Arquivo mensais:agosto 2017

O Monstro do Pleistoceno e o filho de Chica da Silva

Uma coisa estranha aconteceu na lavra de ouro do Padre Lopes. Durante as escavações para retirada do cascalho, começaram a aparecer uns ossos muito grandes. Contudo, tão grandes eram os ossos, que os escravos a princípio acreditaram tratar-se de um grande tronco enterrado. Desta forma, os ossos estavam difíceis de ser retirados intactos, e foram quebrados com pás, picaretas e enxadas. Da mesma forma, começaram a aparecer cabelos e foram achados também dois dentes de um animal muito estranho. Seria um monstro? Assustados, os escravos pararam a escavação e chamaram o capataz, que também ficou assustado com o que viu.

Dentes de mastodonte encontrados em Nova York no século XVIII. Seriam similares aos do Monstro de Prados?

Corria o mês de maio do ano de Nosso Senhor de 1785. Este fato aconteceu na região de Prados, na Comarca do Rio das Mortes. Todavia, os moradores informaram o Governador da Capitania, D. Luís da Cunha Menezes, sobre o achado. Assim, o governador Dom Luiz, tomado de grande curiosidade, enviou ao local um dos seus mais competentes naturalistas, Simão Pires Sardinha. Sardinha esteve na lavra do Padre Lopes e investigou a ossada ainda naquele ano. Depois de analisar a lavra e coletar ossos, dentes e cabelos,  elaborou um relatório (naquela época dizia-se memória) sobre aquele estranho material.

“UNS OSSOS MUITO ESTRANHOS”

Esta memória intitulou-se “Descripção de huns Ossos não conhecidos, que apparecerao em Mayo de 1785 na Cappitania de Minas Geraes do Estado do Brazil”.  Foi enviado a Portugal possivelmente junto com os materiais coletados. São conhecidas duas cópias da Memória de Simão Pires Sardinha. A primeira está no Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa. A segunda, no Arquivo Histórico do Museu Bocage/Museu Nacional de História Natural da Universidade de Lisboa. Já os materiais coletados foram extraviados, e não se tem ideia onde estejam atualmente. Mais informações pode ser encontradas no interessante artigo de Antônio Carlos Fernandes e colaboradores (aqui).

Pelo tamanho dos ossos encontrados, Sardinha estima que o animal deveria ter algo entre 46 e 56 palmos de comprimento (cerca de 10 a 12 m). Assim, Descreve também dois dentes encontrados no sítio de Prados: “Estes dentes não são de animal conhecido no Brasil, pode ser que sejam de algum animal, que pelas revoluções do tempo se tenha perdido a sua espécie”. Os cabelos, segundo sua descrição, pareciam de seres humanos. Como estes materiais foram encontrados juntamente com resíduos de espécies recentes, como jacarandá e pinheiro do Brasil, levam Sardinha a concluir que se tratava de um ser humano de extraordinária dimensão, um “gigante de quarenta palmos em razão dos dentes pela boa osteologia”.

Supõe-se que o “gigante” de Simão Pires Sardinha, também conhecido como “O Monstro de Prados”, era provavelmente um mastodonte (para uma discussão contemporânea: aqui). Para Sardinha, naquela época e naquelas circunstâncias, qualquer solução diferente era muito difícil (para saber como é hoje: ver aqui).

O REI MASTODONTE

Uma ossada de mastodonte encontrada no século XVII  num depósito de cascalho na França foi durante muitos anos descrita como a ossada do “Rei gigante” Theotobhucus, antigo rei dos povos germânicos. Outra ossada, descoberta em 1705 nos aluviões do rio Hudson, no estado de Nova Iorque foi durante descrita na época como o “Gigante de Claverack”, nome da localidade onde foi achado ( ver aqui ).

Os Gigantes descritos por Athanasius Kircher no “Mundus Subterraneus” (1678)
Os Gigantes descritos por Atanasius Kircher no “Mundus Subterraneus” (1678)

Havia, na época, uma crença de que a Terra era uma ruína, lugar decaído e sem forças. Na sua infância, antes do Diluvio universal, a terra chegara a ser habitada por gigantes, como havia mostrado Athanasius Kircher (1601-1680), Jesuíta e um das maiores estudiosos de História Natural de seu tempo. Os grandes esqueletos achados sob os aluviões supostamente pertenciam a estes gigantes antediluvianos. Outra explicação para esqueletos de elefantes era que pertenciam a animais que vieram da África com Aníbal e outros conquistadores.

A solução para o problema de Sardinha veio dez anos depois que ele escreveu sua Memória. Em 1º Pluviose do 4ºAno da Revolução Francesa (26 de janeiro de 1796) Georges Cuvier leu na sessão do Instituto Nacional de Ciências e artes de Paris uma memória que dava uma outra solução para o problema.

