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Crianças famintas e com frio no gueto de Varsóvia

A Guerra e a Peste: A Epidemia de Tifo no Gueto de Varsóvia

Por Amanda Tognoli da Silva

Guerra, Peste e Fome andam sempre juntas. O Tifo, uma doença infecciosa com altas taxas de transmissão, sendo facilmente contraída pela população por meio de pulgas e piolhos infectados, também gosta desta companhia. Não por acaso, o Gueto de Varsóvia, local precário onde milhares de judeus foram presos pelo governo alemão durante a Segunda Guerra Mundial, sofreu uma grande epidemia de tifo. Porém, com a ajuda de toda a comunidade, a epidemia foi debelada. Conhecendo um pouco mais sobre esse triste episódio da história e das medidas sanitárias e políticas que os moradores do Gueto de Varsóvia tomaram, o que podemos aprender?

Tifo: uma doença fatal

O Tifo é o nome genérico de várias doenças causadas pelas bactérias do gênero Rickettsias. Grande parte dessas bactérias se desenvolve num reservatório animal, e é transmitida ao homem pela picada ou contaminação com fezes de insetos infectados, como piolhos e pulgas. Desta forma, a contaminação com as fezes infectadas ocorre através de cortes na pele ou membranas mucosas dos olhos ou da boca.

Rickettsias vista em microscópio

Imagem de Rickettsias ao microscópio. As Rickettsias, bactérias microscópicas que causam o tifo epidêmico. Em geral, estas bactérias são carregadas em pulgas, carrapatos e piolhos.

As bactérias se proliferam nas células endoteliais dos vasos sanguíneos e podem provocar lesões graves. Os sintomas começam cerca de 7 a 14 dias após a bactéria entrar no organismo. Dentre os sintomas identificados estão febre, dor de cabeça intensa, cansaço e erupções cutâneas que geralmente começam no peito e se espalham para os braços e pernas. Se a infecção for grave, a pressão arterial pode baixar, os rins podem apresentar mau funcionamento e pode haver o desenvolvimento de gangrena e pneumonia.

Charles Nicolle encontra as Ricketsias

Se não tratado, o tifo pode ser fatal. Atualmente, o tratamento do tifo se faz por meio da administração do antibiótico doxiciclina por via oral. O paciente toma o antibiótico até melhorar e não apresentar febre por 24 a 48 horas. Entretanto, é necessário tomar o antibiótico por pelo menos 7 dias.

Em 1928, Charles Nicolle recebeu o Prêmio Nobel por ter descoberto o papel do piolho na transmissão do tifo em 1909. Nicolle fez observações e concluiu que os pacientes não eram mais contagiosos após receber tratamento hospitalar, tomar banho e trocar de roupas. Desta forma, ele colocou piolhos sem a bactéria em macacos infectados e depois transferiu os piolhos, agora infectados, para macacos saudáveis, que acabaram desenvolvendo tifo.

Charles Nicolle

Charles Nicole, infectologista francês (1866-1936), em seu ambiente de trabalho. ele descobriu o papel do piolho na transmissão do tifo, o que lhe rendeu o Nobel em 1928.

 

Os diferentes tipos de Tifo

Os tipos mais comuns de tifo são o epidêmico e o endêmico. O tifo epidêmico é causado pela bactéria Rickettsia prowazekii e transmitida pelas fezes do piolho do corpo humano, Pediculus humanus. Por outro lado, o tifo endêmico tem como vetores Rickettsia typhi ou Rickettsia mooseri, transmitidas pelas pulgas do rato, Xenopsylla cheopis. Os sintomas do tifo endêmico são menos intensos que os do epidêmico.

A infecção ocorre principalmente em áreas com más condições sanitárias e de higiene e com grande aglomeração de pessoas. Desta forma, campos de refugiados, prisões, áreas de guerras civis e de extrema pobreza são áreas preferenciais para os surtos de tifo. como se pode ver, há focos dessa doença espalhados pelo mundo todo.

Epidemias de Tifo na história

O registro mais antigo de uma epidemia de tifo é a praga de Atenas, do século 15 a.C. Este surto supostamente começou na Etiópia e passou pelo Egito, chegando ao porto de Piraeus. Foi observado tosse, vômitos, diarréia e erupções cutâneas. Contudo, tal descrição do surto está aberta a interpretações e muitas doenças podem ser responsáveis por ele como tifo, catapora e peste bubônica.

            Apesar deste registro, muitos autores acreditam que a primeira epidemia autêntica de tifo ocorreu durante a conquista de Granada, na Espanha, em 1492. A doença que abateu a população foi descrita como uma febre maculosa e se parece muito com a descrição moderna de tifo.

            O tifo reapareceu como epidemia durante a Primeira Guerra Mundial. Nesta época, a doença começou na Sérvia e se espalhou para o Centro e Leste Europeu. Da mesma forma, a Rússia teve surtos recorrentes durante a revolução Bolchevique. por fim, segundo as estimativas, 25 milhões de pessoas contraíram tifo entre 1917 e 1925. O saldo da doença foi de 3 milhões de mortes.

            Posteriormente, já durante a Segunda Guerra Mundial, pesquisadores nazistas infectaram 600 prisioneiros de campos de concentração com sangue de pacientes infectados por tifo para testar a eficácia do fenol como tratamento ou vacinação.

Bactérias e Piolhos

            No século XX, o tifo está relacionado às guerras, aos movimento populacional em massa, na má higiene e na fome. As epidemias de tifo que ocorreram após a Segunda Guerra Mundial intensificaram as pesquisas biomédicas. Algumas dessas pesquisas incluíam o uso de pesticidas como o DDT para controlar os piolhos em Nápoles entre 1943 e 1944, e também o uso de antibióticos recém descobertos, como o cloranfenicol. Após muito estudo da vida intracelular da Rickettsia prowazekii e seus efeitos na célula hospedeira, seu genoma foi sequenciado por Andersson et al em 1998.

O Tifo no Gueto de Varsóvia

O discurso alemão sobre higiene influenciou a ideia de que os judeus carregavam doenças. Assim, na ideologia nazista, isso reforçou o discurso de que os judeus seriam a própria doença. Portanto, seria esperado lidar com epidemias, o que no final das contas significou aniquilá-los.

Na Alemanha, havia um grande medo do tifo se espalhar para a população e para o exército por causa de seu impacto depois da Primeira Guerra Mundial, matando 5 milhões de pessoas. Com essa desculpa, os alemães realocaram muitos judeus para os guetos e campos de concentração. Posteriormente, os nazistas criaram uma área chamada Seuchensperrgebiet que era, literalmente, uma área restrita para doenças. Esta área se tornaria o Gueto de Varsóvia, na Polônia.

Crianças famintas e com frio no gueto de Varsóvia

A crianças foram as que mais sofreram durante a ocupação do Gueto de Varsóvia; 

 Em 5 de Outubro de 1940, os nazistas proibiram os judeus de deixar o território do Gueto. Em 15 de novembro deste mesmo ano, uma parede com arame farpado foi construída em volta desta área. Alguns ainda conseguiram escapar por pequenos buracos ou pelo esgoto.

O tifo se alastra no Gueto

O Gueto possuía uma área de 3,4 km², onde foram presos mais de 450 mil judeus.  Um inverno rigoroso e num ambiente de guerra e privações de todo o tipo facilitaram a propagação do tifo epidêmico. No entanto, cerca de 120 mil prisioneiros do gueto infectaram-se pela bactéria, com 30 mil morrendo diretamente por causa da doença e muitos morrendo pela associação da doença com a fome. Assim, a fome no gueto aumentou a epidemia, o que provou aos alemães que os judeus eram portadores de doenças. Para eles, judeus famintos significavam mais comida para o povo alemão. Desse modo, os judeus deveriam ser eliminados, o que pouparia ainda mais comida.

Contudo , até abril de 1941, o foco dos administradores nazistas do gueto era deixar morrer de fome todo residente que não conseguisse comprar comida. a partir de maio deste ano, os novos administradores planejaram construir uma economia auto sustentável no gueto, para não desperdiçar a força de trabalho. Para estes administradores, alguns residentes deveriam receber o mínimo de alimento e nutrição para que pudessem trabalhar. Assim, até setembro, o gueto começou a trabalhar economicamente aos olhos dos alemães. um programa de cozinhas comunitárias, administradas por voluntários, foram responsáveis por prover nutrição básica para ¼  da população.

No entanto, em outubro de 1941, Jost Walbaum, o Diretor de Saúde do Governo Geral, disse que  “Os Judeus são, em sua maioria, os portadores e disseminadores do tifo. Há apenas duas maneiras de resolver isso. Nós sentenciamos os Judeus dos guetos à morte ou atiramos neles…Nós temos uma e apenas uma responsabilidade, que o povo alemão não seja infectado e ameaçado por esses parasitas. Para isso, qualquer meio deve ser correto.”

A epidemia é contida…por quem?

 Neste mesmo mês, contudo, começou um rigoroso inverno e era esperado que as taxas da doença aumentassem. Ao contrário, a curva epidêmica caiu inesperadamente.

Desta forma, Emanuel Ringelblum, o cronista do gueto, escreveu em Novembro de 1941: “A epidemia de tifo diminuiu apenas no inverno, quando geralmente piora. A taxa epidêmica caiu cerca de 40%. Ouvi isso dos boticários, médicos e do hospital.

