácio e o Barão de Capanema, entre tantos outros.

UMA CIÊNCIA NACIONAL?

Ao longo do século XX esta Comunidade Cientifica brasileira cresceu e se especializou. Somos um grupo importante da Ciência Mundial. Mas fazer Ciência no Brasil não é fácil. Temos os nossos problemas, as nossas deficiências. Mas estamos aí, trabalhando duro, fazendo muito com pouco, fazendo Ciência e formando gente qualificada.

Uma Ciência Nacional, pensando os interesses do Brasil foi responsável, entre outras coisas, pela erradicação das doenças tropicais no século XX, com Vital Brasil e Oswaldo Cruz, Carlos Chagas . A ciência no Brasil sempre foi, ao contrario do que se pensa,  uma Ciência aplicada, de resultados. Nossa realidade nunca nos permitiu torres de marfim.

Contudo, temos as maiores safras agrícolas do mundo, conquistando solos que seriam impensáveis há poucos anos, por causa de nossa pesquisa agropecuária, com destaque para a Embrapa. No início do século XX, por outro lado,  conseguimos alcançar as jazidas de petróleo em grande profundidade, graças aos esforços dos geólogos da Petrobrás, liderados por Guilherme Estrella.

FAZER CIÊNCIA NO BRASIL

A Ciência Brasileira contribuiu enormemente para que o país crescesse tivesse o destaque que teve. Alguém vai dizer que termos uma ciência pobre, subdesenvolvida. Claro que é. É possível uma ciência desenvolvida num país subdesenvolvido?

Ao contrário, todo país que se desenvolveu e se tornou um país dinâmico e complexo o fez porque tinha a sua ciência. Vejam a Alemanha e os Estados Unidos no século XIX. TAmbem são exemplos notaveis  o Japão e os demais países asiáticos no presente. Basta olhar mais de perto estas sociedades para ver se algum deles prescindiu de uma ciência forte. Vejam a China, a Coréia.  Em cada um haviam cientistas. Foram comunidades que plantaram e protegeram a planta tenra e frágil da ciência, para depois colher os frutos da grande arvore que ela depois se transformaria.

UM SALTO PARA TRÁS

No entanto, em anos recentes a Ciência Brasileira estava para dar um salto para frente. Além de crescer, aumentar seu impacto. Estávamos conseguindo nos impor no cenário mundial. Entretanto, vieram os cortes nas verbas de pesquisa. Estamos retrocedendo. A planta da Ciência Brasileira precisa de água para voltar a crescer.

Contudo, mais preocupante que isso são os discursos que dizem que não precisamos de Ciência no Brasil. Que fazemos ciência inútil. Por certo, alguns desses ignorantes devem ainda achar, contra todos os sábios medievais, que a terra é plana. Só pode ser isso. Ou que as espécies não se transformam e mudam. Ou que os continentes não se movem.

EXISTE?

Pior, alguns ignorantes dizem que não existe Ciência no Brasil. Entretanto, dizem por dizer, como sempre, levianamente a falar de suas pós-verdades. É uma gente que vira as costas para o futuro, ignorando uma pujante comunidade cientifica

que vai, aos trancos e barrancos fazendo seu papel, contra tudo e contra todos.

Nunca foi fácil fazer ciência no Brasil.

Mas pensem no que seria um país sem ciência.

 

PS – Daí porque é necessário Historia da Ciência: entender que construir uma Ciência Nacional leva seculos de esforço e luta contra as trevas e a ignorância ; essa luta não acaba nunca…. 

SHE SELLS SEA SHELLS ON THE SEA SHORE

É de manhã cedo. O mar está calmo, e a maré baixa. Na grande falésia branca da praia de Lyme Regis, em Dorset, na Inglaterra, um grupo de pessoas está trabalhando nos rochedos. Usando martelos e picaretas, eles cortam o paredão em busca de fósseis. Entre eles está uma mulher. Mary Anning, acompanhada de seu cãozinho vira-lata Tray, está protegida do frio e da maresia usando roupas largas. Na cabeça, usa um chapéu de palha amarrado no pescoço para não ser arrancado pelo vento do mar .

