Ceticismo bíblico, parte 1: Eclesiastes
Depois de passar algumas (várias) semanas no olho do furacão do jornalismo científico, finalmente arranjei um tempinho para dar início à minha tão propalada série bíblica aqui no blog. Promessa é dívida: “o que você jurar, cumpra”, como diz o autor do livro que é o primeiro da nossa lista de céticos israelitas. Falo de Koheleth, ou, se você preferir a tradução grega do apelido, o Eclesiastes.
Tanto em hebraico (língua original do livro de Eclesiastes) quanto em grego, a palavra significa algo como “o sujeito que reúne, que monta um conjunto” – “Eclesiastes” tem a mesma origem do grego ekklessía, “assembleia”. O problema é saber o que nosso amigo Koheleth reunia, afinal: alguns acham que a palavra se refere à reunião de pessoas mesmo, como nas assembleias das cidades-Estado gregas; outros apontam que a reunião é de provérbios, sermões e ditos sábios, os quais compõem o livro. Claro que os dois sentidos não são autoexcludentes.
Presente em qualquer Bíblia, seja ela católica, protestante ou judaica, o Eclesiastes tem uma série de características interessantes que sugerem que ele foi escrito tardiamente se comparado ao resto do Antigo Testamento (uma data em torno de 400 a.C. ou pouco depois talvez seja um bom chute).
A gramática do texto não é lá muito castiça, e há duas palavras de origem persa no livro, pardes (“jardim”, origem da nossa palavra “paraíso”) e pitgam (“sentença”). Ora, a influência cultural persa só começou a se fazer sentir no fim do século VI a.C., quando a Pérsia conquistou todo o Oriente Médio antigo. Por isso mesmo, embora o Koheleth se identifique na primeira pessoa como “filho de David, rei em Jerusalém”, tudo indica que se trate de outro traço comum dos livros bíblicos tardios: a pseudoepigrafia, uma espécie de ghost-writing. No caso, o autor bíblico assume o manto de um grande personagem do passado para ressaltar sua autoridade — até porque não havia mais reis no que restou do território israelita durante o domínio persa.
Vento, vento, vento
Depois desse breve cenário, vamos ao que interessa: conteúdo. Uma palavrinha hebraica, hevel (algo como “ar”, “vento”, “sopro”), é a chave para se entender o pensamento cético e pessimista do misterioso Koheleth. Traduzida às vezes como “vaidade” ou “futilidade”, hevel é, para o autor, o sinal da impossibilidade do homem de achar algum grande padrão ou ordem nos acontecimentos cósmicos.
Nesse ponto, o Koheleth diz coisas que não ficariam deslocadas na boca de um deísta — ou seja, um sujeito que até acha que Deus criou as leis do Universo, mas que depois disso deixou basicamente a natureza seguir seu curso sem interferências. Esses ritmos naturais são imutáveis, diz ele no capítulo 1:
“Só acontecerá/O que já aconteceu/Só ocorre/O que já ocorreu/Não há nada de novo/Debaixo do Sol!”
Mais do que isso, em vários pontos o Koheleth parece desafiar um dos pressupostos fundamentais da religião israelita mais tradicional: a ideia de que Deus basicamente recompensa os bons e pune os maus. O mundo real é muito mais complicado, diz o autor:
“E eis outra frustração: o fato de que a sentença imposta pelos atos maus não é executada rapidamente, e é por isso que os homens têm coragem de fazer o mal — o fato de que um pecador pode fazer o mal cem vezes, e ainda assim sua punição é adiada (…) Pois o mesmo destino aguarda a todos: ao justo e ao injusto; ao bom e ao puro, e ao impuro; ao que sacrifica [a Deus] e ao que não sacrifica; ao que é agradável e ao que é desagradável (…) Essa é a coisa mais triste em tudo o que acontece debaixo do Sol: o mesmo destino aguarda a todos.”
