Mentiras, mentiras deslavadas e estatísticas

FOI ASSIM, ENTÃO, senhoras e senhores, que a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil lançou, no fim-de-semana, sua aguardada pesquisa de opinião que, adiantara sua presidente, demonstraria que o problema do índio brasileiro não é terra.

Peço desculpas por insistir no assunto, sim, sou monomaníaco, mas o causo em questão é revelador.

A pesquisa, encomendada pela CNA ao Datafolha, ouviu 1.222 “silvícolas” em 32 aldeias com mais de cem habitantes em todas as regiões do país. Amostra, portanto, em tese representativa da população indígena. A conclusão principal, estampada em press release da entidade: “A dificuldade de acesso à saúde é a principal queixa da população indígena no Brasil”. 29% dos nativos entrevistados disseram ver nisso sua principal preocupação. Nas palavras da presidente da CNA, Kátia Abreu:

“O pleito dos índios pela ampliação de suas áreas é legítimo, mas reduzir a questão indígena à falta de terra é uma simplificação irreal, que tira o foco da realidade. As reclamações dos índios vão muito além de um pedaço de chão. Eles querem cidadania, respeito, assistência médica, uma educação melhor, instrumentos que lhes possibilitem obter mais renda e o sustento de suas famílias com dignidade”

O resultado da pesquisa foi amplamente divulgado em reportagens de meus amigos Leonardo Coutinho e Matheus Leitão na Veja e na Folha, respectivamente, portanto vou me abster de repeti-los aqui. Acontece que muita gente boa chiou, dizendo que a Folha estava comprada pelos ruralistas e desconfiando do Datafolha por fazer uma pesquisa encomendada pela Kátia Abreu.

São Carl Sagan me ensinou a ser alérgico a esse tipo de ataque “ad hominem”. Se um fenômeno é real, ele deve ser observável independente de onde se situe o observador no espectro político. Não existe “ciência ruralista” ou “ciência ambientalista”. Não desconfio de resultados do Datafolha encomendado pela CNA como não desconfiei do Datafolha sobre Código Florestal por ter sido encomendado pelo Roberto Smeraldi.

OK, façamos aqui uma ressalva: existe um viés de observação na pesquisa, que afinal só foi ouvir a indiada que fala português e mora em aldeias grandes. Isso obviamente desvia a enquete no sentido de encontrar bens de consumo como TVs e geladeiras, cada vez mais comuns em áreas rurais, mas que o nosso racismo cordial não entende que possam constar de lares indígenas. Dito isso, porém, trata-se de uma pesquisa de opinião tão boa quanto qualquer outra, feita com a mesma metodologia rigorosa do Datafolha da qual ninguém reclama em tempo de eleição.

Por curiosidade, fui olhar a dita cuja, que a CNA teve a gentileza de disponibilizar em seu site. E o que diz o Datafolha? Que “saúde e situação territorial são os principais problemas dos índios no Brasil”. Saúde aparece com 29%; terra, com 24%. Como a pesquisa tem margem de erro de três pontos percentuais para mais ou para menos, podemos dizer (e o Datafolha diz) que ambas estão tecnicamente empatadas na lista de males que tiram o sono do aborígene. Kátia Abreu e a CNA possivelmente não gostaram do resultado (que deve ter-lhes custado algumas centenas de milhares de reais) e resolveram dar um “spin” na divulgação, reforçando a questão da saúde (de resto, preocupação principal de qualquer ser humano, em qualquer situação, em qualquer momento da história) e convenientemente varrendo para fora da maloca a questão territorial.

O premiê britânico Benjamin Disraeli costumava classificar as mentiras numa gradação: “lies, damn lies and statistics”, ou “mentiras, mentiras deslavadas e estatísticas”. Neste caso, as estatísticas não mentiram. Mas a forma como elas foram apresentadas ao público foi deliberadamente confusa.

PS: Leia aqui a boa análise que o Instituto Socioambiental fez da pesquisa Datafolha.

Carl Sagan Guarani-Kaiowá

CARL SAGAN (1934-1996) entrou na minha vida duas vezes. A primeira foi quando eu era criança e passava as manhãs vendo Cosmos na Globo (ainda não tinham inventado o Show da Xuxa — de fato, desconfio que a própria ainda estava naquela fase “50 Tons de Cinza” avant la lettre). Sagan era tão carismático que eu conseguia me manter atento ao programa mesmo sem entender nada. Até hoje, 30 anos depois, me lembro de sua explicação para o efeito Doppler, que prontamente saí repetindo em ocasiões sociais, para aflição de minha mãe. A segunda vez foi no começo da década passada, quando enfim li seu clássico O Mundo Assombrado pelos Demônios. Se houve um único livro que mudou completamente minha vida foi essa bíblia do ceticismo e do pensamento crítico.

