A Incrível Sociedade dos Microrganismos


ResearchBlogging.orgÉ bem óbvio que um ser humano não existiria sozinho. Não só porque ele não poderia ser gerado, mas porque dificilmente conseguiria sobreviver. Já reparou na quantidade de pessoas que permitem (e permitiram) que você tivesse o dia de hoje como você tem? Cada parafuso, tecido, metal, tijolo e etc que permite você estudar, trabalhar, andar de automóvel, comer e ler esse texto foram pensados, feitos, montados, transportados e vendidos por alguém. Não é possível portanto tentar entender os humanos, bem como a maneira com que eles se comunicam, isoladamente. É preciso olhá-los sistemicamente, como seres sociais. As bactérias também. É cada vez mais reconhecido que as bactérias não existem como células solitárias, mas são como um “organismo colonizador” que elabora complexos sistemas de comunicação que facilitam a sua adaptação às recorrentes mudanças ambientais. E elas nascem poliglotas. A seleção natural esculpiu em diferentes espécies diversos genes que as permitem se comunicar cooperativamente e repressivamente entre espécies e até mesmo entre reinos (como por exemplo em bactérias patogênicas). Damos à essa comunicação bacteriana o nome de “quorum sensing” (“detecção em quórum” – tradução livre).

Quorum Sensing

O termo “quorum sensing” foi cunhado devido à habilidade dos microorganismos expressarem ou aumentarem a expressão de certos genes quando em grande população, podendo dessa forma monitorar a densidade celular (quantidade de células ao seu redor) antes de manifestar algum fenótipo. Um dos exemplos mais ilustrativos disso é da Dictyostelium discoideum, um protozoário que passa uma das fases do seu ciclo de vida produzindo um corpo multicelular. Tem um vídeo bem legal mostrando a formação de um corpo de frutificação através de várias células individuais de Dictyostelium:

[youtube_sc url=http://www.youtube.com/watch?v=vjRPla0BONA]
Reparem rapidamente em 00:30 min as células se locomovendo em “pulsos”, na direção de um local em que todas estão se agregando (é difícil de perceber!). Esse local inicial é em geral onde um grupo de bactérias encontrou alguma fonte de nutrientes. A “pulsação” da locomoção das bactérias acontece devido à substância de quorum sensing que é difundida pelo espaço vinda das células do local de agregação; um pulso inicial provoca – quando em uma população não muito grande, para ser perceptível – um comportamento oscilatório de resposta das células: quando uma célula recebe um sinal (do tipo “Ei, tem comida aqui!”), ela emite um de volta (como se etivesse gritando “Caramba, tem comida lá!”), que é recebido pelas células que mandaram o sinal incialmente (o que seria um “Ótimo! Estou indo praí!”) e por outras ao seu redor, propagando o sinal. Como a transmissão de informação com as substâncias não é imediata e nem totalmente contínua, observa-se os “pulsos”, que são resultado do “gap” entre enviar e receber informações pela difusão de moléculas.

As diferentes Línguas das bactérias

Tabela com exemplos das diferentes famílias de substâncias de QS, as diferentes "línguas" das bactérias. Imagem modificada de S. Atkinson e P. Williams (2009) e de Y. He e L. Zhang (2008). Referências no final do post.

As “línguas”, ou simplesmente certas coisas que as bactérias querem “dizer” (como “Estou afim de dar uma reproduzida!” ou “Fujam, eles estão vindo!”) são “ditas” através de diferentes tipos de substâncias que os microorganismos produzem. No caso da Dictyostelium ali em cima, a substância é AMP cíclico (é quase um ATP, só que duas vezes menos fosfatado… e cíclico, é claro), mas se tratando de bactérias – que ainda é a principal plataforma de aplicação da Biologia Sintética – existem três tipos principais de substâncias de quorum sensing: as acil-homoserinas lactonas (HSL ou AHL), auto-indutores 2 (AI-2) e pequenos ácidos graxos, chamados de “DSF”s (Diffusible Signal Factor – do inglês: Fator Sinalizador Difusível). Existem ainda outras famílias de substâncias de QS, mas aparentemente menos comuns que essas três principais.