A memória de Cuvier intitulava-se “Mémoire sur les espéces d’Élephants tant vivents que fossiles” [Memória sobre espécies de elefantes tanto vivas quanto extintas]. Nele, Cuvier explica que o mamute era uma espécie distinta do moderno elefante. Distinta e extinta. E começa a surgir a Paleontologia de vertebrados como conhecemos hoje.

Geroges Cuvier, Paleontólogo Francês (1769-1832) e seus desenhos de mandíbulas de mamute (acima) e de elefante moderno (abaixo)
O INICIO DA PALEONTOLOGIA NO BRASIL

Boa parte dos escritos sobre a história da Paleontologia de vertebrados no Brasil está ainda focada somente em escritos de Naturalistas estrangeiros, após a chegada da família real em 1808. No entanto, estes relatos ignoram uma realidade muito rica e interessante, que é o desenvolvimento das ciências no Império Português sob o impulso das reformas de Pombal.

A segunda metade do século XVIII foi marcado por um grande esforço cientifico por parte dos naturalistas do império português (para saber mais: aqui) . Muitos destes naturalistas eram nascidos no Brasil. O mais famoso deles, é, sem dúvida, José Bonifácio. No entanto, existem outros, muitos outros, que merecem ser lembrados. Um deles, por sua singularidade e por sua história de vida, merece particularmente ser lembrado: Simão Pires Sardinha.

O FILHO ALFORRIADO

Simão Pires Sardinha nasceu escravo, em 1751. Seu pai, o comerciante português Manoel Pires Sardinha somente libertou o menino que teve com a escrava Francisca Parda na pia batismal, como era o costume na época. Entretanto, pouco tempo depois, sua mãe foi vendida para outro comerciante português, João Fernandes de Oliveira.

João Fernandes logo alforriou Francisca e passou a viver maritalmente com ela. A escrava Francisca Parda passou então a se chamar Francisca da Silva e Oliveira, nome com que se assinava. Para a história, ela hoje é conhecida como Chica da Silva, a “Chica que manda”, uma das grandes senhoras do Distrito Diamantino no século XVIII. O casal teve 13 filhos, sem contar o pequeno Simão.

A casa de Francisca da Silva, a Chica da Silva, em Diamantina (MG). Nesta casa Simão Pires Sardinha viveu sua infância.

Tendo recebido a herança paterna, Simão foi com o padrasto João Fernandes para a Europa. Graduou-se em artes em Coimbra. Foi cavaleiro da ordem de Cristo, a mais alta distinção concedida pelo reino para não-nobres. Para isso, teve que forjar o inquérito ao omitir o fato de sua mãe ter sido escrava. Na sociedade aristocrática da época, origens “nobres” eram o requisito para ser aceito. O dinheiro, que Simão possuía, era a outra.

SIMÃO PIRES SARDINHA E A POLITICA NO BRASIL

Voltou ao Brasil com o governador Luís da Cunha Menezes, por quem tinha grande admiração. No entanto, viver num pais de analfabetos fazia com que os escassos letrados que aqui viviam tivessem que ocupar muitas funções diferentes. Desta forma, além da ocorrência de Prados, Simão Sardinha foi também responsável pela captura do ex-Intendente dos Diamantes, José Antônio Meireles, o Cabeça de Ferro. Contudo, o Cabeça de Ferro fugia para Portugal com ouro supostamente roubado da administração, e foi preso por Sardinha antes de chegar ao Rio. Assim, com tantas e disparatadas atividades, muitas carreiras cientificas podiam ser facilmente desviadas para as necessidades da burocracia estatal. Esta foi nossa realidade durante muito tempo ainda.

Sardinha teve ainda participação na Inconfidência Mineira. Ao que tudo indica, Simão Pires Sardinha compartilhava dos ideais iluministas, embora soubesse jogar o jogo do Portugal aristocrático e absolutista. Desta forma, de volta a Portugal, contou no inquérito a que foi submetido ter sido procurado pelo alferes Joaquim José da Silva Xavier. O Tiradentes procurou Sardinha para que este traduzisse para o alferes um texto da Constituição Americana. Texto subversivo, por certo. No entanto, Simão não sofreu nenhuma condenação e continuou vivendo em Portugal. Assim,  graças a sua amizade com D. João VI, conseguiu ajudar seus meios-irmãos que ficaram no Brasil.

CIÊNCIA NA AMERICA PORTUGUESA?