Nesta semana, nerds, ateus e céticos do mundo inteiro comemoram a Semana Sagan, marcada pelo aniversário do cientista, dia 9 de novembro. Este blog resolveu prestar uma homenagem a Sagan relembrando uma de suas maiores contribuições à humanidade: o “baloney detection kit”, ou “kit de detecção de balelas”, numa tradução benevolente.

Trata-se de uma seção de O Mundo Assombrado pelos Demônios na qual Sagan resume falácias argumentativas comuns e explica como desarmá-las. É uma espécie de micromanual de bolso do ceticismo, ferramenta fundamental para cientistas, mas também jornalistas e, na verdade, qualquer pessoa que precise avaliar proposições, de qualquer tipo. O kit funciona especialmente bem com proposições de políticos, que precisam o tempo todo sustentar argumentos contraditórios entre si.

A saraivada de artigos antiindígenas que tem tomado as páginas de opinião dos jornais nas últimas semanas, quando estourou a “nova” crise guarani em Mato Grosso do Sul, presta-se bem ao escrutínio pelo kit de Sagan. Dois textos merecem atenção especial por terem sido escritos por uma missivista especialmente inteligente, a presidente da CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil), a também senadora Kátia Abreu (PSD-TO). Em suas duas últimas colunas na Folha de S.Paulo, Kátia ataca primeiro a AGU (Advocacia-Geral da União), por ter suspendido uma portaria para lá de controversa que atropelava os direitos indígenas em várias instâncias, depois a Funai, a quem acusa de fomentar conflitos no campo.

Quem acompanhou o debate sobre o Código Florestal no Congresso reconhecerá em ambos os artigos semelhanças mais do que casuais com os pontos de fala da bancada ruralista naquela ocasião. Aqui também se fala de “insegurança jurídica”, “pequenos agricultores”, “soberania nacional” e da sempre presente ameaça das “ONGs internacionais”. Os textos jogam à vontade com estatísticas, escondendo por trás de grandes números (12,64% do Brasil para 517 mil índios versus 39,2% do Brasil para 16,5 milhões de agricultures) realidades regionais díspares, uma tática retórica já comentada aqui e brilhantemente desmontada na própria Folha por Marcelo Leite.

Um eixo argumentativo, porém, merece atenção especial, porque delineia a nova linha de ataque da CNA e da bancada ruralista contra os indígenas: a de que o problema do índio, na verdade, não é falta de terra, é desassistência. Escreve Kátia Abreu, em “ctrl+c ctrl+v” de um texto publicado dias antes pelo presidente da Federação da Agricultura de MS:

É simplificação irreal e equivocada resumir o drama pelo qual passam os 170 índios da etnia guarani-kaiowá a uma simples demanda por terra. As carências dos índios, inclusive os que hoje ocupam dois hectares de uma fazenda no Mato Grosso do Sul, são muito mais amplas. Falar em terra é tirar o foco da realidade e justificar a inoperância do poder público.

A excelente revista Amanhã, do Globo, publicou ontem que a CNA lançará na semana que vem uma pesquisa mostrando as mazelas dos índios, que vão além da terra. Repete-se o padrão de comportamento em torno do Código Florestal: encomendar estudos para dar um verniz científico a uma posição política. Mais do que isso, porém, o argumento incorre em dois problemas saganianos clássicos.

Primeiro, ignora a Navalha de Occam, segundo a qual, se existem várias explicações concorrentes para um mesmo problema, a mais simples tende a ser a correta. Quem, como eu, já andou pelas terras kaiowás, sabe que existe um problema fundamental de carência de território e superpopulação das “reservas”. Os índios passam a depender de assistência do governo (que não chega, causando mortes por desnutrição, alcoolismo e suicídios) porque não têm como se sustentar em ilhas territoriais minúsculas, sem caça e arrendadas a preço de banana para plantadores de soja (frequentemente é a opção que sobra). Sem poder subsistir na terra, o guarani é levado à changa nas destilarias, o que reforça o ciclo de desagregação social — embora eu não ache que a cana seja a culpada pelo drama dos kaiowás, como acusa o documentário pop À Sombra de um Delírio Verde.

O outro problema saganiano da argumentação é apresentar uma dicotomia falsa entre terra e outros problemas sabidamente existentes. Sagan chama isso de exclusão do meio-termo. É mais ou menos como quando um político diz que tirar dinheiro de um programa qualquer criado por seu adversário permitiria construir “x casas populares”. As opções frequentemente não podem ser, e não são, excludentes.