O Mecanismo Gênico

A ativação dos sistemas de QS só ocorre em uma alta densidade celular. Isso permite que se chegue uma concentração limiar de substâncias de QS para expressão de genes. 1, 2 e 3 são os três elementos básicos de DNA para se construir um sistema de QS. Imagem modificada de NA. Whitehead et al (2001), referência no final do post.

Para um microrganismo ganhar a abilidade de “falar em outra língua”, em geral são necessários apenas três elementos de DNA: um gene que gere uma enzima que produza uma substância de QS, outro gene que produza o “receptor” dessa substância – que em geral é um fator de transcrição – e um promotor, no qual o fator de transcrição (após se associar à substância de QS) se liga para controlar a expressão gênica (imagem ao lado).

Se uma bactéria (por exemplo) “fala” a mesma “língua” que suas companheiras de colônia, como ela diferenciaria então um sinal próprio (a própria substância de QS sendo produzida) de um sinal de outras células (substância de QS externa)!? Isso é importante, porque se a bactéria receber o próprio sinal que envia, ela entrará em um processo autocatalítico que resultará em uma contínua auto-ativação da célula independente do sinal das bactérias ao seu redor. Acontece que uma bactéria não produz níveis suficientes de QS para “se ouvir”. Sem o sinal externo, a transcrição de genes pelo sistema de quorum sensing é fraca e insuficiente para iniciar um feedback positivo; apenas em alta densidade celular se consegue alcançar uma concentração crítica de substâncias de QS para estimular a transcrição dos genes que o QS controla.

Quorum Sensing no iGEM

Apesar de não ser um meio de transmissão de informação tão rápido e eficiente como o dos light switches, os sistemas de QS são bastante utilizados em dispositivos sintéticos devido à sua especificidade e falta de “falsos sinais” – afinal, é extremamente fácil estimular não-intencionalmente uma célula sensível à luz. No Registry of Parts existem cerca de 6 sistemas de QS completos, padronizados e disponíveis para construção, todos usando (em geral) diferentes AHLs, usados tanto na ativação e inibição da expressão de genes.

Exemplos de utilização desse sistema de transmissão de informação não faltam no iGEM. Já tratamos no blog de um dos inúmeros projetos do iGEM que utilizam quorum sensing, o da Unicamp de 2009. Em seu projeto, o time brasileiro utilizou sinais de AI-2 como um “sistema de alerta” em bactérias produtoras de bioprodutos em um bioreator. Quando um microrganismo contanimante surgisse (produzindo AI-2), o sistema de QS atuaria para comunicar sua presença a todas as bactérias ao redor do organismo invasor, iniciando gatilhos gênicos para produção de substâncias nocivas ao contaminante, afim de exterminá-lo do bioreator.

Parte do vídeo explicativo do time da Unicamp de 2009. Uma pequena esquematização de como usaram quorum sensing.

Aprender como uma população de microrganismos de comunica é extremamente útil para saber como ela se comporta, e no caso da biologia sintética, muito útil para conseguir controlar esse comportamento para transmitir informações em um dispositivo gênico sintético. Mas é claro que prever todo um comportamento de um sistema biológico não é nada fácil. Como já salientava Asimov, há algo em comum no comportamento de humanos e átomos: ambos são muito previsíveis singularmente, mas praticamente caóticos quando em coletivo. Apesar de mais simples, populações de microrganismos também se comportam assim, o que é uma das razões que tornam o trabalho em laboratório muitas vezes frustante e cansativo. Um guia nesse caos é essa compreensão sistêmica da comunicação entre bactérias (que origina certas resistências a antibióticos inesperadas e outras coisas bizarras), que assim como seres humanos, as torna seres mais sociais do que você possa imaginar.

Referências

  1. Whitehead, N. (2001). Quorum-sensing in Gram-negative bacteria FEMS Microbiology Reviews, 25 (4), 365-404 DOI: 10.1016/S0168-6445(01)00059-6
  2. Atkinson, S., & Williams, P. (2009). Quorum sensing and social networking in the microbial world Journal of The Royal Society Interface, 6 (40), 959-978 DOI: 10.1098/rsif.2009.0203
  3. He YW, & Zhang LH (2008). Quorum sensing and virulence regulation in Xanthomonas campestris. FEMS microbiology reviews, 32 (5), 842-57 PMID: 18557946

 

Brasil no iGEM

Para quem acha, não somos o primeiro grupo a ambicionar ir a um evento do iGEM. Lá pelos idos de 2009 o Brasil participou pela primeira vez da competição representado pela Unicamp, conseguindo trazer aqui para o lado de baixo do hemisfério uma medalha de ouro já “de cara”, equiparando-se às universidades mais renomadas do mundo, como Cambridge, Harvard e outras.