Inicialmente, por meio de análises de documentos históricos e modelos matemáticos, um grupo de pesquisadores descobriu que a comunidade agiu ativamente para erradicar a doença, poupando cerca de 100 mil vidas. Nesta analise, constatou-se que programas de saúde e práticas de distanciamento social por parte da comunidade foram responsáveis pelo colapso da doença. Por outro lado, verificou-se que o gueto possuía muitos médicos e especialistas que ministraram cursos muito bem organizados sobre higiene pública e doenças infecciosas, assim como centenas de palestras sobre o combate ao tifo.

Fila da refeição no gueto de Varsovia

Fila para comida no Gueto de Varsóvia

Da mesma forma, houve também relatos de universidades secretas, onde jovens estudantes de medicina receberam treinamento sobre como lidar com doenças epidêmicas. Além disso, encorajou-se a higiene geral e limpeza das casas, às vezes usando a força. Ademais, o distanciamento social era considerado um senso comum básico e as quarentenas eram comuns. O Departamento de Saúde, do Conselho Judeu, criou neste período vários e complexos programas de Saúde Publica.

Em síntese, o Gueto de Varsóvia teve inúmeras instituições internas civis, médicas e sociais trabalhando intensamente durante meses para parar a epidemia de tifo. Não obstante o constante esforço da comunidade e de organizações para acabar com a epidemia contribuiu para diminuir a transmissibilidade abaixo do limite crítico, levando a epidemia a uma parada repentina e precoce.

A “Solução Final” e o fim do Gueto

Entretanto, em 1942, os nazistas enviaram muitos moradores do gueto para os campos de concentração que estavam construindo.  Posteriormente, em 1943, o Governador Geral Hans Frank alegou que “razões de saúde publica” eram a causa do “inevitável” assassinato de 3 milhões de judeus na Polônia “. Este foi somente um mais caso óbvio de uma doença usada como arma de guerra e pretexto para um genocídio.

De acordo com Ludwik Hirszfeld, um bacteriologista indicado ao Prêmio Nobel e que viveu no gueto, não tem dúvidas: “No caso da Segunda Guerra Mundial, o tifo foi criado pelos alemães. Iniciado pela falta de comida, sabonete e água, então alguém concentra 400.000 pessoas em um distrito, tira tudo deles e não dá nada, é assim que se cria o tifo. Nessa guerra, o tifo foi trabalho dos alemães.”

O que a epidemia de tifo no Gueto de Varsóvia pode nos ensinar

 “Um povo que não conhece a sua História está fadado a repeti-la”, já dizia o filósofo irlandês Edmund Burke. Uma frase dita há mais de 200 anos nunca foi tão atual.

Visto dessa forma, a epidemia de tifo no Gueto de Varsóvia e a pandemia mundial de covid-19 possuem muitas similaridades. Contudo, ambas doenças relacionam-se a microrganismos invisíveis, que se espalham rapidamente e podem matar milhões. Além disso, ainda não há remédio efetivo para nenhum deles. Portanto, é possível dizer que estudar a epidemia no Gueto seria um ótimo modo de ver como uma doença altamente transmissível pode ser erradicada se toda a população se comprometer para tal. Ao estudá-la, notaríamos que políticas públicas de contenção, uma boa comunicação com a comunidade e a cooperação geral foram, e são, essenciais para o fim da epidemia. Além disso, perceberíamos que a contenção é possível até mesmo nas piores condições sanitárias e no pior cenário político possível, um regime desumano e assassino.

 Contudo, o que nos impede de nos unirmos para vencer este vírus que já tirou tantas vidas? Uma doença que é propagada pelas pessoas, só pode ser detida pelas pessoas. A contenção de uma doença como o tifo depende, sobretudo, do comportamento humano.

SOBRE A AUTORA

Amanda Tognoli da Silva, 24 anos, nascida e criada em Conchal-SP. Estudante de Ciências Biológicas na UNICAMP, apaixonada por astrobiologia e livros de investigação. Grande objetivo como bióloga: a divulgação da ciência.

Para saber mais:

New study explains 'miracle' of how the Warsaw Ghetto beat Typhus. in:https://www.eurekalert.org/pub_releases/2020-07/ru-nse072020.php  
(este texto foi elaborado durante a disciplina Historia das Ciências Naturais, no Instituto de Geociências da Unicamp, no 2º semestre/2020.  Os trabalhos elaborados tinham como tema "As Epidemias e a História da Ciência")

O BIFE DETETIVE E O REFOGADO LAVOISIER

Lavoisier no bandejão

Quando eu escuto falar de Lavoisier, imediatamente lembro do refogadinho de legumes do bandejão. Sim, lá em priscas eras, no século XX, costumávamos dizer que o tal refogadinho, em geral servido nos jantares do bandeco, eram o reaproveitamento das sobras do dia. Logo, eram a mais perfeito tradução do “nada se perde, nada se cria, tudo se transforma” que havíamos aprendido nos bancos escolares. Em geral, o tal “Refogado Lavoisier” era servido juntamente com o sempre presente “Bife Detetive” – duro, frio e com nervos de aço.

No entanto, o que sabemos de Lavoisier?

Retrato de Antoine-Laurent Lavoisier (1743 – 1794)

Quando pensamos nele para além do refogado do bandeco, o significado de Lavoisier é mais difícil, retirado a fórceps da memória. Por exemplo, Lavoisier negou a noção de “flogisto”, uma noção meio primitiva e esquisita sobre a composição das substâncias. Com isso, estabeleceu as bases da Química Moderna. Descobriu o oxigênio? Foi guilhotinado durante o período do terror na Revolução Francesa?

Em resumo: conhecemos pouco de Lavoisier.

 

 

O “Pai” da Quimica?

A discussão como o ele venceu o debate sobre o flogisto é interessante. Vez ou outra, esta narrativa vem com uma afirmação de que Lavoisier trouxe racionalidade para um debate obscuro e primitivo. Apesar de ser parcialmente verdade, esta afirmação traz um pouco a noção de uma ciência que trazia a Luz contra as Trevas.

Na verdade, a discussão sobre o flogisto foi um debate entre dois paradigmas importantes do século XVIII. Entretanto, nenhum dos lados era “irracional” ou obscuro. Lavoisier tem culpas (e responsabilidades) pela Química Moderna, mas ele não foi o “Pai” da Química, como muitos tentam entender.

Da mesma forma, Lavoisier também fez inúmeras proposição de temas e discussões que não tiveram vida longa no arcabouço da Química. Muitos de seus trabalhos e idéias também foram abandonadas por obsoletos.

Da mesma forma, a sua execução em 20 Floreal Ano II da Revolução (8 de maio de 1794) é tida por alguns como uma prova de que a Revolução Francesa era anticientífica. É um debate posterior, dos séculos XIX e XX, durante o qual diferentes correntes políticas disputaram o significado da Revolução Francesa. Lavoisier, entretanto, foi executado menos por ser um cientista, e mais por ter sido um funcionário do Antigo Regime, cumprindo o odiado papel de coletor de impostos.

Entretanto, Lavoisier foi isso, nada disso e muito mais.

A infância e a juventude de Lavoisier

Antoine-Laurent de Lavoisier nasceu em Paris em 26 de agosto de 1743. Pertencia a uma família rica, que fazia parte da chamada noblesse de robe (em português nobreza de toga). A nobreza de toga eram grupos de funcionários do governo francês do Antigos Regime, que ocupavam cargos na administração ou na justiça. Não eram nobres, mas sim burgueses enriquecidos, que eram acolhidos pelos governantes na administração do Estado.

Por outro lado, sua mãe, Émilie Punctis, era filha de uma abastada família de açougueiros parisienses. Os Lavoisier não eram parisienses, mas sim da pequena Villiers-Cotterets, distante cinquenta milhas a noroeste de Paris. O pai de Antoine, Jean-Antoine Lavoisier, embora de família enriquecida, era um forasteiro em Paris.  Na época, as relações familiares eram tudo. Foi graças aos esforços do um tio, que Jean Antoine alcançou o cargo de procurador do parlamento.

Émilie Punctis morreu quando o pequeno Antoine tinha cinco anos. Com a herança recebida da mãe, o menino se tornou uma pessoa rica. Com isso, dedicou-se a estudar: estudou no College des Quatre Nations, também conhecido como Colégio Mazarin, em Paris. Finalizados seus estudos iniciais, Lavoisier primeiro estudou leis, como seu pai. Ingressou  na ordem na Ordem dos Advogado com a idade de vinte e um anos. No entanto, não tinha a menor intenção de seguir a carreira, embora soubesse da importância do título de advogado na sociedade de seu tempo.

Todavia, seu interesse estava noutro lugar. Seu desejo não estava na carreira de advogado de seu pai, mas sim numa carreira na ciência. E aqui o jovem Antoine inicia sua carreira para se tornar um ícone da ciência moderna. E nome de Refogado.

(continua)

 

O ILUMINISMO E AS TRILHAS NO ALTO DO MORRO

(Este texto é dedicado a Gabriela Medero e Georges Goussetis)

No verão de 1776, Adam Ferguson (1723 – 1816) estava intrigado com algumas coisas que havia verificado ao andar pelo morro de Arthur´s Seat, em Edimburgo.

O morro Arthur´s Seat, em Edimburgo

Arthur´s Seat é uma pequena elevação urbana na parte leste de Edinburgo, próxima ao centro da cidade. As rochas que formam o topo do Arthur´s Seat são de composição basáltica, provenientes do resfriamento de uma antiga câmara magmática. No entanto,  embora essa história respire geologia, não é de basaltos que vamos falar aqui, e sim de Iluminismo.