O fato de os índios estarem desassistidos, desnutridos e doentes e precisarem de auxílio do governo (e também, por que não, de alguma simpatia da sociedade “civilizada”, algo de que definitivamente não gozam em Mato Grosso do Sul) não lhes anula uma demanda legítima pelo reconhecimento de terras que são deles. E que, no caso de Mato Grosso do Sul, foram-lhes arrancadas em tempos recentes pelo próprio governo para serem entregues ao “setor produtivo”. E cuja devolução, convenhamos, não vai exatamente quebrar o país: as áreas guaranis já demarcadas, lembra Marcelo Leite, correspondem 0,4% do território de MS. Somadas, são menores que a cidade de São Paulo. Segundo O Globo, só os canaviais ocupam no Estado uma área equivalente a 4,3 cidades de São Paulo. Mais uma vez, é preciso colocar as coisas em perspectiva.

O “novo” racismo brasileiro

ESTÁ EM CURSO no Brasil um revival do sentimento mais primordial da nossa nacionalidade: o ódio ao índio. Uma investida sem precedentes nos últimos 40 anos sobre as terras indígenas se avizinha, agora que a bancada ruralista passou com louvor e distinção no crucial teste de forças do Código Florestal. Porém, se contra o código o latifúndio investiu sozinho, contra os povos indígenas ele se volta em aliança com os interesses minerários e o nacional-desenvolvimentismo estatal. Todas essas forças se apressam em clamar pela “segurança nacional” e denunciar os interesses das “ONGs estrangeiras”, mas não se acanham em fazer-se acompanhar de tradings do agronegócio, do capital minerário transnacional e de investidores estrangeiros. Nada contra dinheiro de fora, veja bem; só peço coerência no discurso.

A guerra ao índio é assustadora por dois motivos: primeiro, ela funciona mais ou menos na mesma lógica da Doutrina Bush, a do ataque preventivo. Ora, cento e tantas etnias detêm 13% do território amazônico, portanto, estão quase por default ocupando terras que são ou serão de interesse da agropecuária, da mineração e da expansão do nosso parque hidrelétrico (consta que o setor elétrico tem uma proposta em fermentação de criar “reservas de potenciais hídricos”, uma espécie de contraponto às reservas indígenas). Cabe, portanto, fazer o que for possível para garantir que os silvícolas não ampliem seus reclames territoriais. Ou, para usar a buzzword, é preciso garantir a “segurança jurídica”.

A segunda coisa que torna a guerra ao índio insidiosa é o fato de o lado agressor usar o recurso mais comum em qualquer guerra: desumanizar seu oponente. Já vimos isso antes aqui mesmo: na conquista, quando os portugueses justificaram o extermínio dos tupinambás pelo fato de sua língua não ter os fonemas f, l e r (“não têm Fé, nem Lei, nem Rei”); nas querelas metafísicas sobre se os índios possuíam ou não alma, o que justificaria moralmente sua escravidão (a Santa Madre Igreja em determinado momento resolveu que tinham, passando a bola para os africanos – infelizmente era tarde demais para os tupis da costa); e na imagem sedimentada ate hoje na fronteira de “índio preguiçoso”, “índio libidinoso”, “índio cachaceiro”.

Hoje, o racismo antiindígena se manifesta principal e convenientemente na negação do direito do índio à terra. Tenho ouvido de gente do “setor público” e do “setor produtivo” argumentos na seguinte linha: “Mas índio só quer tênis Nike e caminhonete último tipo! Como quer ser índio assim?” ou “Mas eles querem que construam casas de alvenaria nas aldeias [como compensação por hidrelétricas]!” ou, o mais canalha, que eu ouvi de gente do próprio Ibama em Mato Grosso uns anos atrás: “Mas a Funai plotou esses isolados aí!”

Acho que foi a Eliane Brum que colocou, brilhantemente, que esse tipo de argumento pressupõe uma linha sem gradações entre a pedra lascada e o iPad. Como se os produtos do desenvolvimento capitalista só pudessem ser entregues a nações indígenas em troca de sua indianidade – e de seu território. Como se populações rurais vulneráveis não pudessem ter acesso a carro, televisão, computador, posto de saúde e escola E AO MESMO TEMPO reservarem-se o direito de continuar sendo populações rurais. Mais do que isso, manter sua língua, seus costumes e sua religião. Ninguém está falando aqui de um idílio alencariano, do índio pelado e pintado de verde vivendo “na mais perfeita harmonia com a natureza”. Mas daí não decorre logicamente que a alternativa seja a assimilação e a destituição.  Facilita se pensarmos os índios como agricultures familiares que calham de falar outras línguas.