Sob o projeto intitulado “Microguards”, o time brasileiro criou um mecanismo de transformação de E.Coli’s e de leveduras  (S. Cerevisiae) em “micro guardas”, que atacam bactérias contaminantes de biorreatores de etanol, no caso as bactérias do gênero Lactobacillus (do tipo daquelas que regulam a sua ação intestinal quando você bebe o seu leite fermentado – Yakult, Chamyto, e etc -). Usar um mecanismo como esse na indústria brasileira evitaria o atual desperdício de milhares de litros de álcool que deixam de ser produzidos por causa do açúcar consumido pelos microorganismos invasores nos bioreatores de etanol. Cerca de 5 à 10 % da produção é desperdiçada por causa desses ladrõezinhos.

O Mecanismo

Reconhecimento

“ColiGuards”

Criando uma espécie de “sistema imune de bioreatores”, duas linhagens de E.coli’s são criadas no meio de cultivo: a linhagem natural chamada de workers linage e a linhagem de “microguards”, ou killers linage; a população dos dois tipos de linhagem varia dependendo do grau de contaminação do meio, ou seja, quando não há contaminantes, muito poucas bactérias workers transformam-se em killers e vice-versa.

A transformação em killers é ativada por, um metabólito secundário de quorum sensing, AI-2 (se quiser saber mais clique aqui),  que é liberado tanto pela bactéria contaminante quanto pelas E.Coli’s selvagens, é reconhecido pelas E.Coli workers, que não produzem AI-2, o que as induz a diferenciarem-se em killers. Além disso elas podem detectar os contaminates através da conjugação bacteriana com os microorganismos invasores, abilidade que só as killers passam a ter no processo de diferenciação, utilizando-a apenas naqueles microorganismos que possuem um plasmídeo diferente do seu (veja “recognition by conjugation” aqui).

“YeastGuards”

Para as Leveduras o mecanismo de reconhecimento da presença de contaminantes é um pouco mais simples: a produção de lactato provinda do consumo de açúcar dos Lactobacillus é utilizada para ativar gatilhos gênicos – o que somente é possível através da sensibilização das leveduras ao lactato, utilizando uma permease expressa pela levedura para facilitar sua incorporação à célula – que induzem um ataque aos contaminantes.

Diferenciação

Os brasileiros aproveitaram o elegante design feito pelo time francês da universidade de Paris no iGEM de 2007 para criação de um sistema de diferenciação das E.Coli’s em microguards. Com a atuação de uma recombinase (a cre recombinase),  parte dos genes do plasmídeo que transforma o microorganismo sofre excisão, tornando-se um pequeno pedaço de DNA circular com baixa taxa de atividade e sem origem de replicação, enquanto os outros genes que permaneceram no plasmídeo passam a se tornar ativos devido ao seu reposicionamento na fita de DNA logo após um promotor, como pode ser visto na imagem logo abaixo:

Lox71 e lox66 são os sítios do DNA onde atuam as cre recombinases (atuação simbolizada pelo raio vermelho). Após sua ação, os genes após as regiões de terminação (T) são reposicionados - no caso do exemplo o gene dapA - próximos ao promotor que antes era da região excisionada (na imagem o promotor Tet), e por isso tornam-se ativos.

O controle populacional dos microorganismos killers é mantido através do gene ftsK da imagem acima: um gene que produz uma proteína determinante na divisão celular, sendo uma “máquina literal de segregação de cromossomos”. Dessa maneira, evita-se que a população de killers cresça demais e se torne um “tiro pela culatra”, diminuindo a produção de etanol.

