Mea culpa, mea maxima culpa

A relação entre cientistas e jornalistas nem sempre é fácil, como muita gente que nos visita aqui no ScienceBlogs está careca de saber. Por uma mistura de cansaço, descuido, pressa e azar, acabei publicando na Folha desta semana uma reportagem que desagradou bastante meu entrevistado, José Eduardo de Carvalho, da Unifesp de Diadema. O professor José Eduardo enviou uma carta a ser publicada no jornal sobre o problema, mas como o espaço de cartas é sempre limitado, achei que seria interessante colocar todas as críticas por aqui. É o mínimo que posso fazer como mea culpa. Seguem os comentários abaixo, enviados por e-mail.
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Prezado Reinaldo,
acabei de ler o artigo com atenção e percebi que nele há imprecisões que não deveriam ter sido publicadas sem revisão por este jornal!
Vou tentar apontar algumas coisas do que li:
1. “As pesquisas com um sapo e uma perereca habituados à secura do sertão estão revelando truques fisiológicos e comportamentais inusitados, que permitem aos bichos aguentar a falta d’água.”
Comentário: Desde quando, na história da biologia, ajustes fisiológicos e comportamentais tão importantes quanto esses apresentados por estes animais são “truques” “inusitados”. Há vasta literatura sobre o assunto e nós construimos nossas hipóteses sobre “décadas” de pesquisa sobre animais tolerantes a estas condições. Creio que por mais glorioso que seja o espírito de divulgação da ciência, esta tem que ser feita com termos apropriados, o que não necessariamente são técnicos.
2. “José Eduardo de Carvalho, da Unifesp de Diadema (Grande São Paulo), apresentou resultados recentes de seus estudos sobre o tema na reunião anual da Fesbe (Federação de Sociedades de Biologia Experimental), que terminou sábado em Águas de Lindoia (SP)”
Comentário: Já disse nas mensagens anteriores e na palestra na Fesbe que esses trabalhos são de uma colaboração com pesquisadores da USP (Carlos Navas e Isabel Cristina Pereira). É bastante injusto ver isso escrito na forma como está.
3. “Contudo, as observações de Carvalho com o sapo sertanejo Rhinella granulosa subvertem essa lógica. “Os juvenis da espécie, depois de concluírem a metamorfose [de girino para sapo], passam toda a estação seca ativos. São sapos pequenininhos pulando num solo com 50ºC de temperatura”, contou o pesquisador à Folha.”
Comentário: Nós não sabemos ao certo o que estes animais fazem, e aspectos fisiológicos relacionados com a tolerância a altas temperaturas já foram bastante explorados em diversos trabalhos. O nosso trabalho ( 2007 Comparative Biochemistry and Physiology, Part A 147: 647-657) discute isso e explora o assunto em uma espécie de interesse nacional.
4. “O que acontece, ao que tudo indica, é que as enzimas (proteínas aceleradoras de reações químicas) que regem o ciclo respiratório dos sapinhos são capazes de resistir intactas a essas temperaturas, que derrotariam qualquer ser humano”.
Comentário: A frase “que derrotariam qualquer ser humano” me levou a pensar que humanos não poderiam viver na temperatura das caatingas, o que não é o caso.
5. “A gente ainda não sabe como ele consegue isso”, afirma Carvalho. A hipótese do pesquisador é que outras substâncias, as chamadas chaperonas, formam um invólucro que impede as enzimas de simplesmente derreter. O interessante é que o sapo adulto, de porte mais avantajado, perde o gosto pela vida no limite e adota hábitos noturnos”
Comentário: as proteínas chaperonas (estudadas a décadas!) não são “substâncias”, e formar um “invólucro que impede as enzimas de simplesmente derreter” é conceitualmente errado! As chaperonas não formam “invólucros” e proteínas (como as enzimas) não “derretem”. Isso tudo, apesar de ter um espírito de divulgação voltado ao publico leigo ao assunto, não é adequado.
6. “A situação da perereca Pleurodema diplolistris é ainda mais inusitada. Em ambientes secos, muitos animais adotam a chamada estivação, que pode ser considerada a “irmã gêmea” da hibernação em ambientes onde o calor intenso, e não o frio, é o inimigo. Animais que estivam também podem ficar numa espécie de animação suspensa até o calor amainar.”
Comentário: O conceito de estivação ainda é muito discutido e não sabemos se P. diplolistris realmente estiva nos moldes tradicionais. As evidências do trabalho mostram isso. mas dizer que a estivação é a “irmã gêmea” da hibernação ficou mais uma vez inadequado e, conceitualmente, errado. Ainda que P. diplolistris estive, certamente não são necessariamente as altas temperaturas que levam a isso, mas a falta de recursos hídricos. Como eu salientei na palestra, o regime de chuvas – e não a temperatura – tem mais relação com as fases de atividade e inatividade – aparente – dos animais.
7. “Mas não a P. diplolistris. “Considera-se que o bicho estiva, mas na verdade nós vimos que ele, ao se enterrar, fica se movendo o tempo todo, buscando as áreas do solo arenoso onde há mais umidade”, diz Carvalho. Seria um tipo de estivação com “insônia”.
Comentário: Ainda não sabemos se os animais ficam se movendo o tempo todo. Nós temos evidências de que estes parecem se enterrar cada vez mais profundamente quando há um prolongamento da estação seca. Mas nós não sabemos a que taxa os animais se movem, ou mesmo se fazem isso de fato ou foi apenas um achado coincidente. Mas dai dizer que Pleurodema diplolistris “estiva” mas tem “insônia” também é inadequado.
8. “Carvalho faz parte do recém-criado Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Fisiologia Comparada, iniciativa que reúne diferentes centros do Brasil. As pesquisas que o grupo conduz vai muito além da curiosidade pelo inusitado.”
Comentário: Eu de fato hoje em dia faço parte do INCT em Fisiologia Comparada, mas todos os trabalhos apresentados foram realizados em grande colaboração com o Prof. Carlos Arturo Navas (do Instituto de Biociências da USP de São Paulo) e com a aluna de mestrado (co-orientada por mim) Isabel Cristina Pereira. Isso foi deixado claro diversas vezes na palestra e nas mensagens. Os dois trabalhos, com R. granulosa e com P. diplolistris, foram financiados pelo projeto do Prof. Carlos Navas provenientes da FAPESP. É injusto não ressaltar a importância do trabalho sem mencionar isso. Como disse, o trabalho com Rhinella granulosa já esta publicado, e aquele com P. diplolistris é a tese de mestrado da Isabel que ainda nem foi defendida.
9. “Os animais que estudamos podem ser modelos interessantes de diversas situações fisiológicas”, diz outro membro do instituto, Luciano Rivaroli, da Universidade Federal de São João del Rey (MG).”
Comentário: O Prof. Luciano é um grande amigo, mas ele nada tem com estes trabalhos com anuros. Da forma como está na matéria ele acaba levando mais crédito do que o meus colaboradores mais próximos.
Apesar de todos esses equivocos, creio que os principais problemas seriam prontamente solucionados se eu tivesse tido a chance de ler o conteúdo da matéria antes dessa ser publicada. Se isso fosse feito, o objetivo da reportagem de levar ao publico externo à universidade a divulgação dos conhecimentos que aqui são gerados teria sido alcançado com grande sucesso e com GRANDE GRATIDÃO de minha parte. Acredito que encurtar o caminho que existe entre a universidade e a comunidade é a melhor forma de construirmos um país melhor e próspero, livre de preconceitos e enganações.