Um trio de peso

Professor Adam Ferguson, Filosofo e historiador escocês

Adam Ferguson, filosofo e historiador escocês, adorava caminhar no Arthur´s Seat. Nestas caminhaadas deve ter tirado alguma inspiração para sua vasta obra. Nela, Ferguson mostrava seu apreço pelas sociedades tradicionais, como os clãs das Highlands, em contraste com os habitantes da cidades, que considerava mais “fracos. Entretanto, neste verão especifico, ao caminhar pelo Arthur´s Seat, Ferguson observou algumas manchas esbranquiçadas formando “trilhas” com formatos diferentes na vegetação do morro. Intrigado, Ferguson chamou alguns de seus amigos para verificarem o curioso fenômeno.

Os amigos chamados por Ferguson foram os medicos Joseph Black e James Hutton. O trio é um dos mais importantes do chamado Iluminismo EscocêsJoseph Black (1728 – 1799), como Ferguson, era professor da Universidade de Edimburgo, médico e um importante nome da química moderna. Foi ele quem descobriu o dióxido de carbono, em 1754. Entre seus feitos também se destacam a invenção de balanças de precisão e a descoberta do calor latente das substâncias.

Dr Joseph Black, um dos maiores nomes da Química no seculo XVIII

James Hutton (1723 – 1799), médico e cavalheiro escocês, por outro lado, é tido como um dos fundadores da geologia moderna. Tendo estudado medicina na Holanda, Hutton foi sobretudo um fazendeiro. De sua experiencia arando as terras das Lowlands escocesas, Hutton percebeu a relação que existia entre erosão, transporte e deposição de sedimentos.

Assim, Hutton estabeleceu claramente o conceito de ciclos de deposição e erosão, os quais formariam as rochas dos continentes e oceanos. Sua obra mais importante nos dias de hoje, Theory of the Earth, foi inicialmente lida por Joseph Black na Real Society of Edinburgh em 1785. Em 1797, após inúmeras revisões, ela foi finalmente publicada.

As “Trilhas” no Arthur´s Seat

O medico e Naturalista James Hutton, um dos pioneiros da geologia no seculo XVIII

Neste verão de 1776, entretanto, os três amigos estavam ainda pelo morro, verificando as marcas na vegetação, e interrogando diversas pessoas das redondezas. James Hutton, dois anos mais trade, escreveria um pequeno texto, publicado nos anais da Real Sociedade Cientifica de Edimburgo.  O texto se chama “Of certain Natural appearances of the ground of the Hill of Arthur´s Seat”.

Este texto, embora não tenha importância na obra de Hutton, é bastante interessante como um exercício de utilização do método científico. Nele, Hutton inicia a introdução com uma breve descrição do problema. Tratava-se de “trilhas” no morro, formada por plantas mortas e esbranquiçadas. De longe, parecia uma trilha, mas não estava relacionada com as trilhas dos caminhantes. Logo, teria outra origem, e que deveriam ser entendidas.

Ver, analisar, estudar

Por outro lado, as explicações de que tais marcas eram devidas a raios não pareceu suficiente. Hutton então, passa a descrever as marcas: elas ocorriam sobretudo nas partes mais altas do morro, e existiam marcas recentes e marcas mais antigas. As marcas mais recentes eram esbranquiçadas, enquanto as mais antigas eram enegrecidas, causadas pelo apodrecimento das plantas.

Assim, Hutton descreve que as marcas eram compridas, mas poderiam também ocorrer marcas com larguras similares aos comprimentos. As marcas eram paralelas umas às outras, e Hutton examinou algumas marcas de um verde intenso, crescendo junto com as marcas dos anos passados. Assim, lhe pareceu que estas marcas mais antigas eram agora cobertas pela vegetação nova, formando faixas de verde mais intenso.

Contudo, ao estabelecer tal sucessão, Hutton indaga: “quantas trilhas sucessivas poderiam ser detectadas pela observação de suas aparências?”. Depois de suas atentas observações no Arthur´s Seat, Hutton estabelece que “no mínimo” cinco sucessões de trilhas poderiam ser detectadas. Deveria haver mais, mas estas são as que se possui evidências concretas, afirma.

Insetos ou Raios?

Depois de descrever as trilhas, Hutton começa a discutir suas causas. Parece evidente que tal fenômeno ocorreu ali no mínimo, nos últimos oito ou nove anos. Embora muitos naturalistas tenham atribuído estes fenômenos aos trovões, Hutton observa que muitas das feições são formadas na primavera, quando não há tempestades elétricas na região. Também observa que as descargas tem direções variadas, o que contrasta com a similitude das trilhas, com sua disposição paralela umas as outras.

Hutton também considera a possibilidade da ação dos insetos na formação das trilhas. Da mesma forma, considera as possiblidades de colônias de insetos construírem as trilhas paralelas.  Mais uma vez, rejeita, com base nas suas observações, tal possiblidade.

Ao discutir estas possibilidades, Hutton observa: nos métodos de investigação do meio natural, é preciso muito cuidado ao considerar causas e efeitos e suas conexões: ambas as prováveis causas do fenômeno (eletricidades, insetos) estão longe de serem consideradas suficientes para uma adequada explicação do fenômeno.

Ciencia e Causalidade

Assim, Hutton termina o texto sem propor uma explicação para a trilhas de diferente coloração na vegetação do Arthur´s Seat.  Entretanto, é importante sua observação sobre a causalidade dos fenômenos. Quantas vezes atribuímos causas sem levarmos em conta uma correta leitura dos fenômenos? Quantas vezes saímos a dizer nossas verdades “cientificas” penduradas em interpretações parciais e (muitas vezes equivocadas) sobre as relações de causa e efeito dos fenômenos que estamos observando?

Contudo, podemos observar que o texto de Hutton tem uma estrutura parecida com nosso atuais papers: introdução, formulação do problema, descrição dos fenômenos, discussão das causas, conclusões.

Era um tempo de profundo questionamento. Intrigados, os três amigos andam pelo Arthur´s Seat procurando respostas. Estas respostas estão vinculadas a questões de causa e efeito (qual é o agente causador das “trilhas”?). No entanto, as respostas disponíveis não são suficientes. Não se pode ir adiante com estas observações. E fim. Encerra-se uma pesquisa, com dicas e questionamentos para os próximos, a subir nos ombros dos gigantes.

Ah, o Iluminismo!

Neste tempo de “autoproclamados” sábios, de terraplanismo social e de fake News, que falta que você faz…

Para saber mais:

Buchan, James. Capital of the mind. Birlinn, 2012.

Playfair, John. “Biographical account of the late Dr James Hutton, FRS Edin.” Earth and Environmental Science Transactions of the Royal Society of Edinburgh 88.S1 (1997): 39-99.

A visão da terra como um disco achatado girando no espaço

NOTÍCIAS DE UMA TERRA PLANA (1)

A TERRA PLANA VENCEU?

Capa de livro com a figura do planeta como se fosse um plano, com o Polo Norte no centro;
Capa do Livro Astronomia Zetética: a terra não é um globo (1ª edição 1878), de Samuel Rowbothan; hoje à venda nos melhores sites da internet…

Sim, a Terra é plana. Um a um, os argumentos científicos que tentam mostrar que a terra é redonda vão sendo contestados. Cientistas e pesquisadores falham na sua tentativa de convencer os que defendem a Terra Plana e são derrotados. Lacrados, como se diria hoje nas redes sociais.

A partir destas mesmas redes sociais, os grupos que defendem a ideia de uma Terra plana conquistam milhares de adeptos e se tornam influencers na internet.

(Este é o primeiro de uma série de textos que foram elaborados de maneira coletiva. Sua origem foi a partir de uma atividade desenvolvida no segundo semestre de 2018 na disciplina História das Ciências Naturais, do Instituto de Geociências da Unicamp. Neste texto vamos apresentar, primeiramente, alguns conceitos envolvidos na teoria terraplanista.)

NASCE A TERRA PLANA

A origem da mais famosa teoria terraplanista se deve ao ingles Samuel Rowbothan (1816–1884). Rowbothan publicou em 1878 escreveu o livro Zetetic Astronomy: Earth Not a Globe.

foto P/B de Samuel Rowbothan, o pai da Astronomia Zetética,
Samuel Rowbothan (1816-1884), o criador da “Astronomia Zetética”

A “Astronomia Zetética” de Rowbothan foi adotada pela mais prestigiosa organização terraplanista da atualidade, a Flat-Earth Society. Fundada em 1959, esta sociedade em seu site propõe que a Terra seria plana, com centro no polo norte, de maneira semelhante à Projeção Polar.

Para os terraplanistas, o Sol seria um corpo 50km em cima da terra e não ao seu redor. Os eclipses lunares seriam causados por “objetos escuros” que se interpõe entre o Sol e a Terra. Estrelas seriam como lâmpadas de led presas no domo que circunda a Terra Plana.

OS DIAS E NOITES DA TERRA PLANA

Portanto, o Sol e a Lua seriam semelhantes a esferas com tamanhos aproximados de uma cidade. Por outro lado, os dias e as noites seriam definidos a partir do local até onde é possível o alcance dos raios solares na circunferência terrestre.

