Por uma arqueologia menos antropocêntrica

ResearchBlogging.orgQuando, nos idos de 2003, uma pesquisa revelou que chimpanzés também deixavam para trás sua própria versão de registro arqueológico, ninguém imaginava que a descoberta fosse gerar uma nova área de pesquisa multidisciplinar, a arqueologia de primatas (ou, sendo mais amplo, a arqueologia animal). Um artigo de revisão interessantíssimo, recentemente publicado, esmiuçou as potencialidades desse novo campo, e eu abordei o tema na minha penúltima coluna para o G1. Confiram o texto na íntegra abaixo.
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macacoprego.jpgQue atire a primeira pedra quem não começou a se interessar por arqueologia, ao menos em parte, por causa do indefectível Henry “Indiana” Jones Jr. (Mulheres! Chicotes! Glamour! Corações fumegantes palpitando fora do corpo!) Aí o sujeito logo descobre que esse mundo de luxúria e fantasia ocupa um limbo entre o “muito raro” e o “inexistente”. Não foi por falta de aviso. O próprio Indy já advertia que 90% do trabalho arqueológico é feito na biblioteca. Tudo bem, é a vida. Mas ficar vendo macaco-prego quebrar coquinho? Aí já é demais.
Ou melhor, pode até ser demais, mas cuidadosas observações do comportamento de macacos-pregos (e de outros primatas, e até de outros animais) podem ser justamente a fronteira final da arqueologia, uma ferramenta ímpar para entender com quantas pedras se faz uma espécie tecnológica e construtora de civilizações como a nossa. Uma argumentação fascinante em favor dessa ideia está numa edição recente da revista científica britânica “Nature”. O artigo, capitaneado por Michael Haslam, do Centro Leverhulme para Estudos Evolutivos Humanos da Universidade de Cambridge, propõe nada menos que a fundação de um novo campo de estudos, a arqueologia de primatas – e, de forma mais genérica, a arqueologia animal.
Acredite, Haslam e companhia não estão delirando. É verdade que macacos e outros bichos não constroem pirâmides nem sacrificam outros bichos ao Deus Sol (ao menos pelo que a gente sabe), mas inúmeros animais satisfazem a condição fundamental dos estudos arqueológicos – eles produzem cultura material. Ou, em linguagem menos empolada: animais também usam ferramentas, às vezes fabricadas por eles próprios, com relativo grau de sofisticação.
A lista desses comportamentos se tornou tão vasta que nem vale a pena tentar colocar aqui uma versão exaustiva dela. Uma amostra representativa inclui bichos tão diferentes quanto chimpanzés, macacos-pregos, macacos-resos, golfinhos, lontras-do-mar, araras e várias espécies de corvos e assemelhados. Grande parte, se não a totalidade desses casos, encaixa-se nas definições tradicionais de cultura humana: são comportamentos aprendidos num contexto social, que variam entre as diferentes populações de cada espécie e parecem formar “tradições”. Mas é claro que a produção de cultura material satisfaz apenas uma das condições para o estudo arqueológico de um fenômeno. A outra é o fenômeno em questão ser detectável no passado – de preferência no passado distante.
Do tempo das pirâmides
Se você apostou contra essa última possibilidade, perdeu feio. Colegas de Haslam, como Julio Mercader, da Universidade de Calgary, no Canadá, passaram os últimos anos estudando em detalhes a história do uso de ferramentas entre os chimpanzés do Parque Nacional Taï, na Costa do Marfim. Os bichos de lá desenvolveram uma tradição de usar “bigornas” e “martelos” de pedra para quebrar coquinhos, extraindo a valiosa gordura da polpa e suplementando sua alimentação. Essa atividade cria marcas características nos martelos e bigornas, bem como um acúmulo constante de restos de coquinhos.
Ora, usando esses indícios modernos, Mercader e companhia conseguem farejar instâncias mais antigas de quebra-nozes na floresta. Isso permitiu que eles datassem certos sítios de quebra de coquinhos, os quais remontam a pelo menos 4.300 anos atrás – mais ou menos a época em que os egípcios estavam colocando suas pirâmides de pé. A “civilização” dos quebradores de cocos no Parque Nacional Taï é, portanto, milenar.
