Megafauna brasileira: difícil de caçar ou dura de de mastigar?

O registro fóssil e arqueológico da América do Sul, e em especial o brasileiro, abriga um enigma capaz de deixar qualquer um atônito. Os primeiros seres humanos a botarem os pés aqui conviveram por ao menos um milênio (e provavelmente por bem mais tempo) com mastodontes, preguiças gigantes, cavalos, ursos, lhamas. O Cerrado de 10 mil anos atrás era o Serengeti 2.0. Essa montanha de proteína animal não está mais entre nós, mas não existe NENHUMA evidência firme de que os primeiros brasileiros tenham se aproveitado desse banquete móvel. NENHUM indício de caça à megafauna. Alguém pode me explicar o porquê?
mastodonte500.jpg
Esse velho mistério me veio à cabeça novamente depois de entrevistar o paleontólogo Leonardo Santos Avilla, da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), sobre seu interessante trabalho com os mastodontes de Araxá (MG). Ele me contou que tomografias feitas no que sobrou de um desses primos extintos dos elefantes revelaram um corpo estranho que pode ser uma ponta de lança. A ferida cicatrizou, o que significa que o paquiderme (também conhecido como gonfotério) não morreu daquilo.
A identificação ainda não é definitiva, mas seria o PRIMEIRO caso indiscutível de ataque de seres humanos aos monstros do Pleistoceno no Brasil. Isso quer dizer que a gente tem dados mais seguros sobre LARVAS DE BESOURO comendo mastodontes (a vértebra acima é um indício da ação desses carniceiros nas carcaças) do que sobre gente comendo mastodontes.
Para colocar tudo isso em contexto, é bom lembrar que existem alguns dados sobre o uso da megafauna como recurso alimentar e matéria-prima em Monte Verde, no Chile, há 12.500 anos (de novo, são mastodontes) e um ou outro exemplo na Argentina e nos países andinos. De resto, a América do Sul conta com pouquíssimos indícios de que os primeiros habitantes do continente (também conhecidos como paleoíndios) tenham caçado esses grandes mamíferos.
Clovis? Que Clovis?
A coisa é ainda mais estranha porque, na América do Norte, a chamada cultura Clovis (aparentemente a mais antiga, e certamente a mais bem conhecida, dessa fase inicial do povoamento) parece ter subsistido quase exclusivamente à base de picanha de mamute. A famosa ponta de lança Clovis, lindamente trabalhada e com uma ranhura especial para ser presa ao cabo de madeira, parece ser uma tecnologia especialmente projetada para a caça de grandes mamíferos (e muitas foram encontradas em meio às costelas de proboscídeos).
E por aqui… bem, por aqui existe só um punhado de pontas de lança paleoíndias. A imensa maioria dos artefatos é bem tosca, de feitura “expedita”, como se diz (lindo jeito técnico de indicar que o troço foi feito nas coxas). Mais importante ainda, os padrões de subsistência em lugares como Lagoa Santa (MG), mais famoso centro de ocupação paleoíndia do Brasil, mostram foco bem maior na coleta e na captura de animais pequenos, como tatus, preás e lagartos. Quem diabos ia preferir teiú no espeto a um filezão de preguiça gigante?
Acho difícil que os paleoíndios brazucas simplesmente não tivessem habilidade técnica para produzir sua própria versão de Clovis. Será que lhes parecia mais vantajoso investir numa estratégia do tipo “menos riscos, retornos mais seguros”, dedicando-se a caças menores? Finalmente, há até quem sugira a existência de alguma forma de tabu alimentar (totêmico? Religioso? Higiênico?) em relação às grandes feras. (Foi o que Walter Neves, bioantropólogo da USP, sugeriu-me certa vez.)
É claro que novos achados, como os do próprio Avilla, podem modificar esse quadro, embora eu duvide. Será que estamos falando só de um problema de tafonomia, ou seja, de preservação dos restos caçados, que teriam sumido ou se decomposto? Tá, mas para o continente inteiro? Improvável. Se alguém tiver uma luz por aí, pelamordeDeus me avise — ou um escreva um paper.
——
PS – Pois é, depois de um hiato vergonhoso, estou de volta. Pra valer, espero.

Discussão - 8 comentários

  1. Como era a relação dos nativos africanos com os grandes mamíferos antes da colonização européia?
    []s,
    Roberto Takata

  2. Grande Takata,
    A caça era sistemática, em geral. Havia inclusive captura viva de animais "de prestígio" (leões, elefantes, girafas etc.) pra exportação pra Etiópia, pro Egito e pro Mediterrâneo.
    Abração!

  3. Acho que foi na Patagônia que encontraram pelo de preguiça gigante mumificada. Sabe de algo? Se era uma pele preparada?
    Por outro lado, qual a frequência de marcas de dentes de Smilodon, Arctodus e cia em fósseis de grandes mamíferos herbívoros?
    []s,
    Roberto Takata

  4. Ainda que você voltou a escrever aqui. =)
    Não tenho conhecimento prático nenhum netse campo, mas ainda acredito que alguém vai achar mais cedo ou mais tarde registro de caça à megafauna. Será que os paleoíndios realmente não conseguiriam desenvolver lanças capazes de matar esses bichões? Acho pouco provável né.
    Abraço, meu chapa!

  5. Mestre Takata,
    If memory serves, foi não apenas pêlo mumificado como um pouco de pele e músculo. E fezes. Eca :oP
    Não sei muito sobre marcas de predação, mas o pessoal que trabalha com os mastodontes de Araxá diz que viu sinais de mordidas de canídeos nos ossos -- provavelmente scavenging.
    Legal te ver tb, grande Panda!
    Abraços a todos!

  6. natalia lima disse:

    ola! sou prof. e estou precisando de material sobre a megafauna brasileira, se vc pudesse gentilmente me ajudar, ficaria mt grata. Obrigada

  7. Oi Natália,
    Legal te ver por aqui. Sugiro que você dê um Google no meu nome mais a expressão megafauna. Deve aparecer um montão de matérias que eu fiz a respeito, com bastante informação. Se precisar de algo mais específico, me avise que eu te ajudo.
    Grande abraço!

  8. Suélen... disse:

    "PS - Pois é, depois de um hiato vergonhoso, estou de volta. Pra valer, espero".
    Eu ri muito..
    tenho uma prova que tratará de um tal Hiato.(Ri de desespero na verdade)
    Só passando pra dizer que adorei o texto. Muito espirituoso!
    bjss

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