Seguindo esta mesma perspectiva, as estações do ano seriam variantes de acordo com o distanciamento do Solar sobre o “plano” terrestre. Os astros seguiriam um movimento espiralado, com o inverno correspondendo à maior distancia entre o Sol e a Terra. O verão, por consequência, corresponderia à maior proximidade.

A visão da terra como um disco achatado girando no espaço
A terra vista do espaço segundo a Teoria da Terra Plana

O magnetismo terrestre seria causado por uma montanha magnética, que ficaria localizada próxima ao Polo Norte.

UMA TERRA SITIADA PELA CONSPIRAÇÃO

Os militares americanos estão por toda a borda da Terra, segundo a teoria terraplanista. Esta ocupação se dá para que os cidadãos comuns não possam observar que a Terra é, na verdade, plana. Por esta causa é que a Antártida, onde essas provas existiriam, não seria ocupada senão por militares ou cientistas. No entanto, esta condição de ocupação militar (ou cientifica) secreta não é aleatória. Afinal, como toda boa teoria de conspiração, ninguém pode saber desta ocupação militar. Ninguém, a não ser as cúpulas dos governos envolvidos na conspiração.

Por causa desta grande conspiração é que, para os terraplanistas, a Antártida seria um grande paredão de gelo que “segura” toda a água da Terra.  Segundo  a teoria terraplanista, por conta da neblina austral e de uma limitação do olho humano, não conseguimos ver a borda do planeta. No entanto, podemos argumentar, aviões poderiam ver de cima a esfericidade da Terra. Mas, para os terraplanistas, a esfericidade da Terra que vemos nos aeroplanos é uma ilusão dada pela curvatura das janelas.

NEWTON, SOCORRO!

 Contudo, se voce achou tudo até aqui estranho, se segure. Vai piorar.

Para a Flat-Earth Society, a gravitação universal, que é responsável pela atração de todos os corpos para o centro da Terra, simplesmente não existe. Os terraplanistas justificam que os objetos só se encontram juntos ao chão em decorrência de uma força indefinida. Esta força tem a capacidade de atrair a Terra em um movimento vertical de subida, podendo ser comparada a um elevador infinito. Essa mesma força apresentaria o valor idêntico ao da força gravitacional, isto é, uma aceleração correspondente a 9,8m/s².

Newton e a maçã: a gravitação não existe?

 

Dessa forma, as explicações físicas sobre os corpos, as quais são justificadas pela Ciência que se embasa na existência da força da gravidade  são negadas pelos terraplanistas. Estes acreditam que os corpos seriam  o local onde se encontram os corpos são explicados segundo a densidade dos objetos. Ou seja, os corpos mais leves encontram-se acima e os mais pesados embaixo.

E não adianta argumentar, mostrar provas. Voce será “lacrado” pelos terraplanistas.

AFINAL, É PLANA OU NÃO É?

Entretanto, se você chegou até aqui, é justo perguntar: vocês, autores, acham que a Terra é plana ou redonda? Estaria redondamente enganado (com o perdão do péssimo trocadilho!) quem afirmasse ser a Terra plana. No entanto, neste nosso mundo tão cercado de informação e tecnologia, como existem pessoas que acreditam que a Terra é plana? Afinal, por que os argumentos da Ciência não as convencem?

Nesta série de posts (este é o primeiro) vamos conversar quais seriam as explicações para como chegamos nesta estranha situação.

Se até lá os terraplanistas não nos convencerem que a Terra é plana…

nota sobre os autores:

(este texto foi elaborado por  Marcela Moretti, Natasha Marques De Paula Santos, Gabriel Suzuki, Lucas Rios, Artur Dani, Maria Luiza de Oliveira, Jéssica Aparecida Santos Rodrigues e Jefferson de Lima Picanço)

As duas mortes de Luzia

Oi! Quer saber meu nome? A minha tribo me chamava de Loo-dj-ahn. Mas isso foi há muito tempo atrás, antes mesmo de minha primeira morte. Hoje, pelo que sei, me chamam de Luzia. Acho que é como entendem meu nome. Como soa aos ouvidos das pessoas de hoje. Ou é uma coincidência. Sei lá.

O ENIGMA DA CAVERNA

Este é meu Cranio de verdade; atras, está como vocês imaginaram que eu fosse…

Desculpe se sou confusa, se meu raciocínio é meio falho. De fato, tenho problemas em entender o que é a verdade e o que não é. Sei, pelos relatos que escuto, que hoje vocês também estão com dificuldades de entender o que é verdade e o que é mentira. Escutei estes dias um termo que deixou confusa: Fake News, ou noticia falsa. Vocês acreditam em noticia falsa?

Eu vivi boa parte de minha primeira morte numa caverna. Onze mil anos, se minhas contas estiverem certas. Não sei se vocês sabem, mas quando se vive em cavernas a realidade é meio confusa. Não sabemos ao certo se as sombras que vemos são fantasia ou são realidade. Por muito tempo, achei que as sombras que víamos eram a verdade. Contudo, hoje, sei que eram somente projeções na parede da caverna. Soa meio confuso, mas é assim. É um enigma da caverna. Uma alegoria, como dizem alguns de vocês.

A MORTE DE LOO-DJ-AHN

De qualquer forma, meu nome é Loo-dj-ahn, e eu pertenço aos Humanos. Minha tribo representa os melhores caçadores de nosso lugar. Em nosso falar, humano é “Croovijz“. Por isso talvez vocês outros nos chamem de povos de Clovis. Mas, pensando bem,  pode ser também coincidência.

Não me lembro ao certo como morri. Fui ficando doente, tinha dores de barriga, dor de cabeça, não conseguia mais acompanhar as mulheres. Entretanto, minha tribo tentou me curar com ervas e rezas. Meus olhos foram turvando, turvando, e depois não ouvi mais nada. Quando dei por mim eu já estava dentro da caverna, onde me sepultaram. Meu corpo foi coberto por tintas mágicas para avisar os espíritos ancestrais dos Humanos. No meu funeral, devem ter me virado para o norte, que era de onde haviam vindo nossos ancestrais.

Como já disse, minha primeira morte durou onze mil anos. Há uns poucos anos atrás, o que restou de mim foi encontrado por um povo estranho que tirava seu sustento de desencavar gente de seu tumulo ancestral. Mas, antes disso eu soube que um senhor chamado Peter Lund havia começado a explorar as grutas na nossa área. Ele retirou milhares de metros cúbicos de terra e achou milhares de ossos, de animais e de humanos, que ele remeteu para seu país natal, a Dinamarca.

NUM LUGAR CHAMADO MUSEU

Muitos outros foram resgatados por estes povos escavadores. Entretanto, dos humanos, os Croovijz, só eu. Dos outros povos que habitavam nossa região, como os Larga-ossos, os Bárbaros do sul e os Pega-peixe (esses eram os nomes que nós dávamos a eles), vários foram resgatados.

Fomos levados para um lugar escuro, muito longe da caverna onde me acharam. Lá, fomos iluminados, apalpados, medidos. Contudo, quando começaram a me chamar de Luzia, a principio achei que sabiam minha língua. Mas sabem nada. Falam muita bobagem sobre nós, tentam adivinhar o que éramos e o que fazíamos somente olhando nossos ossos e vendo os utensílios que fazíamos.

Depois, tentaram adivinhar como era meu rosto…erraram feio. Tentaram de novo…erraram de novo. Por que eles querem saber tanto do mim?

A MORTE DE LUZIA

No entanto, eu estava tranquila nesta minha nova vida. Pensavam que, como Luzia, estaria tranquila. Foi quando, numa noite dessas eu vi o fogo. Estava muito quente e podia-se escutar as madeiras do teto estalando. Muita fumaça na sala onde estávamos. Foi quando ouvimos um grande estrondo e o teto desabou. Essa foi minha segunda morte.

Esse lugar que vocês chamam Museu, pegando fogo…essa foi minha segunda morte!

Contudo, minha segunda morte foi mais curta. Cerca de um mês depois, eu comecei a ouvir barulhos, movimento acima de mim. Estavam escavando atrás de meus restos de novo? Que obsessão é esta?

Depois de um tempo, me acharam ali, soterrada sob as cinzas do incêndio. Nunca vi tanto alvoroço. Os caras que estavam escavando gritavam. Alguns choravam de alegria. Eu estava de volta.

O MUSEU E A TRIBO

Soube que o lugar onde estava tinha um nome de Museu. Era um prédio grande e bonito. Mas sempre ouvia falar de problemas. O povo que cuidava de mim sempre reclamava que o prédio estava em perigo. Perigo de quê? eu pensava: de um ataque de bárbaros inimigos? De grandes animais selvagens?

No entanto, parece que eles não tinham recebido muito recurso para manter o Museu. Faltavam recursos para o prédio ser seguro, para evitar incêndios. Depois, os chefes da tribo de vocês não estavam interessados nessa história de Museu. Ouvi que um dos chefes havia reclamado: “Já pegou fogo, quer que eu faça o quê?”.

Preciso dizer que achei esta fala típica de bárbaro, desses bem primitivos. Eles nunca assumem a responsabilidade do que fazem, como crianças grandes. Falam alguma coisa, depois voltam atrás. Querem deixar tudo confuso. Ou não sabem direito o que estão fazendo. Minha segunda morte tem a ver com essa confusão dentro da tribo que me resgatou da caverna.