Ainda não temos datas comparáveis para os macacos-pregos (Cebus libidinosus – isso é que é nome científico) que habitam a Caatinga e o Cerrado, mas o comportamento dos bichos, conforme documentado por uma série de pesquisadores brasileiros e estrangeiros, é incrivelmente parecido com o dos chimpanzés. Até o tamanho das pedras que eles utilizam como “martelo” para quebrar coquinhos é similar, apesar do tamanho diminuto dos bichos quando comparado ao de seus primos distantes africanos. Estudos de longo prazo detectaram o transporte de pedras por longas distâncias até “bigornas” apropriadas (que podem também ser raízes de árvores, além de pedras maiores). De quebra, os macacos tupiniquins também são mestres em utilizar pedras para escavar tubérculos suculentos.
Além da idade da pedra
Entender esses comportamentos e a antiguidade deles tem uma série de implicações importantes para a pré-história do próprio homem. Primeiro, pode muito bem ser que esses dados nos ajudem a detectar os mais antigos rastros do uso de ferramentas entre ancestrais da humanidade.
A questão é que, embora a linhagem humana tenha se separado da que desembocou nos chimpanzés há cerca de 6 milhões de anos, as primeiras ferramentas indiscutíveis – lascas e “núcleos” de pedra com bordas cortantes, bastante rudimentares – só aparecem no registro arqueológico há uns 2,5 milhões de anos. Pior: não sabemos quem as produziu, embora o melhor chute possível aponte para o Homo habilis. Acredita-se que elas eram usadas para carnear as carcaças que os hominídeos roubavam de predadores maiores ou, bem mais raramente, obtinham por seus próprios meios.
No entanto, se os sítios de quebra produzidos pelos chimpanzés e macacos-pregos forem um bom modelo do que um usuário de ferramentas realmente primitivo deixava para trás, pode ser que a gente esteja procurando nos lugares errados, e que talvez o uso de instrumentos de pedra na nossa linhagem remonte a época bem mais recuadas do que imaginávamos. Se for possível detectar análogos antigos dos primatas quebradores de nozes atuais, esse mistério será elucidado.
Um ponto ainda mais importante é que a arqueologia de primatas pode acabar com a nossa tara por pedras. Instrumentos de pedra são importantes, lógico, porque são imperecíveis, mas as ferramentas mais sofisticadas produzidas por outros bichos em geral são feitas com matéria vegetal. Os chimpanzés do Congo oferecem um exemplo um bocado interessante. Para capturar cupins, eles primeiro pegam um galho, retiram todas as folhas dele e depois desbastam a ponta do dito cujo, de maneira a criar algo como as cerdas de uma escova. Para obter mel, os primatas se valem de uma combinação de ferramentas: um “pilão” para quebrar a colmeia, um galho mais delicado para abrir espaço na abertura inicial, como alavanca, e finalmente uma “colher” para recolher a guloseima.
Tudo isso pode significar que a mais antiga das “Idades da Pedra” talvez estivesse mais para “Idade do Galhinho”, e ajuda a traçar um retrato completamente diferente da cultura material dos nossos ancestrais mais remotos, com foco bem menor numa quebra interminável de pedra, pedra e mais pedra.
Inevitável?
Finalmente, a questão mais interessante e especulativa de todas: como a tecnologia se fixa numa espécie. Até pouco tempo atrás, o fato de que tanto os chimpanzés quanto nós utilizam instrumentos parecia indicar que o nosso ancestral comum também era um bicho (moderadamente, ou quiçá toscamente) tecnológico.
Mas pense de novo: e os macacos-pregos? E os resos? Esses primatas estão tão distantes de nós (com separação evolutiva há cerca de 40 milhões, no caso dos primeiros) que o mais provável é que o uso de ferramentas seja um clássico caso de evolução convergente de um comportamento, ou seja, de uma característica que apareceu de forma independente, por razões diferentes, nas várias espécies.
Isso levanta uma questão intrigante: a de que a capacidade tecnológica, ao longo da nossa linhagem, pode ter aparecido e desaparecido inúmeras vezes antes de se fixar. A arqueologia animal, portanto, talvez seja uma faca de dois gumes. Sim, ela usa outras espécies como espelho para ajudar no entendimento da nossa própria trajetória tecnológica. Mas também mostra que produzir ferramentas não é garantia nenhuma de sucesso evolutivo – do contrário, a tecnologia seria mais central na vida de muito mais espécies planeta afora. Eis aí um fato que deveria fazer o bicho homem calçar as sandálias da humildade, só pra variar.