Ah!, dirá Kátia Abreu, mas agricultor familiar não tem esse tantão de terra que os índios têm! Em seu artigo na Folha no último sábado, a senadora faz uma conta aparentemente indignada: 107,7 milhões de hectares para 517 mil índios, o que dá 206 hectares por índio, mais ou menos. Como não sei quantos hectares a senadora e seus filhos possuem, vou usar como indexador a área de uma única fazenda do meu amigo senador Blairo Maggi (PR-MT), que (vai soar estranho, mas é verdade) é uma liderança ruralista moderna e bastante progressista. Nada pessoal, senador. Mas uma única fazenda do empresário e parlamentar no nordeste de Mato Grosso tem 80 MIL hectares. Usemos esse exemplo extremo para criar um índice de latifúndio (chamemo-lo provisoriamente de “Indimaggi”). Os caiapós, que são um grupo bem fornido de terras, ocupam uma área equivalente à da Áustria entre Mato Grosso e Pará. Seu território é dividido entre 8.000 almas, o que lhes dá um Indimaggi de apenas 0,017. Ou seja, cada caiapó teria “para si”, se fosse um fazendeiro, menos de dois centésimos do que Blairo Maggi possui em uma única propriedade. Só para colocar as coisas em perspectiva.

Enfim, o assunto não se esgota aqui. Ao contrário, a guerra está apenas começando: tudo indica que amanhã, quarta-feira, o STF julgará os famosos embargos de declaração, ou seja, ações contrárias, à homologação da terra indígena Raposa-Serra do Sol. Trata-se de um ponto precioso à agenda ruralista, com garantia de barulho qualquer que seja o resultado. Prometo encontrar tempo para voltar ao assunto em outro post.

PS (02/11): Só para colocar as coisas mais em perspectiva ainda, os 206 hectares que nós assumiremos aqui serem a parte que cabe a cada índio no latifúndio Brasil equivalem a menos de dois módulos fiscais, considerando a medida máxima do módulo fiscal em municípios da Amazônia (110 ha). Estendendo esse raciocínio distributivo ao absurdo, se cada índio fosse um proprietário de terras, ele seria considerado um pequeno proprietário, não um latifundiário. Faria até jus às dispensas de reserva legal e recomposição de APP do Código Florestal.

 

Quantos megawatts-hora vale Alter do Chão?

LI NO GLOBO no último domingo, no Valor hoje e na testa dos eletrocratas desde 2009 que Dilma, a Elétrica, vai mandar pau agora para barragear o último grande rio da margem direita do Amazonas, o Tapajós. Construirá perto da cidade de Itaituba a quarta maior hidrelétrica do país, São Luiz do Tapajós, que aliás já tinha seu calendário de licenciamento todinho definido antes mesmo de serem iniciados seus estudos de impacto ambiental. Por São Luiz e outras usinas próximas, Dilma baixou até mesmo um decreto-lei, digo, Medida Provisória, cortando meia-dúzia de unidades de conservação para lhe acomodarem os reservatórios. O país deve estar mesmo precisando pra caralho dessa energia, com esse crescimento brutal de 1,6% esperado para 2012.

À parte o crime de alagar o Parque Nacional da Amazônia, primeira unidade de conservação da região, e de induzir ocupação e desmatamento nas últimas florestas intocadas do Pará, São Luiz me preocupa pelo que está centenas de quilômetros a sua jusante: Alter do Chão, uma praia espetacular na foz to Tapajós considerada pelo jornal The Guardian uma das top 10 do Brasil (e olha que aqui tem muita praia).

Não faço ideia do que a regulação do fluxo do Tapajós fará com Alter, uma frágil língua de areia perto de Belterra, na “Grande Santarém”. Pode ser que a barragem, que terá um grande reservatório, seque a praia alguns meses do ano, tornando-a impraticável na seca — que é justamente a estação dos turistas. É possível que não aconteça nada, devido ao colossal volume de água do Tapajós, algo que só quem já tomou açaí na orla de Santarém consegue apreender.

O que me assusta é que para Dilma, a Elétrica, essa questão não se coloca em momento algum. Esse debate não foi aberto. A população do Pará não foi chamada a opinar, e não será quando os estudos estiverem prontos. Todo e qualquer valor, seja ele biológico, cultural, estético, é convertido em megawatts-hora, a moeda universal da eletrocracia dilmista, cuja cotação sempre está nas alturas. E depois transacionado e convertido em reais para compensações nas quais os nativos podem ficar com a sensação de que receberam troco errado ou que a casa de câmbio roubou na comissão. Quantos megawatts-hora vale o hotspot de biodiversidade de aves do Parna da Amazônia, que será afogado? Quantos megawatts-hora vale Alter do Chão? Existe justificativa ética para fazer essa conta?

Às vezes a impressão que dá é que essa sanha barrageira tem o único objetivo de provar para o Fernando Henrique que no governo petista não tem apagão. Sacrificamos um valor presente, os rios da Amazônia, para construir uma poupança energética para atender, quem sabe, demandas de carga que se apresentem em algum momento do futuro, como se o Brasil estivesse se preparando para uma reindustrialização soviética à base de alumínio e celulose, e não migrando para serviços e indústrias de base tecnológica (ou é esse o plano, presidenta?). Como se o apagão ambiental não fosse se consolidar como a herança maldida da era Lula/Dilma para seus sucessores.