Praia de Lyme Regis, Dorset, onde Mary Anning viveu e “caçou” diferentes tipos de fósseis…

FÓSSEIS PARA (SOBRE)VIVER

Mary Anning (1799-1847) é a chefe do grupo de coletores de fósseis. Dona de uma pequena mas bem sortida loja, ela é uma das maiores fornecedoras de fosseis para colecionadores e museus de toda a Europa. Mesmo dos Estados Unidos vem pesquisadores e colecionadores para ver – e comprar! – suas preciosidades.

Mary Anning (1799 – 1847) e seu cãozinho Tray, A pintura é de 1842.

De origem humilde, a família de Mary Anning começou a coletar fosseis para complementar a parca sobrevivência. No entanto, seu pai Richard, sua mãe Molly e seu irmão Joseph também eram exímios coletores de fosseis. Entre os fosseis mais importantes que coletaram estão os famosos esqueletos dos plesiossauros, grandes lagartos marinhos.  Hoje, boa parte dos fosseis coletados por Mary Anning e sua família estão expostos no Museu de História Natural em Londres. Da mesma forma, na França, na Inglaterra e na Alemanha, quase todos os grandes Museus de História Natural têm fósseis  coletados por ela.

Mesmo sem uma educação formal, Mary Anning chegou a participar da construção da Paleontologia moderna. No entanto, ela chegou mesmo a participar de alguns debates,  corrigindo algumas distorções e classificações incorretas. Dona de um saber prático, Mary Anning ajudou muito neste estagio embrionário da paleontologia.

DORSET NO JURÁSSICO

Embora tenha chegado a ter uma loja, vendendo fosseis para toda a Europa, Mary Annning sempre passou por varias necessidades financeiras. Para tanto, várias pessoas ao longo de sua vida, penalizadas com as duras condições de Mary Anning e sua família, fizeram subscrições para ajudar.

 

Duriea Antiquor (Dorset antigo) de Henri de la Beche (National Museum of natura History of Wales). A luta fictícia entre o ictiossauro e o plesiossauro ficou tão famosa que Julio Verne a incluiu em seu “Viagem ao Centro da Terra”.

Entretanto, uma das mais criativas e interessantes subscrições foi feita por um grande amigo de Mary Anning, o geólogo Henri De La Beche. Bom desenhista e caricaturista, De La Beche desenhou uma gravura cujas vendas pudessem ajudar financeiramente Mary Anning, já então bem doente de um câncer de seio. Contudo, a gravura, intitulada Duriea Antiquor (“Dorset antigo” em latim), retrata com precisão e bom homor qual teria sido, há milhões de anos atrás, a vida dos fósseis coletados por Mary Anning.

Bem desenhado e bem elaborado, Duriea Antiquor é um dos primeiros e mais importantes desenhos sobre o mundo anterior aos humanos. Contudo, a sua representação da vida no jurássico até hoje é uma das mais influentes da paleontologia. A gravura até hoje baliza a maneira como representamos até hoje a vida antiga na  Terra.

VENDER CONCHAS DO MAR NA BEIRA DO MAR…

A vida e os perrengues pelos quais passou Mary Annning dariam um poema. Ou um livro. Ou um filme. Ou tudo isso.

No início do século XX o escritor inglês H. A. Forde  publicou “The Heroine of Lyme Regis: The Story of Mary Anning the Celebrated Geologist”. Baseado no relato de Forde, muitas histórias inspiracionais sobre Mary Anning foram escritas. Entretanto, talvez ela seja também a inspiração para o poema – e terrível trava-línguas –  que todos os estudantes de inglês língua estrangeira se confrontam:

She sells seashells on the seashore
The shells she sells are seashells, I’m sure
So if she sells seashells on the seashore
Then I’m sure she sells seashore shells.

MERYL STREEP?