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Haslam, M., Hernandez-Aguilar, A., Ling, V., Carvalho, S., de la Torre, I., DeStefano, A., Du, A., Hardy, B., Harris, J., Marchant, L., Matsuzawa, T., McGrew, W., Mercader, J., Mora, R., Petraglia, M., Roche, H., Visalberghi, E., & Warren, R. (2009). Primate archaeology Nature, 460 (7253), 339-344 DOI: 10.1038/nature08188

Arqueoficção

lascaux300.jpgComo vocês podem ver pelo post acima, estou precisando MUITO me animar, então resolvi relembrar glórias passadas. Como coincidentemente elas são on-topic, ei-las aqui. Provavelmente o pessoal que visita o ScienceBlogs não conhece um pequeno conto de arqueoficção científica (vocês já vão entender) que eu publiquei na seção Futures, da revista Nature, alguns anos atrás. Apreciaria os comentários de todos a respeito, seja do ponto de vista científico, seja do literário. Aqui vai. O conto original e seu PDF podem ser encontrados neste link.
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Gathering of the clans – Get in touch with your past
You could see the pavilions for miles around in the bright summer morning. Only a little less conspicuous was the line of people moving slowly towards two signposts. “Got your marker ready? This way, please,” said one. “First time? Come and shed your blood,” informed the other. And above them, a bigger signpost shouted in fake-Celtic letters: “Welcome to the 5th GATHERING OF THE CLANS!”
The enthusiasm was almost palpable — or was it the smell of sweat? — except for a tiny segment of the line where a group of friends was arguing. They seemed to be having a hard time convincing one of them that yes, despite the evidence, this was going to be cool.
“Don’t be such a baby, Pat. It’ll be fun.”
“And I still say it’s gonna be ludicrous. And I hate needles. Do you really think they’ll use a different one for every single person in this crowd?”
“You sound like a sissy. It’s just a drop, for goodness sake! You know how efficient those sequencers are nowadays. They read the bases, tell you who was your great-great-great-grandpa of a couple of thousand years ago and that’s it — you’re free to drink mead and get the chicks.”
“Yeah, Pat, what’s wrong with that? After all, we’re just connecting with our past, buddy. Thought you appreciated that.”
“Look, I’m as likely to engage in hero-worship as anyone. It’s the impersonality of it that bothers me. There was certainly a point in us claiming descent from Hengist and Horsa. Those guys at least had a story — they cut Finn and his gang to pieces and conquered Britain. Been there, done that. People can connect with that kind of stuff. But now you’re asking me to worship a DNA sequence. No sir — I’d rather go drink mead with old Hengist in Valhalla.”
Soon they were right in front of the gates, where a stout fellow in white was grinning at Pat — everyone, of course, had made sure he was the first to get in.
“Alright, mate, what’s it gonna be? Mt? Y? Autosomal markers?”
Pat sighed. “Whatever. Surprise me.”
Very carefully, his thumb was pierced. Ten seconds later, a robotic voice that seemed to be suffering from a dreadful case of personality emulation (of the irritatingly happy sort) announced: “Congratulations! Your mtDNA has been assigned to the V haplogroup, fairly common in western and northern Europe, where it originated right after the Last Glacial Maximum! Your people were probably among the earliest and greatest artists the human race has known, creating those fine murals of extinct megafauna in Altamira and Lascaux. Way to go!”
“Thrilling,” growled Pat. “Can I go now?”
“Hang on a sec,” said the gatekeeper, “you need your totem!” He gave Pat a little plastic horse that looked like a poor imitation of the ones from Lascaux. Pat sighed still louder, grabbed the horse and moved on.
“Hey, what’s wrong with Marvin there?” asked the gatekeeper.
“Oh, the usual thing. Don’t talk to him about life,” answered his friends, laughing.
The Gathering seemed to confirm Pat’s worst fears. In one corner, somebody dressed as a Mongol warrior was calling “all Star-Cluster kids under ten” to learn how to shoot with a composite bow, just like Grandpa Genghis. A few yards away, some French families were being instructed in the minutiae of cannibalism among the Tupinambá tribes of Brazil — it turned out a young chief from that nation had married the daughter of a Norman trader in the sixteenth century. Elsewhere, a rabbi was always ready in case you found out your chromosomes were Jewish and wanted an impromptu bar mitzvah.
Pat wandered miserably until he spotted a girl with long black hair who also seemed to be walking alone. Predictably, he was happy to inflict on her (Vera was the name, and she was from the Basque Country in Spain) all the talk about how ridiculous the whole Gathering concept was. Vera seemed to dig his grumpy-old-man charm, but didn’t quite agree.