A VIDA É CURTA…

Agora, estou esperando ser reconduzida à minha sala tranquila. Lá, dezenas de pessoas passavam admirando meu esqueleto e vendo o modelo de meu rosto. Contudo, eu sei que ele não é meu verdadeiro rosto. Eu também bem sei, no entanto, que nunca vão adivinhar como era o meu verdadeiro rosto. Mas eu sinto um certo orgulho deste rosto eu virei.

à direita, o paradigma antigo; à esquerda, o paradigma atual…vocês continuam errando…

Os barbaros que me desencavaram  dizem que sou um dos humanos mais antigos do país deles. Me admiram. Os bárbaros que cuidam de mim me tratam muito bem. Entretanto, os chefes da tribo deles, não ligam para ossos de gente. Ouvi dizer que eles gostam de uma coisa chamada dinheiro. Por esse tal de dinheiro brigam o tempo todo. Algumas vezes, se matam.

Contudo, não sei o que aconteceu com minha tribo. Sinto saudades deles. Mas ao mesmo tempo admiro esta tribo barbara que tanto empenho tem de cuidar de mim. Apesar dos chefes que eles escolhem para eles mesmos. Podem me chamar de Luzia. Loo-dj-ahn já morreu uma vez. Luzia, outra. Espero ainda durar mais um pouco, ver mais algumas coisas, aprender.

Mas o que se pode esperar mais de uma curta vida de onze mil e poucos anos?

 

PS – agradeço à Gustavo Teramatsu por me alertar sobre o novo paradigma do rosto de Luzia

MULHERES ASSISTINDO UMA PALESTRA CIENTIFICA

Era uma noite fresca e agradável de junho no Rio de Janeiro. Dentro do anfiteatro, o sábio professor falava sobre os peixes da Amazônia num francês suave e macio. O salão estava cheio. Na primeira fila, a esposa do sábio cientista o olhava risonha, parecendo saborear o instante. Também na primeira fila saboreando o instante, mas de outra forma, estava um senhor louro, alto, de belos e tristes olhos verdes e com uma barba já bastante grisalha.

o biólogo franco-suiço Louis Agassiz

O sábio era o Ilustre Jean-Louis Agassiz (1807 – 1873) famoso biólogo e paleontólogo franco-suíço, radicado nos Estados Unidos. Sua esposa era Elizabeth Cary Agassiz (1822 – 1907), que acompanhava em sua viagem ao Brasil. O velho senhor de olhos verdes e barbas brancas era ninguém mais ninguém menos que o Imperador Pedro II.

MULHERES INTERESSADAS EM CIÊNCIA?

Elizabeth Cary Agassiz (1822 – 1907)

Aquela era a segunda palestra que Agassiz dava no Rio de Janeiro. Na primeira, havia duas semanas, havia sido quebrado um tabu: fora a primeira vez no Rio que mulheres foram convidadas a participar de uma reunião cientifica. Contudo, no salão, não haviam muitas mulheres, mas já era um começo.

Havia pouco, Agassiz havia perguntado ao Imperador porque as mulheres não participavam dos encontros científicos da corte.  O Imperador não entendeu direito a pergunta, e disse que elas não se interessavam “por estes assuntos”. No entanto Agassiz insistiu, e Dom Pedro assentiu em convidar também as mulheres.

Elas viriam com seus maridos, como era de costume nas festividades da corte. Haviam várias delas segundo o Dr Pacheco Jordão, “muito interessadas” em assuntos científicos. Um pouco incomodadas, segundo Elizabeth Agassiz, pois não sabiam como deveriam se trajar para aquela ocasião. Elas acabaram vindo em pequeno número na primeira palestra. Na segunda, o número já era um pouco maior.

A EXPEDIÇÃO THAYER AO BRASIL (1865-66)

Em suas palestras, Agassiz falou sobre os peixes da Amazônia, que ele viera estudar no âmbito da Expedição Thayer. Esta expedição, financiada em parte pelo milionário americano Nathanael Thayer e em arte pelo governo brasileiro, durou dois anos.  Teve com alvos principais o Rio de Janeiro e o entorno da Corte, e a Amazônia.

Na expedição Thayer vieram alguns cientistas ajudantes de Agassiz, que eram seus alunos nos Estados Unidos. Entre eles estava Charles Frederick Hartt (1840-1878), geólogo americano e futuro fundador do primeiro Serviço Geológico brasileiro, a Comissão Geológica do Império. Como auxiliar de Hartt viera também um jovem aprendiz, Orville Derby (1851 – 1915). Derby,  depois de completar seus estudos de geologia na Universidade de  Cornell, veio para o Brasil auxiliar Hartt em sua expedição. Esta expedição seria a primeira grande expedição geológica financiada somente pelo governo imperial. Entretanto, com a morte de Hartt em 1877 e o fim da Comissão Geológica, Derby ficou por aqui até o fim da vida. Foi um dos maiores geólogos brasileiros, com uma vasta obra em termos científicos e primeiro diretor do Serviço Geológico Brasileiro, já na República. Mas isso são outras histórias…

A Expedição Thayer era um presente de Natanael Thayer para seu amigo Agassiz. Agassiz foi um professor importante da Universidade de Harvard. Todavia, nos últimos anos, dedicara-se a construir o Museu de Zoologia daquela universidade. Era um cientista poderoso e popular.

AGASSIZ: CRIACIONSMO E GELO

No entanto, Agassiz estava desgostoso nos Estados Unidos. Lá, começava a ter alguns contratempos. Agassiz era o defensor de uma teoria criacionista e poligênica, que negava veementemente os indícios da nascente teoria da evolução de Darwin. Embora ainda poderoso e popular, ele começou a enfrentar resistências entre seus jovens alunos e alguns eminentes colegas, como o biólogo Asa Grey (1810 – 1888) e o geólogo James Hall (1808 – 1898), o criador da Teoria Geossinclinal.

Todavia, Louis Agassiz viera ao Brasil para recuperar sua saúde e sua paz de espirito e fazer pesquisas. Contudo, ainda muito jovem, fora o primeiro a determinar a existência de uma “era do gelo” na Europa e América do Norte. Seus dados e sua interpretação sobre as glaciações do que hoje chamamos de Pleistoceno foram muito importantes para o entendimento da história da Terra.

O FRACASSO DE AGASSIZ NO BRASIL

uma das fotos tiradas por Agassiz no Brasil, para ilustrar suas teses racialistas. Entretanto, os negros e índios brasileiros foram mais complexos que as ideias do cientista, que não deu seguimento à pesquisa

Agora, no entanto,  Agassiz viera ao Brasil para provar que a sua teoria de uma grande glaciação se aplicava também à América do Sul. Da mesma forma, viera para provar outra teoria: que a miscigenação racial formava o que se chamava de raças degeneradas. Tanto um quanto outra não prosperaram: geólogos brasileiros, como o Barão de Capanema (1824 – 1908), ousaram afrontar o grande sábio e mostraram que os depósitos glaciais das serranias cariocas eram produtos de depósitos torrenciais recentes.

Todavia, a teoria racial de Agassiz jamais foi divulgada. Recentemente, uma mostra das “fotografias secretas” de Agassiz foi mostrada no Brasil. Nela, as inúmeras fotos de índios e negros nus, que serviriam para provar que as raças no Brasil estariam se degenerando. Entretanto, a realidade era outra, e mais complexa do que as teorias racistas de Agassiz pudessem imaginar.

EDUCAÇÃO FEMININA E MIMIMI

Contudo, naquela noite de junho,  as damas da corte estavam assistindo pela primeira vez a uma apresentação cientifica. Algo começou a mudar. Cerca de dez anos depois, ainda timidamente, a educação feminina já ousava ir além das prendas domésticas. Jornais discutiam a teoria da evolução para mulheres. Desta forma, uma destas fontes de divulgação foram as cartas do jornalista Rangel S. Paio no Vulgarizador, jornal sobre temas científicos que saiu no Rio entre 1870 a 1880.

Carlotta Maury no Laboratório de Paleontologia em Cornell (NY), data desconhecida (Arnold, 2014)

Ainda iria demorar para que as mulheres pudessem estudar numa faculdade e ter carreira acadêmica. Como, naquela época, fez a norte americana Carlota Joaquina Maury, que nós já discutimos aqui. Mimimi, dizem alguns hoje em dia quando as mulheres protestam por seu espaço na sociedade. Quem viveu estas experiencias sabe que nunca foi nem é fácil.

Uma breve espiadela naquela reunião cientifica no Rio de Janeiro Imperial expõe um grande abismo existente em nossa sociedade. E olhe que nem falamos dos escravos, que tanto impressionaram Louis e Elizabeth Agassiz em sua estadia no Rio de Janeiro.

Naquele mesmo ano de 1866 em que Louis e Elizabeth Agassiz estiveram no Rio, numa das travessas da cidade, uma mulher negra vendia comida na rua. Estava vestida de roupas africanas e colares de miçangas coloridas. Com um turbante branco na cabeça, fumava um cachimbo e olhava feliz para as crianças que brincavam ao seu redor. Aquela mulher anônima na noite carioca não poderia ser uma trisavó de Marielle Franco? Ou então, de uma cientista importante, como Sônia Guimarães  ou Anita Canavarro?

Viva o Povo Brasileiro!