Em 1969 outro escritor inglês, John Fowles, escreveu um romance histórico chamado “The French Lieutenant´s Woman” (a mulher do tenente francês). Contudo, na história de Fowles, está patente a denúncia do preconceito de classe e de gênero que  Mary Anning sofreu. Mesmo tendo ajudado tantos cientistas, ela nunca ficou, em vida, com a fama da descoberta. O único que homenageou Mary Anning durante sua vida, entretanto, foi o zoólogo franco-suíço Louis Agassiz, que a conheceu pessoalmente em 1834 e nomeou duas espécies de peixe com seu nome.

O livro de Fowles foi um grande sucesso de público e crítica. Em 1982 foi adaptado para o cinema pelo teatrólogo e roteirista Harold Pinter, e dirigido por Karol Reisz. Como protagonistas, ninguém menos que Meryl Streep e Jeremy Irons. Da mesma forma, o livro também virou peça de teatro de grande sucesso.

Poster do filme “A mulher do tenente francês”, de 1982, com Meryl Streep e Jeremy Irons. A historia é livremente baseada na vida de Mary Anning

UM GRANDE VULTO DA CIENCIA

Entretanto, em 1999, bicentenário de seu nascimento, houve um grande evento em seu nome na praia de Lyme Regis. Da mesma forma, em 2005, o Museu De História Natural de Londres incluiu seu nome ao lado de outros grandes vultos da ciência. Nesta exposição, ela está ao lado de personalidades como Carl Linné  e William Smith.

Mary Anning morreu em 1847, vítima do câncer. Ela viveu toda a vida entre os penhascos de Lyme Regis, escavando a lama do mar jurássico em busca de fosseis para sobreviver. Mas, inadvertidamente, foi uma das maiores paleontólogas de todos os tempos.

Contudo, Mary Anning nos desvendou os abismos do tempo e os fantásticos animais que o habitaram. Desta forma, para ajudá-la foram feitas as primeiras representações sobre o mundo antigo que conhecemos. Foi vítima do preconceito de classe e de gênero. No entanto, Com sua vida, inspirou muitas outras.

Mary Anning é tanta inspiração que ultrapassou a Ciência. Mary Anning é pop. Foi livro, peça, filme. Virou até trava-línguas!

Não é pra qualquer um…

Uma historia de amor, magia e …. mineração!

Para Maria José, minha Martine de Bertereau

Martine de Bertereau e Jean de Chastelet são um dos casais mais interessantes da história da mineração. Jean e Martine, O barão e a baronesa de Beau-Soleil, trabalharam dezenas de anos lado a lado na função de descobrir e explorar jazidas minerais.  Neste caminho, juntando alquimia, magia, acusações de bruxaria e um sólido casamento, construíram uma obra das mais originais da história da mineração moderna.

As mulheres também tinham papeis importantes na ciência alquímica. esta imagem mostra uma alquimista preparando suas experiências da “Grande Arte”

Jean de Chastelet, Barão de Beau-Soleil, nasceu em 1578 em Brabant, nos Países Baixos espanhóis. Hoje, Bélgica. Não se sabe onde estudou. Contudo, seus conhecimentos o levaram para a mineração.  Com 22 anos, Jean de Chastelet foi chamado para trabalhar na França pelo superintendente de Minas, para trabalhar como mineralogista, alquimista e “mineiro”. Mineiro, na linguagem da época, seria algo próximo do atual engenheiro de minas.

MARTINE E JEAN

Em 1610, ele se casa com Martine de Bertereau, moça culta e educada, que vinha de uma antiga família de mineradores. No entanto, não se conhece muitos detalhes de sua familia.  A própria Martine escreveu anos depois que  a ciência das minas era “hereditária na família“. De toda forma, Martine falava diversas línguas, era fluente em latim e sabia os rudimentos de hebraico. Tinham também sólidos conhecimentos de alquimia, química, metalurgia, geometria, hidráulica e outras ciências.