Simão Pires Sardinha morreu em Portugal em 1808. Ironicamente, segundo muitos historiadores da ciência, foi a partir deste ano que começou a Ciência no Brasil. Contudo, a Memória de Sardinha demostra que não. O fato é que a Memória do Monstro de Prados é o mais antigo documento que trata do tema Paleontologia em território brasileiro. É nossa certidão de nascimento.

Entretanto, a descrição de Simão Pires Sardinha está de acordo com o conhecimento da época. Sua trajetória de vida indicam as dificuldades para se ter uma carreira em ciências no Brasil. Contudo, se era difícil no império Luso-americano dos setecentos, continua difícil ainda hoje, no Brasil do século XXI ( veja e chore aqui) ). Um tema moderno no pais de Temer.

A trajetória pessoal de Sardinha liga a Paleontologia dos Vertebrados à Chica da Silva. Não é para qualquer um.

Para saber mais:

Furtado, Júnia Ferreira. Chica da Silva e o contratador dos diamantes: o outro lado do mito. Editora Companhia das Letras, 2003.

Semonin, Paul. American monster: How the nation’s first prehistoric creature became a symbol of national identity. NYU Press, 2000.

Rudwick, Martin JS. The meaning of fossils: episodes in the history of palaeontology. University of Chicago Press, 2008.

Água de coco desde o Cretáceo acalmando a sede?

http://www.vix.com/pt/bdm

Na semana passada estive estudando fósseis no Ceará e estava quente, mas nada que uma refrescante água de coco gelada não ajudasse a acalmar, como no verão de Campinas quando, em janeiro, a temperatura chega próximo aos 40oC. Assim, enquanto bebia minha água de coco em Fortaleza, fiquei pensando na origem das palmeiras: quando foi mesmo que elas surgiram? Será que tem fósseis de coco da Bahia? Onde?

Após pesquisar descobri, que os registros mais antigos de palmeiras datam do período Cretáceo. São grãos de pólen sulcados, com uma ou mais aberturas longitudinais (por exemplo Mauritiidites), como os hoje encontrados na Família Arecaceae, à qual pertencem todas as palmeiras. Atualmente esta família possui uma distribuição cosmopolita, com aproximadamente 2.000 espécies agrupadas em 90 gêneros, dentro dos quais se destacam árvores, ervas com rizomas e alguns cipós. A maioria das Arecaceae hoje habita em regiões quentes e úmidas do planeta. No final do Cretáceo (70 milhões de anos no passado) eram plantas muito comuns nos hemisférios norte e sul, tanto que seus pólens são os elementos característicos da “Província Florística Palmae”, constituindo um 50% dos pólens encontrados nas assembleias. Assim, as palmeiras estão entre as monocotiledôneas mais antigas conhecidas. Os domínios da Província Palmae se estendiam desde o Sul da Argentina (dá para imaginar a Patagônia com um clima quente?) até o norte da América do Sul (hoje a Venezuela) e por grande parte da África, Índia (que no Cretáceo estava próxima do leste da África), e as costas do Mediterrâneo.

Pólen atual de uma palmeira.

Esta Província era caracterizada por uma vegetação diversificada e tropical. Além de pólens de palmeiras também foram encontrados folhas, frutos, folhas, lenhos e até flores. Como exemplo de fruto, foi descrito um exemplar de coco no estado de Pernambuco, encontrado associado com rochas da Formação Maria Farinha do Paleoceno. Outros cocos fósseis foram descritos nessa mesma idade na Índia, Argentina e Colômbia.

Já no início do Paleoceno (65 a 55 milhões de anos no passado) os fósseis de palmeiras são encontrados por todo o planeta. Eles são uma das evidências de que durante esse período do tempo geológico a Terra experimentou um regime climático quente e úmido, conhecido como Ótimo Termal, pois as palmeiras só podem habitar em climas onde a temperatura do mês mais frio não cai abaixo dos 5 a 7oC. Por exemplo, para Alberta, no oeste do Canadá, foram descritas grandes folhas de palmeiras que poderiam ter habitado em um clima mais ameno que o hoje encontrado nessa região do planeta. Dessa forma, acredita-se que durante o Paleoceno a temperatura caía pouco até os 50º de latitude.

Sim, como vocês estão pensando, as palmeiras foram contemporâneas dos dinossauros, inclusive tem sido encontrados locais nos quais foram preservados pequenos coquinhos associados a ossos desarticulados de dinossauros ceratopsídeos. Assim, vemos que as palmeiras sobreviveram a uma das maiores extinções do planeta Terra (aquela do limite Cretáceo – Paleógeno) e chegaram até os dias de hoje, ajudando a acalmar a sede… será que o mesmo aconteceu com os dinossauros ou com os mamíferos que surgiram no Paleógeno?