O bicho homem
Alguns especialistas no estudo do texto bíblico sugerem que o Koheleth escreveu sua obra numa época em que a religião judaica estava começando a adotar a crença na imortalidade da alma e em recompensas ou punições depois da morte, sob influência dos persas e, mais tarde, dos gregos. O autor do livro, no entanto, é categórico: a morte é o fim — uma visão mais antiga que parece ter predominado entre os autores dos livros bíblicos anteriores. Ele diz que a diferença entre humanos e animais, nesse sentido, é pequena, ou até inexistente:
“Então eu decidi, no que diz respeito aos homens, não compará-los a seres divinos, mas encarar o fato de que eles são animais. Pois, em relação ao destino do homem e o destino do animal, eles têm o mesmo destino: como um deles morre, assim também morre o outro, e ambos têm o mesmo hálito vital; o homem não tem superioridade em relação ao animal, uma vez que ambos de nada valem. Ambos vão para o mesmo lugar; ambos vêm do pó e para o pó retornam.”
Diante desse pessimismo todo, será que é o caso de cortar os pulsos? Não, diz o Koheleth. O homem tem de se conformar com sua pequenez e aproveitar, sempre que possível, o que a vida tem de melhor:
“Vá, coma seu pão em contentamento, e beba seu vinho em alegria; pois sua ação foi há muito tempo aprovada por Deus. Que suas roupas estejam sempre lavadas, e que na sua cabeça nunca falte perfume. Desfrute a felicidade com uma mulher que você amar todos os dias de sua vida que lhe forem concedidos debaixo do Sol (…) O que quer que esteja em seu poder fazer, faça-o com toda a sua capacidade. Pois não há ação, nem raciocínio, nem aprendizado, nem sabedoria no Sheol [a região dos mortos para os israelitas antigos, parecida com o Hades grego], que é para onde você vai.”
Portanto, se eu fosse resumir numa única frasezinha grudenta o conteúdo do Eclesiastes, acho que parafrasearia a famosa campanha dos ônibus ateus: “Provavelmente existe um Deus, mas nunca dá pra saber se e quando Ele vai intervir nos assuntos humanos; então, pare de se preocupar e aproveite a vida”.
Mas hein?
O mais curioso de toda essa história é que, embora os organizadores anônimos da Bíblia hebraica tenham aceitado colocar esse livro cético na lista dos considerados inspirados por Deus, eles também parecem ter tentado “domesticar” o significado dele, ao menos em parte.
Alguns parágrafos no último capítulo do Eclesiastes parecem ter sido acrescidos por um editor e basicamente desdizem as afirmações mais perturbadoras do autor original. A probabilidade de eles serem de um autor secundário é alta porque eles aparecem logo depois de uma fala que espelha exatamente a abertura do livro, quase como um refrão. Os autores antigos costumavam usar essa estrutura em espelho, ou “inclusio”, para fechar seu raciocínio. A frase final quebra essa unidade, dizendo:
“O resumo do tema, no fim das contas, é: reverencie a Deus e observe seus mandamentos! Pois isso se aplica a toda a humanidade: que Deus pedirá contas de toda criatura por todas as coisas desconhecidas, sejam elas boas ou más.”
Essa mensagem se encaixa perfeitamente com a visão tradicional da religião israelita, mas tem pouco a ver com o pensamento iconoclasta do Koheleth.
——
O nosso próximo cético bíblico é o autor do livro de Jó, também no Antigo Testamento. Não percam!
Discussão - 14 comentários
Reinaldo, você escreve magnificamente!
É um prazer estar associado (de certa forma) a você.
Aguardo ansioso a continuação.
Muito interessante a sua diferente abordagem para este tema, é sempre interessante ver outras faces de um assunto ja conhecido.
Excelente texto, ainda mais por abordar um tema meio "complicado". No aguardo pelos proximos textos.
Gostei muito do seu estilo. Ele desce da prateleira da erudição (arqueologia) e se mistura com a linguagem da maria do povo brasileiro. Estareia tento as próximas leituras.
Muito bom! Eu só acho que você tambem poderia colocar o capítulo e o versículo das citações pra gente ir acompanhando em outras traduções 🙂
Aguardando ansiosamente pelo post de Jó!
Grande Igor,
A admiração é mútua. Vc é um colega (e amigo) que é um prazer ter ao lado. Fico feliz que tenha gostado. E obrigado a todos os que comentaram até agora tb!
Reinaldo, pra variar, parabéns. Este é um assunto que muito me interessa e eu invejo e muito sua capacidade de ler grego...hehehe. Por enquanto me sossego lendo meus romances históricos e livros de antropologia,..
Entrei nessa onda também!
http://comciencias.blogspot.com/2009/09/serpente-falante-e-arvore-da-ciencia.html
Olá Reinaldo!
