O fim da civilização nazca – versão do diretor
É bizarro se dar conta de que árvores do tamanho da que você vê na fotografia ao lado crescem num dos desertos mais secos do planeta. A planta é um dos poucos sobreviventes da mata seca de huarangos do litoral do sul do Peru, local onde floresceu, no começo da Era Cristã, a misteriosa civilização nazca — sim, aquela das linhas visíveis do alto, que os mais afoitos costumam chamar de indicações para descida de ETs.
Estudos recentes indicam, contudo, que a causa do desaparecimento dos nazcas foi bem mundana: devastação ambiental, que teria fragilizado o sistema de canais que usavam para cultivar a região desértica. A derrubada dos huarangos teria erodido o solo em demasia e dificultado a captação de água.
Escrevi sobre isso para a Folha há pouco mais de uma semana, mas o espaço não foi suficiente para que eu conseguisse colocar na reportagem algumas ponderações interessantíssimas do arqueólogo responsável pela pesquisa, David Beresford-Jones, da Universidade de Cambridge. Eis o que ele respondeu à seguinte pergunta: o que levou os nazcas a detonarem seu próprio meio de vida?
Mediterrâneo
“Gosto da perspectiva trazida por Karl Butzer, dada por seu trabalho no Mediterrâneo. Ele observa, em primeiro lugar, que ‘os agrossistemas evoluem por meio de tentativa e erro; a agricultura primitiva era experimental por natureza, e as tecnoestratégias iniciais eram exploradoras e frequentemente efêmeras’. De fato, isso descreve bastante bem o registro arqueológico que vemos para o baixo vale do Ica [região do Peru estudada pela equipe] durante o período do Horizonte Primitivo Chavín (em torno de 750 a.C.).
Em segundo lugar, Butzer propõe que ‘a experiência cumulativa deveria selecionar estratégias conservacionistas’. Diamond [Jared Diamond, autor de ‘Colapso’] também observa: ‘É verdade que as sociedades pequenas, estabelecidas há muito tempo e igualitárias tendem a evoluir práticas conservacionistas’. Isso descrevem bem o período Nazca Antigo (do ano 1 ao 400 d.C.), cujo cânone iconográfico é extremamente conservador e está imbuído de temas do mundo ‘natural’ (coloco o termo entre aspas porque eles também pintam o mundo ‘agrícola’).
Finalmente, Butzer observa que, no caso do Mediterrâneo, a expansão e a intensificação da produção agrícola estão ligadas ao desenvolvimento de centros urbanos, e ’em dado momento a demanda urbana e as populações rurais elevadas podem colocar o ecossistema sobre estresse, desencadeando períodos de degradação’. A expansão para novas zonas ecológicas também o leva a inferir que ‘a experiência ambiental anterior não pode ser transplantada sem dano incial’ e que ‘a instabilidade política e a insegurança rural reduzem os incentivos para o gerenciamento conservacionista dos recursos’. E Diamond lembra que ‘é mais provável que danos aconteçam quando as pessoas colonizam de repente um ambiente pouco familiar’ e ‘também é provável em estados centralizados, que concentram a riqueza nas mãos de governantes que estão distanciados de seu ambiente’.
Fratura
O período Nazca Antigo, conservador, acaba se fraturando em vários estilos no período Nazca Tardio (de 400 a 600 d.C.). Isso também coincide com a aurora do Horizonte Médio, baseado no enorme centro urbano de Wari, perto de Ayacucho, nos altiplanos do sul [do Peru]. Esse foi inequivocamente um período de grande mudança social na pré-história da região andina, e há evidências muito boas de que ele também representa a primeira formação de sociedades urbanas chamadas de ‘nível estatal’ na sierra sulina, que depois se expandiu e impôs seu controle sobre uma enorme área do Peru moderno, incluindo a costa sulina. É esse período que coincide com as grandes mudanças ambientais no baixo vale do Ica, e que portanto ecoa as inferências de Butzer a partir do Mediterrâneo.
Resta uma inferência final a fazer sobre os contextos exatos nos quais se pode prever efeitos significativos da ação humana sobre o ambiente: o óbvio, ou seja, a observação de que eles são mais prováveis em ambientes vulneráveis. Muitos dos outros casos arqueológicos de dano causado pelo homem na época pré-hispânica ocorreram em áreas de clima seco. E em nenhum lugar isso se aplica com mais força do que na costa do Peru.
Enquanto a agroecologia mista do baixo vale do Ica era sustentada em parte pela mata de huarango, com sebes densas e árvores deixadas de pé em meio a seus pequenos campos cultivados, as bacias do vale podem ter parecido ideais para a conversão à monocultura de algodão e de coca à sombra de árvores frutíferas.
A decisão de impor esse tipo de conversão agrícola pode ter sido feita por gente estranha a essa região, ou mesmo originária de áreas remotas, talvez como parte de uma política imposta pelo Estado do Horizonte Médio, com a intenção de servir mercados urbanos distantes. Portanto, seria algo contrário às práticas tradicionais dos habitantes do baixo vale do Ica, e feito por ignorância das características biofísicas prevalentes no local.”
Medo
Hmmm. OK. Mercados urbanos. Gente estranha ao ambiente. Ganância. Tá. Acho que não preciso explicitar as implicações para a situação atual do Brasil e do mundo. Quem tiver ouvidos para ouvir, que ouça.
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Discussão - 2 comentários
Reinaldo, como sempre, um excelente post. As áreas áridas e semi-áridas, em relação à erodibilidade do solo, são realmente muito frágeis, inclusive quando sob vegetação nativa. Alguns trabalhos recentes desenvolvidos na UFRPE têm mostrado taxas de erosão do solo consideráveis em solos do semi-árido nordestino mesmo sob caatinga relativamente conservada. O problema é que quando as chuvas iniciam, normalmente de forma torrencial e com grande poder de erodir o solo, a cobertura vegetal é pequena e os solos, devido ao clima, é naturalmente pouco desenvolvido. Em épocas de mudanças climáticas, esse problema pode se acentuar. Em partes do domínio geomorfológico brasileiro conhecido como Mar de Morros, por exemplo em partes da Zona da Mata Mineira, o modelo de explicação daquele relevo sugere que a região era semi-árida, ou pelo menos subúmida, plana. Após o último máximo glacial, com a umidificação do clima e aumento da pluviosidade, os solos sofreram um fenomenal processo de erosão, causando "dissecação" do relevo e formando os morros atuais. Se a atividade humana agricultora estivesse então presente, o processo possivelmente teria sido catastrófico e levado à extinção de alguma civilização, talvez.
Enfim, ótimo post.
Mais um daqueles textos deliciosos de ler.
Mas outra vez senti falta de outras fontes para que pudesse continuar a ler (sem precisar perder muito tempo no google) 😉