Arquivo mensais:outubro 2017

A quebra de paradigmas e a idade da Terra

Você sabia que o estabelecimento da Geologia como ciência surgiu com a constatação de que a idade da Terra é avançada, e de que muitos de seus processos naturais levam centenas de milhares de anos para ocorrer? Vou contar um pouco dessa fascinante história…

      “Sem vestígio de um começo, sem perspectiva de um fim” 
James Hutton

Esta frase é icônica do trabalho de James Hutton (1726-1797), um dos primeiros cientistas a pensar sobre a idade da Terra e o tempo envolvido nos processos geológicos, tais quais os reconhecemos hoje.

Hutton em campo, observando rochas com os perfis dos rostos de seus inimigos na ciência.

A concepção sobre uma Terra antiga, na Geologia, surgiu aos poucos. Até meados do século XVIII, a bíblia servia de guia para datas e eventos; por isso, acreditava-se que a Terra não teria que 6.000 anos de idade. A influência religiosa era grande no meio científico. Podemos lembrar que o próprio Darwin (1809-1882) demorou anos recolhendo evidências sobre a sua teoria evolutiva, também por conta de seu receio em revelar suas ideias; isso porque iam contra os valores religiosos na época.

Porquê, você se pergunta, a igreja tinha tal influência na ciência? Era um livro de relatos, muito antigo. Como explicar o mundo e a origem de tudo? Muitos cientistas passaram a usar ciência aliada aos relatos bíblicos, na tentativa de calcular a idade do planeta. Além disso, acredito que fosse imoral pensar que Deus tivesse criado um mundo que pudesse ter espécies de organismos imperfeitas. Espécies que se extinguissem. Qual seria a razão para um ser superior criasse algo que não sobrevivesse “pela eternidade”? Historicamente podemos entrar no debate de que a igreja controlava o poder na época e que o homem era, neste contexto, a principal espécie vivente, sendo que o planeta havia sido criado para ele, por um ser superior.

A quebra do dogma religioso e o reconhecimento de um tempo profundo para a idade da Terra se deu no séc. XIX. Nessa época, as ideias de Darwin e Lyell (que viveu entre 1797-1875 e era seguidor de Hutton) se alinharam para explicar os fenômenos observáveis na natureza orgânica e inorgânica (tanto na vida e sua evolução, quanto nos eventos geológicos).

É neste momento que se retira do homem o papel de espécie “mais desenvolvida”. Os princípios da evolução biológica, associados com a necessidade de uma Terra muito antiga, colocam o homem como mais uma espécie dentre centenas de milhares, quebrando assim, pelo menos em parte, a forte influência religiosa na ciência. Mark Twain relata essa quebra com uma analogia que considero fantástica, e traduzo de forma livre, a seguir:

“O homem está aqui há 32.000 anos. Que tenha levado 100.000 anos para preparar o mundo para sua chegada é uma prova irrefutável de que o mundo em si foi criado para isso. Suponho isso, não sei. Se a torre Eiffel representasse agora a idade da Terra, a camada de tinta de seu pináculo representaria a presença do homem na Terra; e todos iriam perceber que aquela casquinha de tinta representa a razão pela qual toda a torre foi construída. Eu concluo isso, não sei”.

Outra metáfora sobre a vastidão do tempo e a presença do homem na Terra é a de John McPhee, também traduzida livremente a seguir:

“Considere a história da Terra como a antiga medida de jarda inglesa, a distância do nariz do rei até a ponta de seu dedo, com o braço estendido. Uma lixada na unha de seu dedo médio e toda a história humana é apagada”.

Podemos dizer que Hutton e Lyell, observando os fenômenos do dia-a-dia da natureza e também eventos catastróficos preservados em rochas, foram capazes de predizer o que seria confirmado alguns anos mais adiante. Afinal de contas o processo de datação radioativa, que é o que fornece a idade real das amostras de rochas, só veio a ser desenvolvido no início do séc. XX. Assim como Darwin, Hutton e Lyell coletaram uma série de informações para corroborar as suas ideias de que a Terra era muito mais antiga da que retratava a bíblia. Mas os números, aqueles “4,5 bilhões de anos” que ouvimos falar sobre a idade do nosso planeta (e que chamamos de idade absoluta), só veio à tona alguns anos depois.

De acordo com alguns filósofos da ciência, como Thomas Kuhn (1922-1996), a ciência caminha exatamente assim. São anos de trabalho na “ciência comum”, acumulando conhecimento, para que, de “uma hora para outra”, os paradigmas científicos sejam quebrados, e novas ideias passem a vigorar.

Retirar a espécie humana de seu pedestal não foi tarefa fácil. A ciência progride a passos lentos, delimitados por momentos de grande revolução; além disso, está sempre enroscada no emaranhado contexto social, econômico, religioso e emocional em que cada um dos cientistas (pessoas), se inserem.