Política e Ciência: Newton morde a maçã

Não se pode pensar Ciência sem Política. Ciência pressupõe pesquisa, busca, invenção. Politica significa antes de mais nada fazer escolhas. No mundo em que vivemos, uma convive com a outra, se interconecta com a outra. No Brasil também sempre foi assim, com as suas peculiaridades. Existem muitos problemas a serem resolvidos e enfrentados usando ciência e usando política. Isso é fazer política. E isso também é fazer ciência.

CIÊNCIA, NEWTON E A MAÇÃ

Uma maçã caindo no chão é somente uma maçã. Para que essa maçã vire ciência, é preciso Newton observando a maçã cair. Para que Newton observe a maçã cair e isso vire ciência, Newton precisa subir no ombro de gigantes: isso pressupõe escolas, professores, despesas com educação. E isso é política: escolhas que devemos ter sobre quais escolas, quais professores e qual financiamento devermos controlar para que possamos ter Newton vendo a maçã cair e isso vire ciência.

Newton e a maçã: uma alegoria (e uma lenda) da Ciência…

Você não precisa de ciência para viver. Isso é uma escolha. Política. Podemos viver naturalmente, tendo o que a natureza nos dá. Alguém se habilita? Nós também não precisamos fazer Ciência. Se tivermos recursos, comprar ciência, comprar tecnologia. Como fizemos no passado, podemos vender borracha e comprar pneus. Vender ferro e comprar navios. É uma escolha política sem muitos riscos. Claro que continuaremos pobres. Alguns, que possuem o seringal e a mina de ferro, viverão confortavelmente. Aos demais, restará o trabalho duro e uma subsistência difícil. Mas, como sempre, é uma escolha política da ciência que queremos ter em nossas vidas.

QUE CIÊNCIA QUEREMOS?

Mas, e se nós quisermos ter Ciência? Ciência de verdade? Que tal não viver com a lenda de Newton e a maçã, a qual, como já mostraram seus biógrafos, não passa de uma lenda? O que precisamos para ter nosso próprio desenvolvimento cientifico? O que precisamos para vencer nossos problemas de educação, saúde, produção industrial, produção intelectual?

Não existe milagre na ciência. Ciência requer trabalho. Leitura, estudo, experiencia. Como recentemente disse uma colega, horas-bunda na cadeira. E isso requer que tenhamos pessoas que façam isso como profissão. Pessoas que possam cada vez mais viver disso. E que tenham condições de fazer suas pesquisas, discutir livremente os seus resultados e suas ideias com outros cientistas, com os políticos, com a sociedade.

QUE CAMINHOS TRILHAR?

Todos os países que tem um nível razoável de vida para seu povo fizeram e fazem isso. A Inglaterra, desde o século XVIII tem uma cultura de manutenção e financiamento de pesquisas. A Alemanha, desde que era Prússia, reformulou a sua universidade a partir de 1811 e num século deixou de ser um país atrasado que era para se tornar uma potencia mundial.

No século XX tivemos a Coreia, um país pobre e arrasado por guerras. Em 1960, os índices de vida e renda da Coreia eram inferiores aos do Brasil. No entanto, o país investiu firmemente em educação e hoje é uma das principais potencias industriais do planeta.

Tudo isso são escolhas. Tudo isso é política. A forma como escolhemos nossa Ciência, por outro lado, impacta nossa maneira de ser e estar no mundo.

O BRASIL CONSTRÓI SUA CIÊNCIA

Nos últimos 100 anos, o Brasil também investiu em ciência. Neste tempo, erradicamos diversas doenças de nossas cidades. Ainda falta muito, mas a medicina brasileira progrediu. Hoje, conquistamos, com ajuda da ciência, solos que até então não eram férteis, e os fizemos produzir. Se hoje há agronegócio no Brasil, é porque houve pesquisa agropecuária, é porque houve a Embrapa.

No início do século XX, éramos um país que não conseguia se desenvolver porque não tínhamos fontes de energia suficientes e boas. Hoje, graças ao esforço de varias gerações de geólogos, temos uma reserva de petróleo das maiores do Mundo, a qual só é possível explorar com altíssima tecnologia.

Tá OK. Mas e a parte vazia deste copo?

Ainda precisamos avançar. Como ter uma indústria competitiva e inovadora? Como ter uma Ciência de alto impacto? Como resolver os grandes problemas de nossa sociedade, como saúde, segurança, trabalho? Como resolver isso?

POLÍTICA E CIÊNCIA. CIÊNCIA E POLITICA

Precisamos de uma politica que invista mais, e não menos, em ciência. Se queremos realmente um futuro, devemos plantar as sementes hoje. Investimos pouco, e mal. Nossa despesa com ciência em 2015 (um ano ainda “rico”) foi de U$199 dólares por habitante. Empatamos com a Turquia. Perdemos feio para os países do Leste Asiático, Europa, América do Norte.

E isso apesar de termos uma das maiores comunidades cientifica da América Latina. Uma comunidade briosa, que vem aumentando sua participação no quinhão da ciência nos últimos 15 anos. Mas que, como uma flor sensível, ainda corre sérios riscos.

A participação publica vem diminuindo sua participação no financiamento da ciência desde 2015. E a política, que poderia trazer soluções, só nos tem trazido pesadelos. Claramente, ciência e a tecnologia não são prioridade de governo. As ameaças vêm de todos os lados.

PARA ONDE VAMOS?

Há os que sonhem com uma ciência sem estado. Houve o assessor de um candidato que chegou a dizer que “as pessoas subestimam o poder da filantropia”. Com isso, o douto senhor está nos dizendo que a contribuição privada para a ciência era uma fonte que nós não exploramos direito. Por outro lado, o financiamento privado é hoje irrelevante no financiamento da ciência.

Entre os candidatos a presidente, qual deles menciona em seu programa a palavra ciência? E dos que o fazem, quais deles confundem ciência com ensino? Embora sejam parceiras, ciência e educação são coisas distintas, com pautas necessidades distintas. Não se faz ciência tirando dinheiro do ensino.

A política vai ditar a ciência que queremos. Será que vamos escolher seguir um caminho de mais financiamento e uma busca maior de eficácia na resolução de nossos problemas? Ou será que vamos achar que não precisamos fazer ciência?

São Heisenberg, rogai por nós!

O MUSEU, VOCÊ E EU

UMA TRAGEDIA ANUNCIADA

Todos estão chocados e boquiabertos com a tragédia do Museu Nacional. O incêndio, que durou somente algumas horas, destruiu um patrimônio que levou mais de 200 anos para ser juntado. Em termos do valor que se perdeu, como muitos disseram, não há como calcular. É como se perdêssemos a maior parte de nossa memória de uma vez, de maneira irrecuperável. Podemos usar os fragmentos, podemos começar tudo de novo a juntar mais memória. Mas a que se perdeu, se perdeu.

As chamas consumindo o valiosíssimo acervo do Museu Nacional no Rio

Outros ficam chocados com as condições do Museu. Soubemos, pela imprensa, que o Museu Nacional estava sem recursos. Estava sem condições de sobreviver, o que fazia de maneira precária. Só faltava, mesmo, um acidente para acontecer a tragédia. E e tragédia veio, em sua forma mais cruel, na forma de um incêndio. O incêndio do Museu Nacional é, sem sombra de dúvida, somente mais uma das tragédias anunciadas de nossa cultura.

OUTROS INCÊNDIOS

Outros ainda lembram de incêndios recentes que destruíram parte significativa de nosso patrimônio cultural: Museu da Língua Portuguesa (2015), Instituto Butantan (2010), Memorial da América Latina (2013) e Cinemateca (2016). Sem contar o incêndio do MAM em 1978, que destruiu boa parte de um acervo riquíssimo.

Os incêndios são fenômenos aleatórios. O que define nossa resiliência a eles é nossa capacidade de enfrenta-los. O mesmo fogo, num museu com estrutura, não passaria de uma queimadura leve, dessas vermelhidões de sol na pele. No entanto, nosso descaso e falta de preparo fazem com que qualquer fagulha cause uma tragédia de grandes proporções,

POR QUE OS MUSEUS PEGAM FOGO?

Segundo os especialistas, acidentes nestas instituições tem como causa deficiência orçamentária, infraestrutura precária e equipes de trabalho especializada com numero abaixo do numero ideal. Nossas instituições de uma forma ou de outra, sempre tem um ou mais desses problemas. Na Unicamp, só para dar um exemplo, tivemos, uma grande discussão recente sobre estes temas. Embora algumas soluções provisórias tenham sido alcançadas, a maior parte delas continua sem solução.

Mas o que me deixa mais triste não é a aparente falta de visão dos governantes, O que me deixa mais triste é saber que a falta de visão dos governantes reflete um quadro ainda mais sombrio: vivemos numa sociedade inculta e que não vê um valor na cultura. Por isso, nossos museus são poucos, precários e vazios.

O INCÊNDIO E A REVOLTA

A nossa população não cobra dos governantes cuidado com a memória. Os motivos são os mais diversos, e é claro que a falta de cultura não é um projeto dos explorados, mas dos exploradores. Mas é importante salientar que somos sim, por ação ou omissão, um povo que, por falta de cultura, não se importa em fazer dela um valor. Este círculo vicioso faz com que nossa rica cultura se perca, se esvazie, se deteriore. Ou se queime.

A pesquisadora Aparecida Vilaça escreveu que, ao ver o esqueleto do museu destruído pelas chamas, ela viu a imagem de alguém se imolando, ou seja, alguém que coloca fogo no próprio corpo em protesto. Uma revolta por tantos anos de maus tratos e descaso. As imagens que circularam eram cruéis, mostrando as cenas de desolação causadas pelo fogo.