Outro aspecto bastante interessante da construção das ColiGuards é o mecanismo de controle de uma população basal de killers em um biorreator não contaminado. Eles usaram uma criativa construção feita por outro time do iGEM, o de Caltech de 2008, que se aproveitou de uma “falha” da atividade da DNA-polimerase para randomizar a expressão de um gene em uma população bacteriana. Essa “falha” é a característica que a polimerase possui de ignorar ou repetir algumas sequências de nucleotídeos que são repetidas longamente no código, produzindo uma cópia de DNA com um número variável dessas repetições (fenômeno chamado de SSM, do inglês: slipped-strand mispairing), a consequência disso é que a sequência codificadora (o gene) pode ser deslocada da posição correta em relação ao seu start codon se as repetições não forem múltiplas de 3 (porque cada códon é constituído de 3 nucleotídeos), e assim a tradução não é feita corretamente. Veja figura abaixo:

As letras maiúsculas correspondem cada uma a um aminoácido, traduzido por um códon (grupo de três nucleotídeos). ATG é o start codon e TAA é um codon de parada formado pelo deslocamento da sequência codificadora. Repare que após uma SSM, uma repetição foi omitida.

Assim, as replicações de DNA que tiverem as repetições múltiplas ATGC múltiplas de três, terão o ajuste correto da região codificadora em relação ao start códon e a tradução correta da cre recombinase será possível:

Alguns tipos de Slipped Strand Mutation que podem acontecer na população de E.Coli's.

Como esse tipo de erro da DNA-polimerase não é tão frequente, apenas uma pequena parte da população se diferenciará em killer se as repetições forem colocadas antes do gene da cre recombinase.

Para diferenciar bactérias workers na vizinhança de contaminantes, todos os microguards possuem uma outra cópia do gene recombinase, mas controlado por um promotor sensível ao AI2 liberado pelos Lactobacillus e pelas Coliguards quando detectam a presença dos invasores (figura ao lado).

Mecanismo de Ataque

Os mecanismos de ataque aos contaminantes que os Microguards possuem são divididos em três tipos: a liberação de substâncias nocivas ao  Lactobacillus, a conjugação de um plasmídeo contendo genes que provocam a morte celular do invasor, e a estratégia kamikaze: quando se libera uma grande quantidade de substâncias que são nocivas ao Lactobacillus e levam o microorganismo à lise (ver figura abaixo). A Yeastguard possui em seu arsenal somente o primeiro mecanismo, enquanto a Coliguard dispõe dos três no combate aos invasores. Essa desigualdade beligerante entre os dois microorganismos, segundo o próprio grupo (veja a parte dois do vídeo no final do post), não foi uma discriminação proposital às Leveduras: se deu mais à falta de tempo para implantar e documentar a maquinaria funcionando nas Leveduras até o congelamento da wiki do grupo. Competições têm dessas coisas!

A construção desses mecanismos de ataque aproveitou-se da maior diferença estrutural entre as E.coli’s e Leveduras, e o Lactobacillus:  a coli é uma bactéria Gram negativa (possui duas membranas celulares, existindo entre elas uma fina parede celular) e o invasor é Gram positivo (possui apenas uma parede celular no exterior e uma membrana celular interior do compartimento celular), enquanto a parede celular das leveduras é constituída de carbohidratos, diferentemente dos peptídeoglicanos do contaminante. Sabendo disso, o grupo resolveu expressar substâncias que ataquem a parede celular de peptídeoglicanos exposta dos  Lactobacillus e encontraram as lisozimas como a arma perfeita para isso, sendo usadas tanto na secreção como no método kamikaze.

O grande problema dos métodos de secreção é que eles podem se comportar como contaminantes, além da consequente redução do grau de efetividade da enzima durante o tempo devido à seleção natural. A solução encontrada para esse problema foi a conjugação de um plasmídeo (lembrando que somente as killers têm a abilidade de conjugação!) com o gene de uma endonuclease, a colicina, destruindo os Lactobacillus “por dentro”. Para que as próprias E.coli’s não fossem afetadas por esse gene letal, foi inserido um gene de resistência que torna a expressão de colicina inofensiva às Coliguards.

iGEM 2009

Melhor do que descrever como foi o projeto, nada melhor do que as próprias pessoas que participaram do evento para explicarem o que fizeram! Confira a apresentação do grupo brasileiro no Jamboree realizado em 2009 no MIT:

E nesse ano há outro time em associação com a universidade francesa de Saint-Etienne, com o projeto intitulado “Stress Wars”. Confira o que já está sendo feito nesse novo projeto franco-tupiniquim grupo junto aos outros links interessantes logo abaixo:

E a USP? Quando entrará nessa também!?
Aguardemos!