 

 

Onde encontrar mais informações sobre Hutton e a concepção do tempo profundo:

Clique aqui para ser direcionado a uma matéria na página do Smithsonian Institute.

Relembre o nosso primeiro post sobre o tempo profundo
Livros utilizados para este post:
Decifrando a Terra
Time´s arrow, time´s cycle

 

Eu, Amonite

Meu nome é Hildoceras crassum, e sou um amonite.

Este sou eu, Hildoceras crassum

Na Desciclopédia dizem que sou simplesmente um molusco, o que realmente sou. Mas sou mais que isso: na classificação zoológica pertenço à classe dos amonitas, e a família Hildoceratidae.

A esta altura da vida (ou da morte), não tenho mais problemas em ser um Hildoceras crassum. Segundo vários cientistas, nós apresentávamos dimorfismo sexual, ou seja, os machos eram diferentes das fêmeas. Mas isso foi há muito tempo atrás. Como eu não lembro mais se sou um ou uma amonite, segundo o moderno costume,  podem me chamar de Hildx.

Nasci e morri no Andar toarciano, no Jurássico inferior. Isso em linguagem de gente significa que nasci e morri num período de tempo entre 184 a 175 milhões de anos atrás. Alguns de vocês podem perguntar: “Como era isso, Hildx?“. Eu não me lembro muito bem, minhas crianças. Faz tempo. Só sei que nadávamos livres por mares pouco profundos, caçando pequenos crustáceos e outros animais. Um período feliz, sabe?

Meu Primo Endemoceras, dando um rolê pelas águas quentes do Jurássico

Nós conseguíamos nadar muito bem e podíamos controlar a profundidade em que estávamos, simplesmente enchendo de gás ou fluido a nossa cavidade externa. Morávamos na ultima parte da concha, que era a mais larga. Como os nossos  modernos primos polvos e lulas, éramos terríveis predadores. O terror dos mares do Jurássico inferior!

 No entanto, estamos extintos!

Mesmo o mais terrível dos predadores morre. Quando morri, fui depositado em meio a uma vasa argilosa, no fundo do mar. Fui lentamente recoberto por essa fina argila. Meu corpo e meus tentáculos (tão graciosos! ) desapareceram. Restou só a minha fina casca espiralada. E mesmo esta fina casca foi mudando: lentamente, molécula a molécula, ela foi sendo substituída por outras substâncias, até eu virar isso que sou hoje. Acho que vocês chamam isso de biomineralização.

Estas são as condições que fazem de mim um fóssil. Os cientistas dizem que todo fóssil tem uma história para contar. No entanto, quem conta a história dos fósseis são eles, os cientistas. Por isso, quero mudar um pouco e contar a minha história. Eu sou um amonite fóssil e conto a história de depois de mim. E não me confundam, por favor: não sou um autor fóssil, desses que se biomineralizam em vida. Eu não. Eu, o amonite Hildx, sou um fóssil autor. Original, não?

Nós amonitas, estamos há muito tempo por aqui. Vivemos e fomos muito abundantes  na era que vocês chamam de Mesozóico, quando finalmente fomos extintos. Por termos sido tão abundantes e por sermos característicos de um determinado período de tempo, somos muito usados para datação relativa do tempo geológico. Somos o que se chama  fósseis índices ou fósseis guia.

Eu e você, você e eu…

Mas nosso período geológico mais interessante é o período que vocês humanos chegaram por aqui. Interessante e engraçado. Vocês não entenderam nada!! Quando vocês achavam um de nós no chão ou os tiravam do meio das pedras, vocês ficavam feito bobos nos olhando seguidamente. Não é para menos.

Nosso formato elegantemente espiralado, que lembra uma sequência de Fibonacci, chama mesmo a atenção. Alguns, embalados em leituras rápidas, vão dizer que somos os primeiros illuminati! Ou que somos produtos de algum designer inteligente. Hã, sei. Só espécies antigas e extintas como nós sabem o trabalho que dá evoluir…

O Chakra de Vishnu e o amonite como objeto religioso na India; Estes objetos são chamados de Saligramas

Já fomos confundidos com várias coisas. Na Índia, nós amonitas somos chamados de Saligramas. Somos representados como um dos chacras do deus Vishnu. Bacana, não?

No tempo dos gregos e dos romanos clássicos, confundiam nosso formato com os chifres de uma cabra. Não demorou para que nos associassem a deuses e formas caprinas. Amon, divindade egípcia também conhecida como Amon-Ra, e que era portador de belos chifres caprinos, foi logo associado conosco.

