É ou não é escrita?

ResearchBlogging.orgOs caracteres nos sinetes abaixo, usados pela misteriosa civilização do vale do Indo por volta de 2000 a.C., são inegavelmente estilosos. Mas são uma forma de escrita? Uma pesquisa recente na revista “Science” usou análises estatísticas para tentar dar uma resposta objetiva a esse dilema. (Veja a imagem em tamanho grande clicando aqui.)
indo500.jpg
Com essa abordagem, você provavelmente não vai se surpreender se eu disser que o primeiro autor do estudo é do Departamento de Ciência da Computação e Engenharia da Universidade de Washington. (Ainda menos surpreendente é o fato de ele se chamar Rajesh Rao). Para enfrentar o mistério dos antigos sinais da Índia e do Paquistão, Rao e seus colegas avaliaram a entropia condicional da sequência de sinais — em outras palavras, o grau de aleatoriedade do aparecimento de um sinal dada a presença de um sinal anterior na “linha de código”.
A lógica por trás disso é simples, explicam eles. Em sistemas simbólicos não-linguísticos, o mais comum é que os sinais sigam ou uma sequência aleatória ou uma ordem sequencial rígida demais. Sistemas simbólicos de natureza linguística ficam entre esses dois extremos, apresentando uma combinação delicada entre ordem e caos — do contrário, em qualquer língua humana, não dá para seguir a sintaxe correta e ainda assim dizer o que se quer dizer.
Com isso na cabeça, os pesquisadores computaram a entropia condicional em cinco tipos de sistemas linguísticos escritos (sumério, tâmil antigo, sânscrito do Rig Veda e inglês) e sistemas não-linguísticos (sequências de DNA humano e de aminoácidos em proteínas bacterianas), além de avaliar também a linguagem de programação computacional Fortran. Isso feito, compararam esses valores de entropia condicional ao valor prevalente numa antologia de “textos” do vale do Indo.
E aconteceu o que esperar-se-ia que acontecesse caso os sinais de 2000 a.C. fossem mesmo uma forma de escrita: entropia condicional compatível com a da linguagem humana. Para ser mais específico, e aí a coisa começa a ficar interessante, a aparente escrita do Indo bate com o sumério e com o tâmil antigo nos níveis de entropia condicional.
Rebu do rébus
Primeiro, isso pode indicar que, como o sumério, trata-se de um sistema logossilábico, no qual os sinais podem corresponder a palavras inteiras, ou então funcionar como rébus. (O rébus é um jeito gambiarra de usar palavras não-relacionadas, cujo som é parecido, para representar outra mais abstrata, combinando-as. Por exemplo, desenhar uma mão e uma vaca para expressar o adjetivo “mão-de-vaca”. As escritas primitivas faziam isso direto.)
Adendo pós-post: o grande Roberto Takata, nos comentários abaixo, deu um exemplo bem melhor de rébus que o meu: desenhar um sol e um dado para expressar o conceito de “sol-dado”. (Pegou? Pegou?)
Em segundo lugar, a semelhança com o tâmil intriga porque ele pertence ao grupo das línguas dravidianas, hoje faladas no sul da Índia, mas aparentemente presentes em todo o subcontinente indiano antes da chegada dos indo-europeus (falantes de idiomas distantemente aparentados ao nosso) séculos depois. As línguas dravidianas seriam as línguas originais dos indianos e paquistaneses do vale do Indo.
Para ir além dessas indicações, só mesmo achando um jeito de decifrar a escrita, o que não vai ser fácil. Mas pelo menos o trabalho indica que não é perda de tempo fazer a tentativa.
———
Rao, R., Yadav, N., Vahia, M., Joglekar, H., Adhikari, R., & Mahadevan, I. (2009). Entropic Evidence for Linguistic Structure in the Indus Script Science, 324 (5931), 1165-1165 DOI: 10.1126/science.1170391

Discussão - 16 comentários

  1. Muito legal isso. Só fiquei com uma dúvida: o Fortran é um sistema linguístico ou não-linguístico? Tendo saída da cabeça de um humano eu apostaria no primeiro, mas, a ver...
    Abraços

  2. Grande Lu,
    Na análise dos caras, contou como sistema linguístico sim 😉 A diferença é que um sistema totalmente artificial, diferentemente das línguas naturais, e por isso entrou como uma outra categoria no trabalho.
    Abração e fico feliz por teres gostado!

  3. "Por exemplo, desenhar uma mão e uma vaca para expressar o adjetivo 'mão-de-vaca'.", bem, no caso, "mão" e "vaca" estão relacionados com "mão-de-vaca".
    Acho que seria mais o caso de desenhar um sol e um dado para representar soldado.
    Mas uma coisa interessante na questão da entropia intermediária, é o conceito do "entre o cristal e a fumaça" de Monod para caracterizar a vida. Não por acaso escolheram sequências de biomoléculas poliméricas armazenadoras de informação. Com o que podemos não apenas ligar ao conceito de memes dawkinianos, mas remeter à idéia de Darwin de analisar as línguas humanas evolutivamente.
    E, fazendo outra conexão, com a inteligência: a inteligência só é compatível com um mundo em que haja um grau intermediário de entropia. Em um sistema altamente organizado (e, portanto, preditível), a inteligência é inútil; em um sistema altamente desorganizado (e, portanto, imprevisível), a inteligência também é inútil.
    []s,
    Roberto Takata

  4. Boa, Takata. Eu fiquei quebrando a cabeça pra achar um exemplo de rébus e só cheguei a um meia-boca. Sol+dado é bem melhor. Vou incluir no texto 😉

  5. Sibele disse:

    Não acharam uma "pedra da Roseta" para decifrar o texto?