Desmatamento em alta

CERTOS HÁBITOS são difíceis de largar. Um deles é o hábito que o tal “setor produtivo” do Nortão do Brasil tem de meter a buldôzer na floresta sempre que a economia dá uma esquentadinha e que o governo cochila na vigilância. Aparentemente foi isso o que aconteceu na Amazônia em agosto, quando o desmatamento explodiu 220%, segundo dados do sistema Deter, do Inpe.

A disparada da devastação foi solenemente ignorada pela imprensa brasileira. Talvez porque desta vez a divulgação do dado do Deter não tenha sido acompanhada do tradicional bumbo-entrevista-coletiva da ministra Izabella Teixeira, o que diz muita coisa sobre a nossa imprensa e sobre a estratégia tradicional do governo de faturar o que é bom e esconder o que é ruim (mais sobre ela neste artigo primoroso de Leão Serva). O Inpe postou o dado no site e ficou bem quietinho. Coube ao abelhudo Gustavo Faleiros, do site O Eco, fazer a lição de casa e ir fuçar a página do Deter para trazer os dados a público. Este escriba replicou a história no blog de notícias da Nature. E ficou nisso. Registre-se que os dados do Deter foram represados durante três meses, um silêncio sem precedentes atribuído por uma fonte próxima à “desorganização” do Ministério do Meio Ambiente, e não a algum tipo de censura. Eu até acredito, porque os dados eram bons. Mas qualquer tipo de represamento contraria o espírito de transparência total com o qual o Deter foi criado. Sinal dos tempos.

Os dados de agosto iniciam a série de cifras mensais do desmatamento de 2013. A de 2012 ainda ruma para mais uma baixa recorde, o que fará o governo comemorar na COP de Doha, no fim do ano, e silenciará todas as críticas externas sobre a frouxidão com que Dilma Rousseff conduziu a débâcle do Código Florestal no Congresso. Os próximos dois meses serão decisivos para sinalizar a tendência, já que as chuvas pesadas começam em novembro/dezembro e desmatar fica mais complicado. Mas os dados de agosto sinalizam fatores preocupantes:

Primeiro, que a economia está bombando. A soja passou o minério de ferro como item principal da pauta de exportações do Brasil, as terras agrícolas estão inflacionadas (só em Sinop, MT, o preço do hectare subiu 150% em 36 meses) e o preço da comida, como sabe qualquer pessoa que frequente o supermercado, não para de subir. Se a queda no desmatamento entre 2004 e agora se deveu 50% à ação do governo e 50% à queda dos preços das commodities, como indica um estudo recente da PUC (via @Imavieira), há um risco de reversão da tendência, embora o mesmo estudo afirme que a pecuária não tem um comportamento linear. Além disso, o ouro também subiu, o que tem provocado uma corrida de garimpeiros aos rios do sul do Pará.

Depois, que existe um sentimento crescente no setor produtivo e em seus representantes no Congresso de que o governo está abandonando a mão pesada contra o crime ambiental. O Código Florestal é o sintoma mais agudo, mas lembrem-se da Lei Complementar 140, antes dele, que desautorizou o Ibama. Certeza de lucro no curto prazo e confiança na impunidade é o binômio tradicional que levou 18% da Amazônia a virar fumaça.

Para piorar, o governo tem atuado ativamente para dar conforto psicológico aos desmatadores ao detonar, numa canetada da presidenta Dilma, seis unidades de conservação no eixo da BR-163 para acomodar, sim, claro, hidrelétricas. Ora, quem já era homem barbado ou moça feita quando irmã Dorothy morreu, em 2005, há de se lembrar que as áreas protegidas da 163 foram criadas justamente para barrar o desmatamento desenfreado. Seria leviano dizer que há uma correlação entre o pico de desmatamento em agosto (concentrado justamente ao redor da estrada) e a MP que reduziu os parques; não é de hoje que a motosserra vem subindo a 163. Mas parece óbvio que flexibilizar áreas protegidas é a maneira errada de dizer que o poder público não quer o correntão passando por ali.

Por fim, um alerta: o SAD, sistema do Imazon que monitora o desmatamento mês a mês e garante a transparência da informação mesmo quando o governo não colabora, deu um sinal oposto ao Deter em agosto: mostrou uma queda de 3%. O Imazon ficou de soltar nesta semana uma análise para explicar a divergência, mas segundo me informou Carlos Souza Júnior, pai do sistema, é possível que parte dos desmates vistos pelo Deter agora tenham sido computados pelo SAD em julho, quando este mostrou 50% de crescimento na devastação.