Parabéns pelo texto! Este é um assunto interessantíssimo e foi muito bem apresentado. Apenas senti falta dos versículos citados, seria melhor para acompanhar... No aguardo próximas...
Olá reinaldo, te conheci no congresso de genética em águas de lindóia na ocasião perguntei se voce tinha blog e hoje estou aqui apreciando sua idéias magistrais, eu apesar de ser católico e estudante de biologia confesso que esse foi o texto que mais gostei, claro que os outros estão interessantes, nunca havia olhado para biblia dessa maneira, o que tenho de conhecimento sobre a biblia é devido a leitura de filosofias ouvindo pregações de católicos etc...
bom disse a voce que ia divulgar meu blog então: www.introspeccaoestudantil.blogspot.com
Boa tarde,Srº Reinaldo não estou te criticando, mais seu texto ficaria melhor se vc coloca-se os cap + os vers. para quem estiver lendo para pesquisa na biblia. desde já me desculpe
Grande Alexandre, legal te ver por aqui mesmo eu, mané, tendo passado pra vc a URL errada do blog 😉
Eu tb sou católico praticante, mas acho importante a gente encarar com honestidade o nosso texto sagrado, que não perde sua beleza nem seu lado espiritual com esse olhar mais científico, creio.
Abração!
Prezado Reinaldo José Lopes:
Li com bastante atenção seu texto-crítico sobre o Livro do Eclesiastes, muito bem escrito por sinal, com doses homeopáticas de humor, ceticismo e alfinetadas – faz parte bem sei. Entretanto, gostaria de dizer que como crítico de textos bíblicos, você realmente é um excelente arqueólogo amador (desculpe, mas também tenho humor negro).
Como foi breve sua crítica, também o serei. A datação da Bíblia não é absolutamente consensual: “tem-se por”, “admite-se como”, “conclui-se de”, etc. Como você sabe, foram diversos os manuscritos que compuseram a Bíblia, e até hoje formam o maior rebu (gíria já desusada = idade do Bíblia) para se saber quem foi quem. É assim mesmo, pois a arqueologia não ata e nem desata, acentuando sempre os “se” e os “talvez”, iguais aos tapa–buracos das descobertas recentes no campo da antropologia, que empurram cada vez mais para um passado nebuloso a lenda darwinista acerca do evolucionismo.
Bem rapidinho: o Pentateuco, segundo a tradição, começaria a ser escrito por Moisés cerca de 1490 a.C., data essa em absoluto consensual, e na realidade, os manuscritos cessariam de ser rescritos ( vide os massoretas e outros) em 1454 d. C. com a impressão em matrizes de madeira por Gutemberg da primeira Bíblia tipográfica.
Bem, quanto ao Elesiastes, não é um Livro apócrifo e nem cético, por isso foi incluído nos “biblos”. Claro que o cético o analisa geométricamente, horizontal e preconceituosamente, com a mesma vaidade descrita pelo autor. “Todos vão para o mesmo lugar; todos procedem do pó, e ao pó tornarão” – perfeito, irretocável, é exatamente esse o conceito atribuído ao destino do ego humano temporal, ou personalidade transitória encarcerada num corpo biológico. E nesse ponto se emparelham e se igualam aos animais, porque eles mesmos - os pseudo sábios - confirmam que morreu acabou. Porém, mais adiante Koheleth, Shilomô, Jedidian ou Salomão para os íntimos, fala de Deus, e do respeito para com Ele, o que diferencia literalmente a essencialidade de um verdadeiro conhecedor de um pseudo. Faltou isso na sua crítica homeopática.
Abraços.
Ao juntar os livros num só, provavelmente os "doutores" não perderam muito tempo lendo e analisando todos eles...e algumas coisas(ou muitas...) fogem a ideologia pregada...eles não tinham como saber que duraria milênios e nem se importavam com isso...criaram um deus e foram vender seus livros.
Jesus existiu? Durante muito tempo há muitas perguntas que ainda deixam dúvidas na mente de milhares e milhões de pessoas. Todavia, a questão é em parte espiritual, pois é difícil acreditar naquilo que não se viu e o tempo também é um aliado desses céticos quanto a existencia de Jesus. Ora, o coração cético não vai acreditar naquilo que a sua mente não alcança, porém, a fé é o fundamento para que assim, venhamos a acreditar que Ele (Jesus) não somente existiu, mas continua existindo dentro daqueles que acreditam em suas palavras.