  6. Oi Sibele,
    Não, pq o texto é de uma época em que não existiam outros sistemas de escrita na região. A Pedra de Roseta teve a boa sorte de ser achada com uma inscrição em grego na época que uma dinastia macedônia mandava no Egito, ou seja, pós-auge da era dos faraós :-/
    Abraço!

  7. Sibele disse:

    Que pena! Nessas horas, que falta faz essa pedra!
    Mas, Reinaldo, é um belo post! E parabéns pela indicação bibliográfica da Science! Um brinde à curiosidade do leitor que quer saber mais!

  8. Legal que vc gostou, Sibele. É o sistema do Research Blogging em português, que acaba de ficar disponível graças ao zelo do Atila e do pessoal do ScienceBlogs Brasil 😉
    Abração!

  9. Sibele disse:

    Nossa, Reinaldo! Acessei e achei bárbaro! As referências ficam à parte, destacadas, já com links para os recursos, e até mesmo o doi!
    Deve ser a plataforma do Research Blogging, não? Os desenvolvedores merecem vivas, então! Entendo que, como trata-se de blogs de Ciência, indicar referências é básico. Os autores podem e devem fornecê-las.
    Aqui no SBB às vezes, nos meus comentários, encho o saco dos autores cobrando as referências... devem me achar uma verdadeira pentelha... 😛
    Sucesso ao Research Blogging em potuguês!
    Obrigada pela indicação! Abraço!

  10. Sibele disse:

    Ah, mais uma coisa: será que qq internauta acessa os textos? Vi que lá muitos títulos são parte de bases de acesso restrito... eu consigo acessar, a partir de minha instituição, mas e quem não dispõe dessa opção?

  11. Oi Sibele,
    Muito legal que vc tenha gostado da plataforma. Eu realmente acho que vai ajudar muito pra confiabilidade das informações, pra unificar a blogagem sobre artigos com peer-review e uma série de outras coisas.
    Sim, infelizmente quem não tem acesso às bases de artigos via sua instituição ou por outro meio só vai poder ler os abstracts. É um shortcoming, sem dúvida. Esperemos que a revolução do open access acabe com isso nos próximos anos. Abraço!

  12. Sibele disse:

    Sim, Reinaldo, esperemos os desdobramentos dessa revolução... estou esperançosa, apesar de um ou outro revés em rounds dessa arena... O último, envolvendo um certo “The Open Information Science Journal” teve ares de “Sokal revisited”...

  13. De fato, esse episódio foi um bocado vergonha-alheia. É preciso ficar atento aos caça-níqueis.
    Abraço!

  14. Jack Sk. disse:

    Antes de ler a conclusão dos caras, eu já teria apostado de que se trata de fato de um sistema de escrita, uma vez que os símbolos me parecem complexos e variados demais para serem apenas decoração.
    Se seguem a lógica sugerida pelo Takata Sol+dado = soldado, então há quase certamente sistemas anteriores a partir do qual esso evoluiu. Essa concepção não é incomum e talvez tenha mais sentido ainda se analisada sob uma lógica coletiva, do tipo "a forma de escrever de outro inspirou a minha, afinal sua solução me pareceu ser uma boa ideia".
    Uma pista pra decifração seria pegar o nome do local/povo em línguas antigas da região e tentar estabelecer uma relação lógica entre a sonoridade e a linearidade do texto em questão (oq apesar de td não funcionaria caso o idioma pertencesse a um tronco isolado e/ou desconhecido). Se viveram no próprio lugar é provável que o nome signifique algo positivo, mas se a referência for a um território/povo inimigo, a abordagem pode ser inversa (vide nomenclaturas desse tipo em várias culturas).
    Não dá pra afirmar muita coisa sem escrever conclusões estúpidas, mas eu apostaria em dois aspectos: há uma base anterior muito próxima da pictografia, que evoluiu para um segundo estágio e estão para esse (que deve ser pelo menos o terceiro) e provavelmente é lido da esquerda para a direita, vide a orientação sistemática das cabeças dos animais (que aliás, podem ser tbm parte da escrita, relacionados a uma origem mais pictográfica, como eu sugeri).
    Sei lá.
    Hehehehe...

  15. Jack Sk. disse:

    Aliás... Você reparou na simetria dos sinais? Divida cada um deles no meio e repare como são praticamente espelhados. Qualquer coisa assim tão simétrica deve ter sido muito bem planejada. Isso aí deve ter uma lógica sintática bastante rígida, inclusive. A repetição do tema "animais" e a forma como eles estão representados, com adereços e sinais óbvios de domesticação também devem sugerir muita coisa.

  16. Oi Jack,
    Cara, interessantíssimas as observações. O que a gente precisa, creio, pra ir em frente, é que mais especialistas nas atuais línguas dravidianas conversem com criptógrafos e quebrem mais a cabeça com esses troços aí.
    Grande abraço!

Deixe um comentário para Reinaldo José Lopes Cancelar resposta

Seu e-mail não será divulgado. (*) Campos obrigatórios.

Sobre ScienceBlogs Brasil | Anuncie com ScienceBlogs Brasil | Política de Privacidade | Termos e Condições | Contato


ScienceBlogs por Seed Media Group. Group. ©2006-2011 Seed Media Group LLC. Todos direitos garantidos.


Páginas da Seed Media Group Seed Media Group | ScienceBlogs | SEEDMAGAZINE.COM