Plínio, o velho, o grande naturalista romano, anotou na sua História Natural que nós éramos conhecidos na antiguidade como “cornos de Amon”.  E assim efetivamente fomos conhecidos em quase todo o mundo romano.

um tipico snakestone: um amonita com a cabeça de uma serpente esculpida

Todo o mundo romano, menos naquela ilhazinha, que os romanos chamavam de Bretanha. Lá, fomos durante algum tempo associados – vejam vocês – a serpentes enroladas. As snakestones eram muito comuns nas camadas jurássicas da velha ilha. Nossa ocorrência era tão comum que em algumas vilas éramos usados como enfeites e mesmo como pesos nos mercados. Imagine alguém chegando na feira da vila: “quero um corno de Amon de Batatas e dois de chuchu!“.

 Santa Hilda e os amonites
Memorial de Santa Hilda em Whitby; notar os amonitas, como serpentes enroladas, aos pés da Santa

Surgiram mesmo associações estranhas. Mais do que vocês possam imaginar. Uma importante abadessa bretã, Santa Hilda (614-670 AD), foi associada, muito tempo após sua morte, com lendas que lhe atribuíam o poder de transformar serpentes em pedras. As serpentes petrificadas, claro, éramos nós, amonites.

Existem inclusive estátuas e mesmo brasões mostrando santa Hilda transformando serpentes em pedra. Sir Walter Scott, autor de Ivanhoé e grande medievalista inglês, chegou a escrever um poema onde falava dos milagres de santa Hilda.

Eu não entendo de milagres, pois estou extinto. Mas entendo de ironias. Alpheus Hyatt (1838-1902), paleontólogo americano, deu o nome de Hildoceras a uma ordem de amonitas do jurássico inferior. Este é, por assim dizer, o meu nome de família. O mistério da transformação das serpentes em pedra já estava resolvido.

Mas, graças a Hyatt, Santa Hilda estava de novo e inadvertidamente ligada a nós pelo nome. Santa Ironia. Quantas risadas Hyatt deve ter dado!

O estilo amonite

Houve inclusive uma época em que nossas graciosas

Capitel com motivos inspirados em amonites. Esta casa também pertenceu ao paleontólogo Gideon Martell

formas serviram de inspiração para os arquitetos. Em vários locais da Inglaterra, foi de muito bom gosto a incorporação de elementos de decoração que lembravam as formas do amonites. Isso foi no inicio do seculo XIX.

Um dos arquitetos responsáveis por estes edifícios não foi ninguém mais que Amon Wilds. Inspirado provavelmente pelo seu próprio nome, ele construiu diversos edifícios com motivos amoníticos. Um dos mais celebrados destes edifícios era localizado em Castel Place 166 High Streets, em Sussex.

Por motivos que só pertencem à Paleontologia, esta casa foi construída para Gideon Mantell. Mantell foi o primeiro a descrever o Iguanodon, um dos primeiros  dinossauros gigantes. De modo que tudo terminou literalmente em casa.

O filho de Amon Wilds, que tinha o nome do pai, continuou sua obra, construindo diversas casas no sul da Inglaterra com motivos amoníticos na década de 1820.

por que eu?

tenho muitas mais historias pra contar. Alguém vai dizer: “conta mais, Hildx“. Eu conto, minhas crianças. Hoje não, que estou cansadx e com sono. Ontem mudou o horário de verão e, mesmo para nós, seres já extintos, isso dá um cansaço medonho.

Sou um amonite, com muito orgulho. Não nadamos mais alegres pelos mares como outrora. Somo umas pedras estranhas

A moderna congregação de Santa Hilda apresenta a sua imagem segurando uma casa, simbolo de sua abadia. Na outra mão, não uma serpente mas um amonite. Uma santa em paz com a modernidade.

desencavadas das rochas. Dos nativos americanos aos hindus, dos ingleses aos alemães, dos bretões do condado de Witby aos modernos museus de paleontologia, nós continuamos brilhando.

Ora somos objeto de adoração ou objetos de cultos estranhos. Ora somos remédios potentes contra picadas de cobra, amuletos para sonhos ruins ou meras decorações em casas de província. O fato é que nós causamos.

Nossa concha elegantemente espiralada e nossas suturas graciosas chamam a atenção por serem objetos geométricos de grande simplicidade e beleza. Nossa presença em rochas antigas nos faz testemunhos importantes da história da Terra.

Semana passada a professora Frésia escreveu aqui mesmo neste blog que um exemplar de amonite que ela ganhou de seu pai alterou seu destino. Hoje, ela é uma feliz paleontóloga. Que bacana! E que orgulho!  Este é nosso mistério.  Nós, amonitas, podemos mudar suas vidas!

E quem quiser que conte outra.