A culpa é do Espírito Santo

O GOVERNO NÃO SABE mais em quem botar a culpa pelo desastre de relações públicas que foi a aprovação das mudanças na MP do Código Florestal. Senadores aliados fecharam o acordo com os ruralistas (que, aliás, também são aliados), aparentemente com supervisão e bênção do Planalto, só para Dilma negar tudo três vezes e por escrito no dia seguinte e mandar Ideli dizer que não foi ela. Ontem a bancada da motos…, digo, do campo, obstruiu a votação da MP na Câmara, reclamando, com justeza, de quebra de acordo. Quem tem filhos sabe como essa dinâmica funciona toda vez que eles aprontam alguma.

Minha sugestão à presidenta: culpe o Espírito Santo de Deus. Foi ele, afinal, quem soprou no ouvido da senadora Kátia Abreu (PSD-TO) a fórmula mágica que mudou a “escadinha” (não, o nome não foi inspirado em nenhum personagem de favela movie) de forma a beneficiar médios e grandes proprietários com redução das faixas de recomposição em matas ciliares.

Só para lembrar, a questão das chamadas APPs ripárias é a maior polêmica do Código Florestal. Os ruralistas sempre se opuseram à recuperação de APPs, alegando que isso seria o genocídio dos pequenos produtores. “O grande pode pagar, o problema é o pequeno, coitadinho”, era a cantilena. O governo resolveu a vida dos pequenos escalonando as faixas de reposição de acordo com o tamanho da propriedade. E ai, tchan, tchan!, os ruralistas disseram que não servia porque seria o genocídio dos médios produtores. No final, o conceito informal de “médio” foi ampliado de 4 a 10 para 4 a 15 módulos fiscais, a reposição mínima caiu de 20 para 15 m (de 4 a 10 MF) e de 30 para 15 (de 10 a 15 MF). Para o restante (ou seja, o latifúndio), o mínimo a repor caiu de 30 para 20. Ou seja, quanto maior sua propriedade, mais você se beneficia. É incrível que o setor ambiental não tenha notado isso e feito um escândalo.

Agora, really, focar a ira presidencial na “escadinha” tem cheiro de Samuel Beckett. Porque, das barbaridades que a comissão fez com a MP 571, reduzir as APPs foi o de menos.

Para começo de conversa, o parágrafo 13 do artigo 61A contém um inciso que torna toda essa discussão de 15 metros pra lá, 15 metros pra cá inútil: permite recuperar APP com “árvores frutíferas”. Isso mesmo: quaquer laranjal agora vale como APP. Quero crer que foi um erro de redação, como aliás acoteceu com a 571 original. O texto também obriga o governo a anistiar todas as multas por desmate sem licença fora de reserva legal e de APP, tornando o licenciamento de propriedades rurais uma peça de ficção (um cínico argumentaria que já é, agora ficou apenas coerente, OK). Isso para não falar no Artigo 1, que teve sua redação revista e piorada em relação até mesmo ao texto da Câmara e devolve o caráter de código rural ao texto.

A hora da verdade está marcada para 8 de outubro, quando ou bem o Congresso aprova as mudanças, ou bem a MP caduca. Não dá para prever o final desse filme argentino, mas arrisco aqui um palpite: passa tudo como está, Dilma veta o artigo 61A pra fazer um buniti e esquece o resto. Haverá choro e ranger de tratores, mas o pessoal no campo vai ficar feliz: terão conseguido desmoralizar o Código Florestal de tal forma que cumpri-lo ou não não importará muito. Essa é a “segurança jurídica” pela qual eles tanto lutaram.

“Ambientalista” do STF libera Belo Monte

ALEGRIA DE POBRE e índio dura pouco. Depois de uma semana de interrupção por decisão do TRF de Brasília, a hidrelétrica de Belo Monte ganhou ontem à noite mais uma liminar permitindo sua continuação. Desta vez, quem assina a ordem é o ministro Ayres Britto, tido e havido como o maior ambientalista do Supremo e com um histórico de proteção a direitos coletivos e difusos.

Antes de xingar Ayres Britto, lembre-se de suas posições tradicionalmente progressistas, da anencefalia às células-tronco à união homoafetiva, e de seu voto histórico a favor dos índios no julgamento de Raposa-Serra do Sol. Lembrou? Pronto, pode xingar agora.

O presidente do STF deferiu um pedido da Advocacia-Geral da União pela continuidade da obra por julgar que o TRF descumpriu decisão do Supremo ao embargá-la. O objeto da pendenga é uma ação movida pelo Ministério Público do Pará em 2005, que pede a nulidade do licenciamento de Belo Monte por considerar que os índios deveriam ser ouvidos pelo Congresso Nacional antes de o Ibama conceder qualquer licença.

Para ninguém achar que os procuradores estão caçando pelo em ovo, o que o MPF de fato faz com frequência, a necessidade de oitiva dos índios foi apontada pela própria Funai no parecer técnico que atesta a viabilidade da obra — desde que cumpridas certas condicionantes. Ou seja, havia (e há) uma demada real por parte das comunidades afetadas.