Quem sabe se a imolação do Museu Nacional faça com que nossa visão sobre os museus, os institutos de pesquisa e arte sejam mais valorizados. Que as pessoas tenham por hábito visitar Museus, Exposições e Centros de Cultura. E que esse hábito possa fazer com que a população cobre de nossos governantes o respeito que nossa Cultura merece.

OS POLÍTICOS NÃO TEM VISÃO?

Vi também que poucos candidatos à presidência tem um programa de cultura. Existem candidatos que afirmaram que a tragédia “agride a identidade nacional” e disse também que “é dever resgatar o compromisso de zelar permanentemente” pela preservação do patrimônio. Mas, quando foi governo, este mesmo candidato deixou estas instituições à míngua.

Outro candidato ainda, quer relegar a Cultura ao status de Secretaria em seu governo. Não se pode acusar este candidato, aliás bem posicionado nas pesquisas, de incoerente. Em seu programa, realmente, ele não faz qualquer referência à Cultura. Na certa, se alguém falar a ele sobre Cultura, ele puxa o revólver…

A TRAGEDIA DA NOSSA CULTURA

Estes políticos dizem essas leviandades porque nós os autorizamos. Nós não nos importamos, sejamos francos. Nós não valorizamos a nossa própria cultura. Por isso, pense sobre o que você e eu estamos fazendo com a Cultura em nosso país. Pense no quanto você defende isso como uma política, como uma ação efetiva. E pense o quanto nós cobramos de nossos governantes ações efetivas a este respeito. E faça. Façamos.

Da mesma forma, vá a museus, visite exposições. Participe de atividades de crowfunding cultural. Valorize quem trabalha com a Cultura. Valorize-se.

Ou queime, inapelavelmente, como todos nós brasileiros nos queimamos, nas chamas da Quinta da Boa Vista.

Não há segunda chance para um povo sem memória.

A Morte no Gelo

Estação polar moderna, similar às estações onde Alfred Wegener viveu e onde finalmente morreu

A brancura do ambiente era total. Alguns pontos escuros na paisagem eram a exceção. Trenós mecanizados e também os puxados com cachorros cortando o gelo eram pontos atravessando a meseta central da Groenlândia.

Dois riscos pretos bem pequenos apareceram ao fundo no horizonte. Ao chegar mais perto, os homens dos trenós viram que eram dois esquis num montículo de neve. Ao escavar o montículo, surgiu o cadáver que eles tanto procuravam e não queriam encontrar. As buscas acabaram. Alfred Wegener, o chefe daquela expedição e um dos maiores cientistas do século, estava oficialmente morto.

Alfred Lothar Wegener nascera em 1° de novembro de 1880, em Berlim. Era filho mais novo de Ana Schwarz e do pastor Richard Wegener, teólogo e professor de línguas clássicas. Pouco se sabe da infância e juventude de Wegener.  O que se sabe é que, longe da vida pacata e prestigiosa de espiritualidade e leitura de seu pai, o jovem Alfred optou pela aventura e pelas atividades ao ar livre.

Estudou Física, tendo se graduado em 1905. Após sua graduação, ele começou a trabalhar com Meteorologia, principalmente com a utilização de balões atmosféricos. Neste tempo interessou-se pela pesquisa no Ártico.

Alfred Wegener casou-se em 1913 com Else Koppen (1892-1992), filha do grande climatologista russo-alemão Wladimir Koppen (1846 – 1940). Após seu casamento, Wegener tornou-se professor na Universidade de Marburg e dedicou-se às aulas, à pesquisa e à aventura polar. Não necessariamente nesta ordem.

NO MEIO DO GELO

Em 1° de novembro de 1930, dia de seu aniversário de 50 anos, Alfred Wegener havia partido em um trenó puxado por cães, juntamente com seu companheiro Rasmus Villumsen. Seu destino era a base de Eismitte (Meio-do-gelo, em alemão) para levar ajuda

Wegener e seu companheiro Villumsen, posando para a viagem da qual não retornariam

para os dois homens que estavam lá fazendo pesquisas. As condições do tempo estavam muito ruins e não havia comunicação entre as bases por rádio.

Somente na primavera do ano seguinte uma equipe conseguiu achar o corpo de Wegener no meio do gelo. Era 8 de maio de 1931. Provavelmente Wegener morreu no caminho e Villumsen enterrou o companheiro e prosseguiu a viagem. Villumsen, como era de hábito nestas circunstancias, estava levando os diários de viagem de Alfred Wegener, para salvá-los. No entanto, Villumsen jamais chegou a Einsmitte, e seu corpo jamais foi encontrado.

O EMPINADOR DE PIPAS

Aquela era a quarta expedição de Wegener à Groenlândia. A primeira havia sido em 1906-1908, sob a chefia do Dinamarquês Ludvig Mylius-Erichsen (1872–1907). Neste tempo Wegener fez diversas pesquisas meteorológicas. Boa parte delas era feita soltando balões atmosféricos e pipas. Com isso, varias informações eram obtidas das partes mais altas da atmosfera.

A segunda expedição que Wegener participou foi a liderada por Johann Peter Koch (1870–1928). O objetivo desta expedição eram pesquisas glaciológicas e meteorológicas. Koch e Wegener cruzaram a calota da Groenlândia de Leste a Oeste, num treno puxado por cavalos e pôneis islandeses. Extremamente fatigados, percorrendo um total de 1.200 quilômetros de gelo, eles chegaram finalmente ao destino.

Com a guerra em 1914, Wegener foi convocado para o front, tendo sido ferido duas vezes. Durante sua convalescencia, aproveitou para publicar alguns de seus trabalhos mais importantes sobre Meteorologia.

A EXPEDIÇÃO WEGENER

Alfred Wegener só conseguiu retornar a Groenlândia em 1929, depois que Koch já tinha morrido. Veio para uma expedição de reconhecimento e organização da expedição seguinte, que ele mesmo lideraria. A expedição de 1930-31 foi uma das maiores expedições enviadas para o Ártico até então. Contava com forte apoio do governo alemão e, mesmo num

A expedição no Ártico: os trenós, os pôneis islandeses e os cães. E, claro, também os homens.

ambiente de forte crise econômica e política, teve um bom financiamento.

Desta vez, além dos trens com cachorros e dos pôneis islandeses, Wegener contaria ainda com trenos mecanizados. Uma grande infraestrutura foi armada em diversos locais. Uma das grandes descobertas da expedição de Wegener foi a espessura da calota de gelo da Groenlândia. Através de experimentos de sísmica terrestre, foi possível calcular uma espessura de até 1800 m de gelo em alguns locais.

Existe um filme, editado em 1936, que mostra momentos importantes da expedição Wegener. Ali estão representando a chegada, a montagem dos equipamentos, como os balões meteorológicos. Também estão filmadas as explosões de dinamite nas pesquisas de sísmica terrestre. Mas impressionante é que o filme mostra até mesmo a partida de Wegener e Villumsen para a última viagem de suas vidas.

ALFRED WEGENER E A DERIVA CONTINENTAL

Apesar de ser um bom meteorologista, o nome de Alfred Wegener é mais conhecido, hoje em dia, pelas suas contribuições para a teoria da Deriva continental. Wegener começou a se interessar pelo assunto em 1908, quando começou a ler sobre os trabalhos que correlacionavam a geologia e a paleontologia de diversas partes do globo. Em meio as suas viagens a Groenlândia, ele ainda apresentou um breve resumo de sua teoria em 1912.

A ideia de Wegener foi também sugerida praticamente na mesma época pelo geólogo

Capa da edição inglesa de “origem dos continentes e Oceanos”, a partir da ultima edição alemã de 1929

norte-americano Frank Taylor (1860 – 1938).  Durante alguns anos, a teoria foi chamada de Teoria de Taylor-Wegener.  No entanto, as duas eram bastante diferentes. E a de Wegener foi a que teve mais poder explicativo e permaneceu.

O  livro de Alfred Wegener,  “Die Entstehung der Kontinente und Ozeane“, publicado em 1915 e reeditado em 1922,  foi muito bem recebido. Publicado em inglês em 1922, com o título “The Origin of Continents and Oceans”,  teve sua última edição em alemão revista por Wegener em 1929.

PAPO RETO

A estrutura do livro de Alfred Wegener é bastante simples, com uma linguagem também simples e direta. A discussão sucinta era o produto de muito trabalho de leitura e reflexão. Quando foi preciso, fez um bom uso de metáforas, como quando comparou os continentes a icebergs flutuando no gelo. Em sua pesquisa, Wegener conseguiu enfeixar no livro os mais importantes trabalhos de geofísica, geologia, paleontologia de seu tempo.

Como já disse aqui a professora Frésia aqui no blog, as correlações paleontológicas foram algumas evidências decisivas para a aceitação da teoria. A flora de glossopteris existente no grande continente de Gondwana, já identificado pelo geólogo austríaco Eduard Suess (1831 – 1914), foram argumentos importantes nesta correlação.

Da mesma forma, Wegener empresta de Suess o conceito de sal (silício mais alumínio), que representaria a composição da crosta continental granítica. Essa seria a porção que estaria a deriva num oceano de basalto, o sima (camada de silício mais magnésio). Advertido pela confusão que o termo sal provoca nas linguás latinas, Wegener modifica o conceito para sial, como hoje o conhecemos.