“I think everyone is aware of that stuff,” she said. “But think of it for a second. Isn’t it wonderful that all these different people are learning about a past that seems plain legend but is written in our blood? Besides, look at the scale of it. We used to think in terms of two or three generations at most. Now you can look back thousands of years and still recognize yourself.”
Pat was still unconvinced. “I see what you mean. But I don’t know quite how to feel about it. You see, I…Whoa!”
They had wandered to the very heart of the Gathering and were right in front of an awesome panel. Picture the largest family tree you have ever seen, hundreds of feet across. There was a huge ‘YOU ARE HERE’ on the right side, and all the lineages of men (well, of women, actually, because it was an mtDNA family tree) ramified from ‘EVE’ on the left, crowned with their achievements, from the Internet to, yes, the horses of Lascaux.
“Well, I don’t think you can argue with that,” muttered Pat.
“I guess you can’t,” smiled Vera.
“You didn’t tell me what your clan was,” he asked.
“Oh,” said Vera, “here it is.” She showed him a plastic horse.
It was only his imagination, but he could almost see Vera in a different guise altogether. She was clad warmly in fur, and in ochre the most fantastic designs graced her white skin. She raised a torch and, for a split second, all the beasts of the Ice Age danced in the rock roof. There was only one thing to do: he kissed the apparition.
“You don’t think that counts as incest, do you?” joked Pat. She laughed.

Em uma caverna na Indonésia vivia um hobbit

pedohobbit.jpg
ResearchBlogging.orgÉ por essas e outras que a paleoantropologia e a arqueologia são tão fascinantes: ninguém se entende. Ou, ao menos, tem alguns pontos a respeito dos quais ninguém se entende. É o caso do hobbit da ilha de Flores, na Indonésia — que para alguns é o hominídeo Homo floresiensis e, para outros, não passa de um ser humano moderno com 18 mil anos de idade e portador de uma forma severa de deficiência física e mental. Muitos defendem o status da criaturinha como uma espécie separada de hominídeo, mas há uma minoria um bocado barulhenta de especialistas que “lê” as características primitivas de seu esqueleto como, na verdade, sinais de microcefalia ou outra síndrome igualmente brava.
A imagem acima é do pezinho do LB1, o principal exemplar de hobbit (na verdade uma hobbit; seria a célebre Lobélia Sacola-Bolseiro?), objeto de uma análise detalhada na edição de hoje da revista “Nature”. Escrevi sobre isso para o G1 hoje. Confira a reportagem abaixo.
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É um novo capítulo na saga do hobbit, e não estamos falando de Frodo, do clássico “O senhor dos anéis”. Duas análises publicadas hoje na prestigiosa revista científica “Nature” reforçam a tese de que o hobbit em questão, cujos restos de 18 mil anos de idade foram achados na ilha indonésia de Flores, é mesmo uma espécie bizarramente única de hominídeo (grupo a que pertencem os parentes primitivos do homem e os próprios seres humanos). E, a julgar pelos pés da criaturinha de 1,10 m de altura, ele pode ter sido um hominídeo ainda mais primitivo e estranho do que imaginávamos.
A polêmica nunca se afastou muito da misteriosa criatura desde que um grupo de pesquisadores indonésios e australianos anunciaram sua existência para o mundo em 2004, também nas páginas da “Nature”. O hominídeo foi batizado como Homo floresiensis e, por causa de características específicas de seu crânio e esqueleto, foi considerado um descendente do Homo erectus, que já habitava o Sudeste Asiático há cerca de 1,7 milhão de anos.
A ideia é que alguns H. erectus teriam ficado isolados em Flores e simplesmente encolhido — um fenômeno que, por incrível que pareça, é comum com mamíferos isolados em ilhas. (Para efeito de comparação, elefantinhos extintos das ilhas europeias de Sicília e Malta chegavam, quando adultos, ao tamanho de um filhote de elefante africano de hoje.)
O problema é, que desde então, outros pesquisadores contestaram o status do hobbit, afirmando que se trataria apenas de um humano moderno com deficiências físicas e presumivelmente mentais, por conta do crânio e cérebro diminutos. Os críticos argumentavam que o cérebro de um hominídeo jamais encolheria tanto assim, mesmo preso numa ilha, onde o órgão diminui pela falta de ameaças e predadores.