O casal vai trabalhar sob a proteção do rei Henrique IV, rei liberal e patrono das artes e das ciências, inclusive da alquimia. No entanto, com a morte do rei logo a seguir, Jean e Martine perdem seu emprego. Apesar de tudo, isso não os tirou da mineração: nos 16 anos seguintes, eles passam viajando e conhecendo as mais diversas minas da Europa. Há evidências que teriam também trabalhado nas famosas minas de Potosi, na atual Bolívia, então as maiores minas de prata do mundo.

Em 1626, o casal volta à França. Nesta época, o barão e a baronesa de Beau-Soleil foram comissionados para ordenar as áreas de mineração francesas, as quais haviam sido negligenciadas por anos. Eles tinham que localizar minas antigas, prospectar novos depósitos e reavaliar as condições das minas em funcionamento. Era uma tarefa grande. No entanto, o barão e a baronesa tinham certeza de um ganho financeiro muito grande. Nestes anos, segundo suas contas, eles haviam gasto cerca de 300 mil libras no trabalho.

ACUSAÇÕES DE BRUXARIA

No entanto, um episódio muito desagradável ocorreu na vida da família Beau-Soleil na pequena cidade francesa de Morlaix, na Bretanha. Corria o ano de 1627. Um bailio, antigo oficial de Justiça provincial, invadiu os alojamentos do casal, que estava fora em viagem. Nos alojamentos, o bailio encontrou pedras preciosas, amostras de minerais, instrumentos de prospecção e refino de metais, livros sobre fundição e alquimia, cadernos e papeis de todos os tipos. Parecia evidente: o estranho casal praticava as mais estranhas feitiçarias.

Uma acusação de bruxaria nesta época era muito séria. Apesar do magistrado de Rennes, que julgou o caso, ter absolvido o casal, os bens confiscados pelo bailio nunca retornaram a seus antigos donos. Assustados, Jean e Martine fugiram e se refugiaram na Áustria, onde Jean foi nomeado conselheiro das minas da Hungria pelo imperador Ferdinando II.

O PEDIDO AO CARDEAL

Pouco tempo depois, no entanto, procurando reaver o dinheiro investido, Jean e Martine retornaram à França. Em 1632, Martine de Bertereau escreveu “Declaração verdadeira ao rei e aos cavalheiros do conselho sobre os ricos e estimados tesouros recentemente descobertos no reino da França”. Nesta publicação, que era uma mistura de relatório e solicitação de reembolso, Martine descreve as minas descobertas ou trabalhadas pelo casal Beau-Soleil na França até então. A estratégia tem sucesso, e Jean recebe a patente de inspetor geral das minas da França.

No entanto, as condições financeiras não melhoraram. Em 1640, Martine de Bertereau escreveu uma nova carta. Não ao Rei, mas ao todo poderoso Cardeal Richelieu. Nesta carta, publicada com o título de La Restauration de Pluton (A restituição de Plutão), Martine de Bertereau descreve novamente diversos depósitos minerais, suas técnicas de pesquisa e exploração. Também, é, claro, pede o retorno do dinheiro investido pelo casal no trabalho.

O cardeal Richelieu, a grande sombra dos reis franceses; ele mandou Jean e Martine para a prisão em 1642, de onde não mais retornariam

Desta vez, não funcionou. O cardeal Richelieu mandou prender Jean e Martine, sob o pretexto de que o casal praticava astrologia quiromancia e leitura de horóscopos. Jean acabou morrendo na terrível Bastilha em 1645. Martine e sua filha, aprisionadas na prisão de Vincennes, desapareceram sem deixar traços.

A RESTITUIÇÃO DE PLUTÃO

A Restituição de Plutão é um curso de mineração. Nele, Martine de bertereau dá uma longa lista de depósitos metais como prata, chumbo, ouro, ferro, cobre. Dá também uma lista de outras substâncias importantes, como pigmentos minerais, pedras de moinho, carvão, rochas ornamentais e pedras preciosas. Durante muito tempo, as informações contidas nos escritos de Martine foram muito valiosas na descoberta de bens minerais.