Ao se pronunciar em favor da obra, a então presidente do STF, Helen Ellen Gracie, concordou que havia problemas jurídicos, mas em nome da “ordem econômica” mandou seguir com a barragem até que se julgasse o mérito. O MP recorreu, entrou com nova ação no TRF, perdeu após um julgamento esquisito, recorreu de novo, ganhou, a AGU chiou. Agora, Ayres Britto emula Ellen Gracie e manda seguir com Belo Monte até que se julgue o mérito da ação do MP.

Antes que você xingue o poeta sergipano de novo, lembro que ele agiu da mesma forma com Raposa: mandou suspender a operação da PF que tirava os arrozeiros da terra indígena e, no mérito, decidiu contra os arrozeiros.

A diferença, aqui, é que Belo Monte será um fato consumado quando se julgar o mérito. Depois de construída a usina e empatados R$ 23 bilhões, quem é o ministro do Supremo que vai dizer que o licenciamento foi ilegal? Ayres não será, já que ele se aposenta em dois meses. Vão deixar na mão do ex-AGU Tóffoli?

 

Ártico já tem o maior degelo ha história

A desgraça em tempo real: a linha azul mostra a extensão de gelo marinho (área so oceano com pelo menos 15% de mar congelado) no Ártico medida em 2012 (crédito: NSIDC)

QUANDO A REPÓRTER Aline Ribeiro, da revista Época, publicou dois domingos atrás um infográfico profetizando que a perda de gelo no Oceano Ártico em 2012 seria maior que em 2007, segundo análise da Universidade de Illinois, achei que ela estava fazendo uma aposta correta, porém arriscada: a estação de degelo vai até meados de setembro, e não importa onde esteja a curva de derretimento em agosto, ela pode mudar de direção muito depressa. Eu estava no Oceano Ártico em agosto do ano passado, a 950 km do polo Norte, e todos esperavam que a extensão mínima em setembro fosse ficar menor que em 2007, mas na última semana de degelo as condições meteorológicas mudaram e um pedaço de mar recongelou (embora a espessura de gelo estimada tenha sido a menor da história até então).

Pois bem: as dúvidas acabaram. O Centro Nacional de Ciência e Tecnologia da Criosfera, em Porto Alegre, acaba de divulgar que a superfície de gelo marinho em 2012 já é a menor desde que as medições co satélite começaram, em 1979. E isso com mais 20 dias de degelo pela frente. O Centro Nacional de Dados sobre Gelo e Neve dos EUA, uma espécie de Inpe polar que dá a “taxa oficial”de degelo todo ano, ainda não soltou nenhum comunicado à imprensa. Mas o que circula entre os glaciologistas desde sábado é que ninguém acredita mais que variações meteorológicas possam reverter a situação.

Então temos aí mais um item para a listinha do apocalipse, somando-se à onda de calor no hemisfério Norte, à seca recorde nos EUA que levou para as picas o preço do milho, à seca no Nordeste do Brasil, à cheia recorde na Amazônia que se seguiu a uma seca recorde em 2010, que por sua vez aconteceu ao mesmo tempo que a seca recorde na Rússia que também levou para as picas o preço dos grãos.

De que evidência mais essas pessoas precisam?

Ele quer salvar o Ártico (mas precisa combinar com os esquimós)

TODA VEZ que os aldorrebelos da vida xingam o Greenpeace de “ONG holandesa” eu dou uma risadinha por dentro e penso em Kumi Naidoo. O diretor-executivo da organização, uma das duas pessoas que mais mandam nela (a outra, pasmem, é uma carioca), é um negão* sul-africano do tamanho de um urso, dono de uma coleção de batiques e de nenhum barbeador, que foi membro do Congresso Nacional Africano e lutou contra o Apartheid ao lado de Jacob Zuma. É difícil imaginar alguém menos holandês neste mundo, e fácil imaginar o quanto Kumi deve perturbar os brancos de papete do Greenpeace com seu discurso de erradicação da pobreza e inclusão social.

Neste momento, Kumi está numa briga de foice contra a Shell, a multinacional – esta sim, holandesa – que se prepara para furar seu primeiro poço de petróleo no oceano Ártico, numa região do litoral do Alasca que até alguns anos atrás era coberta de gelo marinho a maior parte do ano e não é mais graças ao petróleo que a Shell, entre outras empresas, vende por aí para que eu, você e todos os nossos amigos possamos andar de carro. É o que Millôr Fernandes chamaria de “uma coisa redonda”, e que os cientistas preferem chamar pelo nome mais antipático de retroalimentação positiva: a queima de hidrocarbonetos esquenta o planeta, o que derrete o Ártico, o que abre novas áreas para a exploração de mais hidrocarbonetos, o que esquentará mais o planeta e derreterá mais o Ártico. O Greenpeace está tentando impedir que a Shell se lance em sua aventura polar, queimando o filme da empresa (às vezes de forma bem engraçada) com seus consumidores e acionistas, como se donos de carro tivessem escolha e algum acionista de empresa de petróleo fosse contra a exploração de petróleo.