Discussão - 8 comentários

  1. Davi disse:

    Então.
    Todos os comentários foram muito pertinentes mesmo.
    Mas acredito que muitos deles também eram dispensáveis.. algumas comparações que você fez na matéria apesar de serem conceitualmente erradas (e por isso as aspas) são de boa didática e bastante explicativas ao publico leigo..
    Minha opinião.

  2. Meio exagerada mesmo, Davi.
    (Eu posso falar, porque já enchi muito a paciência do Reynolds - e continuarei a fazê-lo.)
    []s,
    Roberto Takata

  3. Dånut disse:

    Também tive a impressão de que foram exagerados os comentários em algumas partes.
    Eu, por exemplo, sou parte do público leigo, e achei que algumas partes ficaram interessantes da maneira que estão colocadas. No item 5, por exemplo... Eu to começando a ter uma noção real do que é uma enzima agora, po. E acho muito melhor ler algo que coloque isso de uma forma que eu entenda, mesmo que não a exatamente certa, do que "aprender" o que está conceitualmente certo e não entender nada...

  4. Reinaldo,
    Achei extremamente louvável de sua parte reconhecer seu erro e publicar as críticas dele integralmente. Por outro lado, ao contrário do que comentam acima, tendo a concordar com as restrições do José Eduardo de Carvalho quanto à linguagem que você utilizou. Na verdade, deixei de ler revistas como Superinteressante e Galileu pelo uso excessivo deste tipo de simplificação. Não entendo qual a vantagem de se "entender" algo que não está conceitualmente certo, como defende o Danut acima: aprender algo que está conceitualmente errado ou inexato, ainda que explicado em uma linguagem acessível, é a mesma coisa que não aprender nada.

  5. Grande Ítalo, eu entendo a sua visão. Não vou me justificar pq combinei com o professor José Eduardo que daria voz exclusivamente a ele no post. Qq hora a gente pode debater isso com mais calma 😉
    Abraço!

  6. Dånut disse:

    Bem, a minha visão é que é mais útil eu "entender" as coisas de uma forma bem superficial (e "errada") do que não entender nada. Acho que se pega alguma coisa sim. E depois se for o caso se aprofunda o conhecimento, vendo como a coisa realmente funciona...
    Mas sei lá, é algo que pode (e acho que deve) ser debatido...

  7. José Eduardo de Carvalho disse:

    Olá todos,
    na verdade, os comentários que fiz sobre a matéria do Reinaldo tinham o intuito de esclarecer certos pontos a ele sobre os conceitos que usamos e que julgo serem necessários mesmo para o publico "leigo". Com disse, é mais que fundamental que haja esse encurtamento das distâncias sobre o que produzimos dentro das universidades e a comunidade externa a ela. Contudo, um dos grandes problemas que lidamos no magistério superior é com a perpetuação de "conceitos errados" sobre um determinado assunto. O poder de um veiculo de comunicação é tamanho que este deve, antes de mais nada, informar corretamente. Imaginem se algumas falsas interpretações (ou pequenos deslizes) acabem "caindo" em circulação. Todos podem acreditar que aquilo é correto e torna-se muito dificil corrigir isso mais pra frente.
    Ainda assim, agradeço o Reinaldo por ter esta iniciativa e colocar tudo isso em seu BLOG mostra sua preocupação com o assunto.

  8. maria disse:

    Danut - é possível (embora muitas vezes bem difícil) formular explicações corretas e ao mesmo tempo interessantes e compreensíveis. é esse o desafio e o objetivo da boa divulgação de ciência.
    por isso, mesmo que não seja sua intenção, a contraposição "compreensível" versus "correto" não cai bem - tanto para cientistas como para jornalistas de ciência.

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