Cartas astrologicas para encontrar metais; Martine de Bertereau encontrou diversas minas com esta técnica.

Para Martine de Bertereau, existiam diversas regras que deveriam ser seguidas para se achar um deposito mineral. Cavar, para ela, era a menos importante. Mais do que só cavar a terra, era necessário observar as plantas, o gosto da água, os vapores emitidos pelas montanhas. E, também, o uso de instrumentos.

Entre estes instrumentos estavam as varas divinatórias para encontrar metais. Estas varas, sete no total, uma para cada tipo de planeta. Para a astrologia, cada planeta estava relacionado com um metal. Assim, o ouro estava relacionado ao sol, a prata a lua, marte ao mercúrio, e assim por diante.

AS CIÊNCIAS DA MINERAÇÃO

Entre as ciências relacionadas com os trabalhos mineiros, Martine relaciona a astrologia, a arquitetura, a geometria e a aritmética, a hidráulica, o direito, a medicina, a lapidaria (a atual petrografia), a botânica e a química. Contudo, para desespero dos que hoje bradam contra as Humanidades, Martine recomenda as Letras, o Direito e a Teologia entre os conhecimentos uteis para a boa prática da mineração.

Que ciência era essa que Martine e Jean praticavam? Certamente, a arte das minas. Neste tempo, conhecimentos que hoje desprezamos como inúteis, bobagens ou pseudociência eram os conhecimentos necessários. Causa mais espanto, talvez, a presença da alquimia e da astrologia.

Os métodos de pesquisa de minerais seguiam os preceitos da alquimia e da astrologia, alem da procura dos sinais da natureza. ilustração do De Re metellica (1556) de Georgius Agricola (1494 – 1555)

No entanto, para os mineiros da época, os espantos eram maiores. Martine trata também da presença de duendes nas minas, “pequenos seres vestidos como os trabalhadores” que podiam ser vistos nos subterrâneos. Entretanto, Padre Kircher, de quem já falamos aqui, confirmava a presença destes seres em seus livros. Essa era uma ciência ainda cheia de sobrenatural e de magia, tão típica do platonismo da Renascença.

Entretanto, essa estranha reunião de saberes nos faz pensar em como serão os trabalhos mineiros (se é que haverão minas) daqui a cem anos. Quais serão as ciências utilizadas? Quais serão as ciências descartadas? E quais as desprezadas? Fica aqui a dica para uma interessante conversa de bar…

UM CASAL AFINADO

Por outro lado, tudo nos leva a crer que Martine e Jean trabalhavam juntos, lado a lado. Esse é um espanto num mundo mineiro moderno que ainda acha que as mulheres “dão azar” nas galerias subterrâneas. E um bom exemplo a ser seguido.

A parceria era tal que cada um tinha seu papel. Martine, certamente, era a erudita do casal, a que escrevia e estudava. E que escrevia os livros. Jean era provavelmente o executivo, o que estava em campo. Entretanto, isso era admirável. Por um lado, o trabalho conjunto e igual de Jean e Martine, num mundo em que as acusações de bruxaria e feitiçaria eram comuns e naturais, causa-nos um espanto ainda maior. Acusações que lhes foram feitas e que lhes custaram a morte nas masmorras do ancien regime.

A VIDA PÓSTUMA DE MARTINE DE BERTEREAU

Segundo a historiadora Martina Kolb Ebert, a vida póstuma de Martine de Bertereau foi ainda mais agitada que sua atribulada existência terrena. Durante o Iluminismo, ela foi considerada meramente uma charlatã e aventureira. Por outro lado, durante a industrialização francesa no seculo XIX ela foi considerada uma heroína, uma economista visionaria. Da mesma forma, para os nacionalistas românticos, Martine de Bertereau era uma legítima heroína nacional.