Para saber mais:

Kracher, Alfred. “AMMONITES, LEGENDS, AND POLITICS THE SNAKESTONES OF HILDA OF WHITBY.” European Journal of Science and Theology 8, no. 4 (2012): 51-66.

Meu primeiro fóssil, o pai de todos.

Quando eu tinha uns 16 ou 17 anos e ainda morava na Venezuela, nas férias fomos com a minha família para a cidade de Cucuta na Colômbia, que fica próxima à fronteira. Nessas férias meu pai me presenteou com um fóssil de uma concha. Algum tempo depois descobri que se tratava de uma concreção de um ammonite que viveu no Cretáceo da Colômbia, na famosa localidade de Villa de Leyva.

Ammonite, Villa de Leyva
Meu fóssil mais antigo

Na época estava quase terminando o colegial, teria que ir para universidade e tinha aquele grande dilema: o que será eu vou ser? Enfim, achei muito legal o presente do fóssil. Na realidade, era um dos primeiros que via na minha frente e não em imagens dos livros, cinema, tv… O primeiro que era tangível e era meu. Penso que esse ammonite selou a minha escolha:

– pai quem estuda os fósseis?

– Ah, são os paleontólogos.

– Bom, então já sei o que vou ser… (como fazer para me tornar um … isto levou mais tempo, como a Carolina já contou, num post).

Lembrei de toda essa história esta semana, quando estava dando a aula prática dos ammonites. Tenho um carinho especial por eles, pois graças a eles descobri muita coisa, embora nunca os tenha estudo de fato.

Mas não fui só eu que fiquei maravilhada com esses fósseis, eles vem encantando a humanidade desde os tempos dos egípcios. O motivo é que o seu registro é bem abundante ao redor do planeta, sempre associados a rochas sedimentares que se formaram em ambientes marinhos. Na verdade, foram um grupo de moluscos cefalópodes, hoje extinto mas muito exitoso na sua época, que habitou nos mares. Eles surgiram no Período Devoniano (400 – 360 milhões de anos atrás) e desapareceram junto com os dinossauros, na grande extinção do final do Cretáceo (há 65 milhões de anos), aquela do meteorito que eu já comentei aqui.

Os ammonites formam um grupo de cefalópodes que possuíram no início uma concha plano espiral, e que com o passar do tempo modificaram o formato da concha para formas espiraladas, retas, etc. Alcançaram tamanhos de poucos centímetros até quase dois metros de diâmetro, nas formas planoespirais. Eles receberam esse nome, porque os fósseis das suas conchas lembram chifres enrolados, que na época do império egípcio foram atribuídos ao deus Ammon e que, aliás, eram considerados provas irrefutáveis da passagem dessa divindade pela terra, segundo conta Heródoto nas suas crônicas acerca do Egipto que foram escritas 500 anos antes de Cristo.

Os Ammonoides podiam nadar livremente e controlavam com grande precisão a profundidade na qual habitavam nos mares, pois as suas conchas foram divididas internamente em câmaras que se comunicavam umas com outras por meio de um canal interno, de modo que o animal conseguia encher com líquido ou gases as diferentes câmaras e, por conseguinte, subir ou descer na coluna de água, calcula-se que até uns 500 metros de profundidade ou mais. O corpo do animal ocupava a última câmara, que sempre era a de maior tamanho. Os ammonites foram predadores ativos e o seus corpo possivelmente foi semelhante ou lembrava ao dos polvos e lulas atuais.

Por serem muito abundantes, eles são utilizados para datação relativa de camadas de rochas, pois apresentam diferenças muito evidentes e fáceis de observar a olho nu entre os primeiros do Devoniano e os últimos do Cretáceo. A feição morfológica que permite organizá-los em categorias temporais é a sutura interna que ser forma no local em que a parede (septos) que divide as câmeras se une à parede interna da concha. Esta feição recebe o nome de sutura, e vai evoluindo de uma sutura sinuosa a uma sutura sumamente complexa, formada por um padrão de lobos dentados. Assim, com base nas suturas se conhecem três grupos principais de Ammonoides: (1) Goniatites (sutura simples com algumas ondulações), que viveram do Devoniano ao Permiano; Ceratites (sutura na qual começam a se definir lobos) encontrada do Permiano ao Triássico; e por fim, a mais complexa ou Ammonitica, que é encontrada nos exemplares do Jurássico ao final do Cretáceo. A sutura é bem fácil de ver em fósseis onde se observe o molde interno da concha, ou seja, naqueles em que a concha foi preenchida e a parte externa foi dissolvida total ou parcialmente.

Embora no meu ammonite não seja possível ver as suturas, pelos fósseis que também são encontrados associados eu soube que ele data do Cretáceo, mas isso eu descobri um longo tempo depois de ganhar meu primeiro fóssil.