As análises de hoje, porém, mostram que o hobbit, seja lá quem ele for, talvez seja realmente uma espécie bizarra e primitiva, diferente da nossa. A equipe liderada por William Jungers, da Universidade de Stony Brook (EUA), fez uma análise anatômica detalhada dos pezinhos do principal exemplar hobbit, uma fêmea conhecida pelo código LB1.
O que acontece é que, embora o dedão da criatura tivesse a mesma posição do nosso, diferentemente do dos chimpanzés, o pé como um todo é um bocado comprido em termos relativos, em especial quando comparado com os ossos da perna. Trata-se de uma característica tão estranha que sugere que a criatura provavelmente não conseguia correr pelas mesmas distâncias ou com a mesma velocidade que um ser humano moderno.
Essa característica, ao lado de algum detalhes mais técnicos, é mais primitiva do que se vê entre os Homo erectus, o que pode indicar que o verdadeiro ancestral do Homo floresiensis é um hominídeo mais antigo que já tinha passado antes pela Ásia, sem deixar vestígios detectados até hoje. Por enquanto, os antropólogos não arriscam dizer quem seria esse ancestral.
Em outro artigo científico na mesma edição da “Nature”, Eleanor Weston e Adrian Lister, do Museu de História Natural de Londres, estudaram outros mamíferos fósseis que viviam em ilhas para entender a misteriosa redução cerebral do hobbit. As contas que eles fizeram mostram que outros animais, como hipopótamos e elefantes anões, passaram por reduções cerebrais compatíveis com as do hobbit ao viver ilhados. Resta saber se esse argumento calará os críticos.
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Jungers, W., Harcourt-Smith, W., Wunderlich, R., Tocheri, M., Larson, S., Sutikna, T., Due, R., & Morwood, M. (2009). The foot of Homo floresiensis Nature, 459 (7243), 81-84 DOI: 10.1038/nature07989
Weston, E., & Lister, A. (2009). Insular dwarfism in hippos and a model for brain size reduction in Homo floresiensis Nature, 459 (7243), 85-88 DOI: 10.1038/nature07922

Nós, o almoço

taung.jpgA minha coluna desta semana no G1, que você pode conferir clicando aqui, explora um velho preconceito sobre a evolução humana: a ideia de que éramos grandes caçadores, cuja paixão por abater animais e devorar carne impulsionou nossa domínio do planeta.
Parece que o consumo de proteína animal até foi importante como combustível evolutivo para a nossa linhagem, mas o fato é que fomos muito mais presas do que caçadores ao longo dos últimos 7 milhões de anos. O texto, que copio abaixo, explora em detalhes as evidências fósseis desse fato. Espero que gostem!
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A história sempre acaba sendo contada pelos vencedores – não dá para fugir muito desse fato da vida. Nem a ciência está isenta desse tipo de racionalização meio canalha do passado. O melhor exemplo disso é a imagem dos nossos ancestrais nos relatos mais clássicos sobre a evolução humana. Segundo essa visão, o nosso apetite por carne fresca e as armas letais de pedra que inventamos foram os grandes responsáveis por nos colocar, factual e metaforicamente, no topo da cadeia alimentar da Terra. Seríamos, portanto, caçadores por natureza. OK. Agora pergunte para o Taung o que ele acha de tudo isso.
“Taung”, só para não deixar você boiando, é o apelido dado ao exemplar de Australopithecus africanus na foto acima. A criatura é um hominídeo, um membro da linhagem de primatas da qual descende o homem moderno. Taung era uma criança de uns três anos de idade quando morreu na África do Sul, há cerca de 2,5 milhões de anos. Morreu, aliás, de morte matada, e não de morte morrida: as marcas de “abridor de lata” no crânio do coitadinho deixam isso bem claro. O filhote de australopiteco muito provavelmente foi morto por uma grande águia africana, que usou suas poderosas garras para atravessar seus ossos da face e depois foi “descascando” a carne do infante, de forma tão cuidadosa que a mandíbula dele continuou no lugar ao fim do processo.
Taung, acredite, não é um caso isolado, como mostra o magistral livro “Man the Hunted: Primates, predators and human evolution” (“Homem, o Caçado: primatas, predadores e evolução humana”, ainda sem versão em português). Os primatólogos americanos Donna Hart e Robert W. Sussman usam a obra justamente como uma sacudidela no velho mito dos hominídeos como caçadores supremos. Casando observações de primatas e predadores vivos com a análise cuidadosa de fósseis e artefatos, eles mostram que o correto é imaginar exatamente o contrário. Durante a maior parte da nossa história evolutiva, fomos bucha de canhão para todo tipo de predador, e só viramos caçadores eficientes, capazes de nos defender, há algumas dezenas, ou no máximo um par de centenas, de milhares de anos.