Hoje, os trabalhos que se ocupam dela e de sua vida põe em relevo seu papel de heroína feminista, mulher cientista, “a primeira geóloga da França”. É o que vem a nossa mente quando lemos sobre ela. Impossível, para nossa moderna mentalidade, não pensar nisso. no entanto, precisamos saber mais sobre Martine de Bertereau, alem dos estereótipos e das lendas.

Numa época em que ciência e magia eram uma coisa só, Martine de Bertereau foi uma sábia notável . Também foi mãe de pelo menos três filhos. E, como companheira e colega de trabalho de Jean de Chastelet, foi incansável na busca pelo sucesso material do casal. A junção de amor, magia e mineração foi um traço inseparável dos dois.

Que estranho. E que notável.

PARA SABER MAIS:

Kölbl-Ebert, Martina. “How to find water: the state of the art in the early seventeenth century, deduced from writings of Martine de Bertereau (1632 and 1640).” Earth Sciences History 28, no. 2 (2009): 204-218.

Findlen, Paula. “Histoire des femmes de science en France. Du Moyen Age à la Révolution.” (2005): 518-520.

As glossopetras dão com a língua nos dentes

Olá! Nós somos as glossopetras!

um selfie de glossopetras, mostrando como algumas de nós são bem grandinhas…

Somos fósseis pequenos, de milímetros a decímetros de tamanho. Somos encontrados em abundância nas melhores camadas sedimentares próximas de você. No entanto, somos mais comuns em alguns lugares específicos do mar Mediterrâneo, de onde somos extraídas

em grande quantidade. Um dos lugares mais famosos de ocorrência de glossopetras é a Ilha de Malta.

O nome glossopetra é um nome greco-romano. Reparem: glossós, ou língua, é uma palavra grega. Língua em latim é língua mesmo. E petra é pedra em latim, como até as pedras sabem. Glossopetra, portanto, é um nome greco-romano, que significa Língua de Pedra. Porque parecíamos com pequenas línguas.

Nós somos conhecidas em praticamente todas as línguas e culturas do Velho Mundo.

AMULETOS PARA “SOLTAR” A LÍNGUA…

Para os romanos, nós, as línguas de pedra, éramos amuletos importantes. Segundo se acreditava, nós poderíamos fazer “desatar” a língua das pessoas. Poderíamos também fazer com que as pessoas confessassem os crimes os mais secretos. Da mesma forma, nos usavam também para tornar as pessoas mais subornáveis e colaborativas. Por outro lado, era tamanho nosso poder que alguns romanos mais desabusados usavam nós glossopetras para seduzir pessoas castas para os atos mais inconfessáveis!

No entanto, sábios com Plínio, o Velho, eram mais céticos. Segundo Plínio, os mágicos diziam que as glossopetras caiam dos céus durante os eclipses da Lua. Já imaginaram, uma chuva noturna de pequenas linguinhas de pedra? No entanto, segundo Plínio, isso parecia não ser verdade.  Assim como ele também não compartilhava a crença antiga que as glossopetras acalmavam os ventos.

Monddrache, o Dragão da Lua. Gravura antiga atribuídas pelo astrólogo, nigromante e alquimista Agripa de Netesheim

Além disso, algumas glossopetras maiores  (ver figura acima) eram também chamadas de línguas de dragão. Tinham cerca de dez centímetros de comprimento ou mais. Existia uma lenda, que vinha do cultura nórdica, que atribuía a diminuição da Lua em alguns momentos de seu ciclo à ação de um dragão, o Monddrache, o Dragão da Lua. Essas glossopetras maiores, quase da palma de uma mão humana,  eram chamados de Dentes do Dragão da Lua (Zähne der Monddrache).