AS PONTES CONTINENTAIS

Através de argumentos que aliavam conhecimentos de geofísica, paleontologia e geologia, assim como dos paleoclimas, a teoria de Alfred Wegener colocou em xeque a teoria das pontes continentais. Essa teoria, já discutida aqui, postulava a existência de terrenos entre os continentes que poderiam ter existido no passado. Através das pontes continentais,segundo a teoria,  é que as faunas dos diversos continentes poderiam ter atravessado de um continente a outro.

Entre os defensores da teoria das pontes continentais  citado por Wegener estava Herman Von Ihering (1850 – 1930), biólogo alemão que veio para o Brasil, onde dirigiu o Museu Paulista de 1894 a 1916. Um estudo de sua vida e sua obra, pelas professoras Maria Margareth Lopes e Irina Podgony, pode ser encontrada aqui.

A AJUDA DO SOGRO

Vale a pena citar a importância de seu sogro Wladimir Koppen para a teoria da Deriva Continental. Koppen, nesta altura aposentado, deu uma importante contribuição para a teoria de seu genro.  O livro que publicaram em 1924 “Die Klimate der Geologischen

A capa de uma edição bilíngue moderna do clássico “Climas do Passado Geologico, de Koppen & Wegener; Veja-se aí o maduro climatólogo e o jovem meteorologista.

Vorzeit (Os climas do passado geológico)” foi decisivo para a discussão dos paleoclimas. Um resumo do livro de Koppen e Wegener está resumido no capitulo 7° da edição inglesa do “Origins of Continents and Oceans”.

Foi também Koppen quem incentivou o iugoslavo Milutin Milankovitch (1879-1958) a publicar a sua hoje famosa teoria dos ciclos solares, conhecidos como ciclos de Milankovitch. Com isso, pela primeira vez havia uma teoria simples e unificada que poderia explicar as glaciações do passado. Provavelmente, sem o apoio de Koppen, um cientista de fama mundial, Alfred Wegener não tivesse tido a atenção que teve.

Depois da morte de Wegener foi Koppen, já octogenário, quem cuidou da reedição dos livros e da revisão cientifica de sua obra. Ao morrer, aos 93 anos, Koppen havia recentemente concluído a que foi  a ultima revisão de “Climas do Passado Geológico“.

UMA TEORIA  REVOLUCIONÁRIA?

Alfred Wegener foi um destes cientistas que não cabem num rótulo. Sua contribuição para a teoria da Deriva Continental foi seminal. Sua contribuição à meteorologia e à exploração do Ártico também foram importantes. Sua capacidade de articular a experiência de campo e a pesquisa também foram notáveis.

A Deriva continental, refutada por tantos e em tantas ocasiões, retornou nos anos 1960 com a Tectônica de Placas. Apesar de ter muito pontos falhos, a teoria de Wegener teve

As Placas Tectônicas, como as conhecemos hoje

uma grande aceitação. Sua simplicidade e originalidade contam muito. A explicação unificadora, que juntava tantas disciplinas numa explicação única também foi muito importante. Mas o espirito analítico de Wegener, seu amplo conhecimento de temas de geofísica e climatologia (daí a paleoclimatologia) foram decisivos.

Alfred Wegener, com a tecnologia da sua época, jamais poderia ter provado a sua teoria. Os avanços da sismologia, da magnetometria e o desenvolvimento da geocronologia depois de sua morte foram decisivos para a comprovação de sua teoria. No entanto, as grandes perguntas de Alfred Wegener pautaram a pesquisa cientifica nestas áreas durante boa parte do século XX. As discussões contidas no “Origem dos Continentes e Oceanos” seriam as perguntas mais

Alfred Wegener fazendo graça

importantes para a comunidade geocientífica no seculo XX.

A morte de Wegener no gelo da Groenlândia foi o fim provável de um grande explorador e aventureiro.

Quase um século depois, seu exemplo de cientista de campo e notável teórico em campos tão diversos como a meteorologia e a geologia nos fazem lembrar de quanto o conhecimento só avança pelas bordas.

Pelas in(ter)disciplinas.

Para saber mais:

Alfred Wegener institut  https://www.awi.de/en.html

McCoy, Roger M. Ending in ice: the revolutionary idea and tragic expedition of Alfred Wegener. Oxford University Press, 2006.

Greene, Mott T. Alfred Wegener: Science, Exploration, and the Theory of Continental Drift. JHU Press, 2015.

A quebra de paradigmas e a idade da Terra

Você sabia que o estabelecimento da Geologia como ciência surgiu com a constatação de que a idade da Terra é avançada, e de que muitos de seus processos naturais levam centenas de milhares de anos para ocorrer? Vou contar um pouco dessa fascinante história…

      “Sem vestígio de um começo, sem perspectiva de um fim” 

James Hutton

Esta frase é icônica do trabalho de James Hutton (1726-1797), um dos primeiros cientistas a pensar sobre a idade da Terra e o tempo envolvido nos processos geológicos, tais quais os reconhecemos hoje.

Hutton em campo, observando rochas com os perfis dos rostos de seus inimigos na ciência.

A concepção sobre uma Terra antiga, na Geologia, surgiu aos poucos. Até meados do século XVIII, a bíblia servia de guia para datas e eventos; por isso, acreditava-se que a Terra não teria que 6.000 anos de idade. A influência religiosa era grande no meio científico. Podemos lembrar que o próprio Darwin (1809-1882) demorou anos recolhendo evidências sobre a sua teoria evolutiva, também por conta de seu receio em revelar suas ideias; isso porque iam contra os valores religiosos na época.

Porquê, você se pergunta, a igreja tinha tal influência na ciência? Era um livro de relatos, muito antigo. Como explicar o mundo e a origem de tudo? Muitos cientistas passaram a usar ciência aliada aos relatos bíblicos, na tentativa de calcular a idade do planeta. Além disso, acredito que fosse imoral pensar que Deus tivesse criado um mundo que pudesse ter espécies de organismos imperfeitas. Espécies que se extinguissem. Qual seria a razão para um ser superior criasse algo que não sobrevivesse “pela eternidade”? Historicamente podemos entrar no debate de que a igreja controlava o poder na época e que o homem era, neste contexto, a principal espécie vivente, sendo que o planeta havia sido criado para ele, por um ser superior.

A quebra do dogma religioso e o reconhecimento de um tempo profundo para a idade da Terra se deu no séc. XIX. Nessa época, as ideias de Darwin e Lyell (que viveu entre 1797-1875 e era seguidor de Hutton) se alinharam para explicar os fenômenos observáveis na natureza orgânica e inorgânica (tanto na vida e sua evolução, quanto nos eventos geológicos).

É neste momento que se retira do homem o papel de espécie “mais desenvolvida”. Os princípios da evolução biológica, associados com a necessidade de uma Terra muito antiga, colocam o homem como mais uma espécie dentre centenas de milhares, quebrando assim, pelo menos em parte, a forte influência religiosa na ciência. Mark Twain relata essa quebra com uma analogia que considero fantástica, e traduzo de forma livre, a seguir:

“O homem está aqui há 32.000 anos. Que tenha levado 100.000 anos para preparar o mundo para sua chegada é uma prova irrefutável de que o mundo em si foi criado para isso. Suponho isso, não sei. Se a torre Eiffel representasse agora a idade da Terra, a camada de tinta de seu pináculo representaria a presença do homem na Terra; e todos iriam perceber que aquela casquinha de tinta representa a razão pela qual toda a torre foi construída. Eu concluo isso, não sei”.

Outra metáfora sobre a vastidão do tempo e a presença do homem na Terra é a de John McPhee, também traduzida livremente a seguir:

“Considere a história da Terra como a antiga medida de jarda inglesa, a distância do nariz do rei até a ponta de seu dedo, com o braço estendido. Uma lixada na unha de seu dedo médio e toda a história humana é apagada”.

Podemos dizer que Hutton e Lyell, observando os fenômenos do dia-a-dia da natureza e também eventos catastróficos preservados em rochas, foram capazes de predizer o que seria confirmado alguns anos mais adiante. Afinal de contas o processo de datação radioativa, que é o que fornece a idade real das amostras de rochas, só veio a ser desenvolvido no início do séc. XX. Assim como Darwin, Hutton e Lyell coletaram uma série de informações para corroborar as suas ideias de que a Terra era muito mais antiga da que retratava a bíblia. Mas os números, aqueles “4,5 bilhões de anos” que ouvimos falar sobre a idade do nosso planeta (e que chamamos de idade absoluta), só veio à tona alguns anos depois.

De acordo com alguns filósofos da ciência, como Thomas Kuhn (1922-1996), a ciência caminha exatamente assim. São anos de trabalho na “ciência comum”, acumulando conhecimento, para que, de “uma hora para outra”, os paradigmas científicos sejam quebrados, e novas ideias passem a vigorar.

Retirar a espécie humana de seu pedestal não foi tarefa fácil. A ciência progride a passos lentos, delimitados por momentos de grande revolução; além disso, está sempre enroscada no emaranhado contexto social, econômico, religioso e emocional em que cada um dos cientistas (pessoas), se inserem.

 

 

Onde encontrar mais informações sobre Hutton e a concepção do tempo profundo:

Clique aqui para ser direcionado a uma matéria na página do Smithsonian Institute.

Relembre o nosso primeiro post sobre o tempo profundo
Livros utilizados para este post:
Decifrando a Terra
Time´s arrow, time´s cycle