Almoço ambulante
O engraçado é que o mito da invulnerabilidade dos hominídeos “vazou” até para os outros primatas vivos e extintos. Durante muito tempo, o consenso entre os pesquisadores era que os primatas em geral não eram muito predados, quiçá por causa de sua inteligência relativamente avançada. Ledo engano: Hart e Sussman fizeram um apurado levantamento estatístico da literatura científica e descobriram que macacos e afins têm tanta chance de virar prato principal quanto os ungulados (herbívoros de casco). Para um leão, um babuíno tem tanta cara de jantar quanto um antílope, portanto.
aguiacoroada1.jpgA lista de predadores de primatas compilada por eles é de cair o queixo. Vá anotando aí: falcões, águias, corujas, felinos de todos os tipos e tamanhos, canídeos (lobos, chacais etc.) de todos os tipos de tamanhos, ursos, hienas, civetas, genetas, mangustos, iraras, guaxinins, gambás, jacarés e crocodilos, cobras, lagartos, tubarões… e até tucanos. Sério: tucanos. Desses, os mais temíveis parecem ser as águias e os leopardos, que muitas vezes se especializam em comer primatas. É o caso da águia-coroada-africana (um exemplar está na foto ao lado), cuja técnica de abate e “dissecação” é quase idêntica à da ave que matou Taung. Já os leopardos não respeitam nem gorilas adultos, que podem ter o dobro do peso dos felinos. Dedos inteiros de gorilas já foram achados nas fezes desses grandes gatos.
E não pense que os humanos modernos estão livres desse tipo de perigo. Hoje, embora bem organizados e bem armados, ainda podemos ser devorados por quase qualquer tipo de grande predador se dermos uma bobeada. Só para dar um exemplo, em locais da Europa Oriental onde ainda existem populações de lobos, análises estatísticas mostraram que as capturas de crianças humanas por eles aumentam no verão, época em que as mães precisam de comida fácil para seus filhotes novinhos.
Voltando para o registro fóssil, a morte trágica de Taung está longe de ser um fato isolado. Em várias cavernas da África do Sul, crânios detonados de australopitecos mostram que eles foram abatidos pelos famigerados leopardos – buracos na calota craniana têm o tamanho exato dos caninos desses predadores. Crânios de Homo erectus, um hominídeo que viveu a partir de 1,8 milhão de anos atrás e tinha corpo quase idêntico ao nosso, embora cérebro um terço menor (em média), também revelam marcas que só podem ser atribuídas a felinos, em especial leões. Mais alarmantes ainda são os dados vindos de Zhoukoudian, um dos sítios mais importantes para fósseis do Homo erectus, que fica perto de Pequim. Lá, vários crânios mostram indicações claras de predação por hienas: ossos do rosto quebrados a dentadas e base craniana alargada para facilitar o acesso aos miolos, ricos em gordura e muito apreciados pelos animais.
Os dados de que dispomos sugerem que as defesas humanas contra grandes animais, bem como nossa capacidade de caçar ativamente bichos grandes, apareceram tardiamente. O uso de lanças – que permitem matar a uma distância relativamente segura – tem “apenas” 400 mil anos. E os indícios de captura sistemática de grandes herbívoros são ainda mais tardios, começando com os neandertais, há menos de 200 mil anos, e se fortalecendo mesmo apenas com a chegada dos humanos modernos à Europa, há apenas 40 mil anos. A conclusão inescapável é que passamos muitíssimo mais tempo sendo caçados do que caçando nos últimos 6 milhões de anos.
Hart e Sussman forçam um pouco a barra no terço final de sua obra, ao tentar atribuir a evolução das características tipicamente humanas, como nossa estrutura social, postura ereta e até linguagem, a adaptações voltadas principalmente para minimizar os ataques de predadores. Mas isso não lhes tira o mérito de forma nenhuma. A pesquisa cuidadosa das nossas origens é indubitavelmente um dos melhores antídotos contra a arrogância coletiva do Homo sapiens. Saber que fomos comida durante tanto tempo é um bom jeito de nos forçar a calçar as sandálias da humildade de vez em quando.

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