SÃO PAULO E AS GLOSSOPETRAS

Selo comemorativo do naufrágio de São Paulo na ilha de Malta. Depois desse naufrágio, nós glossopetras passamos a símbolos do cristianismo…

Na ilha de Malta, onde somos abundantes, há a lenda de que São Paulo, ao naufragar na ilha, teria sido picado por uma víbora. O Santo não se fez de rogado, e atirou a serpente ao fogo. Como resultado, todos os dentes e olhos das cobras de Malta foram petrificados. Por isso, em alguns lugares, somos também chamadas de línguas de serpente. As serpentes que hoje existem na ilha de Malta não são venenosas, confirmando assim, empiricamente, a ação milagrosa do apostolo. Essa lenda também aparece na Irlanda, com São Patrício. Aqui nós já comentamos sobre Santa Hilda de Whithby e os amonites.

Há uma outra lenda, muito posterior, dizendo que São Paulo transformou a sua própria língua em pedra, com numerosas propriedades medicinais. Por outro lado, os cavaleiros Normandos, que conquistaram Malta em 1090 AD, logo se aproveitaram dessa lenda e logo vendiam para toda a Europa as famosas (e milagrosas!) línguas de São Paulo. Com muito lucro, diga-se.

UM PODEROSO ANTÍDOTO CONTRA QUASE TUDO

Natterbaum, ou “arvore das serpentes”, peça em prata sobredourada representando a genealogia de Cristo. Esta peça era usada como proteção para venenos. No centro em cima há uma enorme Língua de Dragão.

Existiram, também, diversas as aplicações medicinais das glossopetras. Durante a Idade Média, acreditava-se que nós, glossopetras, éramos poderosos antivenenos. Poderíamos detectar a presença de veneno mudando de cor ao sermos mergulhadas numa taça de vinho. Desta forma, éramos usadas como contraveneno de cobra, para acelerar o parto e como poderoso talismã na proteção contra bruxarias.

Durante a Renascença, o geografo holandês De Laet (1581-1649) enviou algumas glossopetras para serem usadas para males bucais. Entre os usos registrados estão a dor de dentes e para aliviar as dores da dentição em crianças.

Os usos das glossopetras como medicamento foi muito difundido. A “Terra de São Paulo” , como era conhecido o material contendo as glossopetras maltesas, era comercializada como remédio até fins do século XIX. Um vasto mercado, como diríamos hoje. No entanto, a ocorrência de falsificações levou muitos governos desde o século XVII a realizar verificações e autuações em materiais tidos como Terra de São Paulo.

Nós, glossopetras, poderíamos contar muitas mais histórias e lendas, meninxs.

DENTES DE TUBARÃO?

No entanto, temos que confessar uma coisa: somos, na realidade, dentes de tubarão. Sim, dentes de tubarão. Boa parte de nós glossopetras somos simplesmente dentes de tubarões lamniformes. Contudo, as maiores glossopetras são provenientes do gigantesco Charcharodon megalodon, uma espécie extinta de um tubarão gigante que viveu entre o Mioceno até o fim do Plioceno (para vocês humanos que não tem noção de tempo, significa um período entre 23,3 até 3,3 milhões de anos atrás).

Uma estimativa do tamanho provável do Charcharodon megalodon (cinza e vermelho) com o tubarão Baleia, o tubarão Branco e um ser humano;

Como foi que mudou a ideia de que nós éramos pedras singulares com poderes mágicos e medicinais e nos tornamos meramente dentes de grandes bestas pré-históricas? Esta discussão, por mais simples que pareça, está na base da moderna Geologia.

BRINCADEIRAS DA NATUREZA

vocês podem não acreditar, mas nem sempre os fósseis foram aceitos como hoje: restos de organismos preservados por algum processo. Durante o Renascimento, a utilização de alguns conceitos aristotélicos, como a petrificação, levou alguns  sábios a aceitar que os fosseis poderiam ser objetos gerados espontaneamente nas rochas. Seriam as “virtudes plasticas” defendidas, entre outros, pelo sabio veneziano Girolamo Fracastoro (1476-1553). Seriam meras “brincadeiras da natureza”.

Outros sábios, entretanto, achavam que os animais e plantas petrificados eram realmente restos de organismos. Entre estes estavam, por exemplo, o famoso medico modenesi Gabrielle Falllopio (1523-1562).  Mas quais organismos seriam esses? existiriam realmente ou eram seres já extintos? Isso levava a uma outra questão: se os seres eram extintos, era sinal que eram seres imperfeitos? Deus, por acaso, fazia coisas imperfeitas? Essa era a grande discussão das ciências naturais nestes período.

FABIO COLLONA E AS GLOSSOPETRAS

o sabio neapolitano Fabio Collona (1567-1640), autor de importante estudo sobre nós, glossopetras!

Nós, as glossopetras, estivemos ativas neste debate. Um dos trabalhos mais imortantes sobre nós foi realizado pelo naturalista napolitano Fabio Collona (1567 – 1640), da Academia dei Lincei (dos linces, animal que enxerga mais longe) e amigo de Galileu. Collona estabeleceu que eramos restos de organismos. Para isso, ele calcinou algumas de nós (ui!) e viu que éramos formadas por matéria orgânica. Por outro lado, a terra que nos envolvia não tinha a mesma origem. Logo, segundo Collona, as glossopetras eram restos orgânicos.

a semelhança com os dentes de tubarão também chamou a atenção de Collona. Assm, ele sugeriu que pudessemos representar restos de antigos tubarões, e não pedras magicas ou antivenenos. Mas era necessário mais algum debate para poder afirmar isso com segurança.

NICOLAU STENO E OS DENTES DE TUBARÃO

Foi Nicolau Steno quem estabeleceu a relação dos tubarões com as glossópetras. Para

tubarão glossopetras
Cabeça de tubarão estudada por Steno e as glossopetras

tanto, ele estudou a carcaça de um tubarão capturado ao longo da costa de Livorno em 1666 e confirmou a semelhança entre as glossopetras e os dentes dos tubarões. Para isso, Steno usou de suas habilidades como anatomista e fez uma comparação usando o método da anatomia forense. Assim, tim-tim por tim-tim, ele explicou as semelhanças entre as duas.  Desta forma, ficou bem claro, para bons e maus entendedores, que as glossopetras eram dentes de tubarão.

Contudo, a polêmica ainda durou mais alguns anos. Somente em meados do seculo XVIII é que os fósseis foram aceitos como restos de organismos e tomaram o sentido que tem hoje. Para tanto, nós, glossopetras, tivemos um papel fundamental.

COM A LÍNGUA NOS DENTES

Assim sendo, hoje nós não somos mais fósseis, e sim uma parte deles. Desta forma, não somos mais tão importantes e procuradas como no passado, empobrecendo talvez alguns mineradores. Contudo,  nós somo muito orgulhosas de nossa participação. De fato, nossa presença nestes debates serviu para que os fósseis fossem reconhecidos como hoje são. Mais que isso, houve uma mudança na maneira como as pessoas enxergavam as camadas de rocha.

Assim, o que era só brincadeira da natureza passou a significar também testemunhos da história terrestre. O grande livro da natureza podia afinal ser lido. A história da natureza, com o tempo, passou a ser maior que a história humana. Por um lado, a história natural pode ser lida em milhões e mesmo bilhões de anos. Por outro lado, outras preocupações vinculadas com esta historia natural passaram a ocupar o centro da vida das pessoas.

Entretanto, questões como evolução das espécies, mudanças climáticas, grandes extinções, etc só fazem sentido num tempo longo. E estão nas agendas das pessoas e dos governos de hoje. Contudo, nada disso seria possível sem entender que pequenas linguinhas encontradas nas rochas possam ser dentes de tubarões.

Nada mal, não?

PARA SABER MAIS:

Hsu, K.T., 2009. The path to Steno’s synthesis on the animal origin of glossopetraeThe Revolution in Geology from the Renaissance to the Enlightenment. Geological Society of America, Boulder, CO, Memoirs203, pp.93-106.

Rosenberg, G.D. ed., 2009. The Revolution in Geology from the Renaissance to the Enlightenment (Vol. 203). Geological Society of America.