A ação faz parte de uma campanha maior do Greenpeace para salvar o Ártico, que Kumi lançou em junho durante a Rio +20 (vou te dar uns minutos para se lembrar dessa conferência) numa entrevista coletiva com o dono da Virgin, Richard Branson, e a atriz Lucy Lawless, AKA Xena, a Princesa Guerreira (que aos 50 ainda bate um bolão). O objetivo é mobilizar a opinião pública para transformar o chamado Alto Ártico, a área do oceano glacial ainda coberta por gelo marinho, numa área protegida internacional, livre de pesca, extração de óleo e outras atividades econômicas.

Para quem acha que isso é delírio de hippies, permita-me lembrar que há um precedente: em 1991, um continente inteiro, a Antártida, foi declarado área de proteção ambiental, e todas as atividades econômicas propostas ali, congeladas por 50 anos. No Ártico o buraco é mais embaixo (ou em cima), claro, porque a maior parte da região está sob jurisdição de meia dúzia de países (EUA, Canadá, Rússia, Noruega, Dinamarca), e ninguém, em especial os russos, que dia desses tentaram tomar posse do fundo do mar do Polo Norte, abre mão de sua soberania. Mas a extrema fragilidade do ambiente ártico, seu papel na regulação do clima da Terra, sua fauna carismática (que vai do delicioso bacalhau ao tristonho papagaio-do-mar, do urso polar à beluga) e uma beleza que só quem já teve o privilégio de ir para lá consegue apreender, mais do que justificam a tentativa.

Num momento em que o movimento ambientalista mergulha em seu período de maior irrelevância em 40 anos – tendo salvo as baleias, a Amazônia e contado com uma ajudinha de um tsunami e a incompetência dos engenheiros japoneses para salvar o mundo da energia nuclear –, o Ártico é a penúltima causa na qual grupos de pressão como o Greenpeace podem fazer alguma diferença (a última são os oceanos além de jurisdições nacionais, tema sobre o qual o GP estranhamente não faz escândalo).

O diabo é como Kumi e seus greenpeacers farão isso sem serem acusados, com justiça, de agir como uma “ONG holandesa”. No ano passado, meu amigo colecionador de batiques foi preso com Lawless (“lawless” presa, sacou?) e outros ativistas após tentarem escalar uma plataforma da Cairn Energy, uma empresa escocesa que fazia perfurações exploratórias na Baía de Baffin, entre a Groenlândia e o Canadá. O Greenpeace argumenta, com razão, que vazamentos de óleo naquela região produziriam desastres de grandes proporções, inclusive para o modo de vida tradicional inuíte, já que os 56 mil groenlandeses vivem basicamente daquilo que o mar lhes fornece.

Acontece que os groenlandeses estão babando pelo dinheiro do petróleo, e todos com quem eu conversei que falavam alguma coisa de inglês compartilhavam uma raiva imensa do Greenpeace. Afinal, raciocinam, quem esses caras pensam que são para dizerem que nós precisamos viver de pescar camarão e caçar foca para o resto da vida? Com que direito eles negam às populações do Ártico uma opção de desenvolvimento econômico e não fazem a mesma coisa, digamos, com a Statoil no Mar do Norte?

Fiz essa pergunta a Kumi da última vez que nos encontramos, no Rio. Sua resposta: “nós somos contra qualquer exploração de petróleo”. OK, legal, eu também, mas isso não responde à pergunta. Para ser justo, não é só gente morena que sofre bullying do Greenpeace por causa de petróleo: os brancos de olhos azuis das areias betuminosas do Canadá também apanham. Mas insisto: por que dois pesos e duas medidas com a Groenlândia e o Mar do Norte? Claro, os esquimós, como os brasileiros, podem se beneficiar do dinheiro do petróleo da maneira norueguesa (usando a riqueza para se desenvolver de forma sustentável) ou da maneira venezuelana. Mas a decisão tem de ser deles. Os americanos continuarão dirigindo SUVs mesmo que não saia uma gota de óleo do Ártico (de fato, a maior parte do óleo americano nas próximas décadas sairá dos próprios EUA continentais, durma com este barulho). O Greenpeace sabe disso.

À parte o problema groenlandês, mais ao sul, transformar o Alto Oceano Ártico num santuário parece uma ideia factível, até porque o mundo não precisa do petróleo extra que possa ser descoberto por lá (em parte, graças ao pré-sal, o que pode produzir o efeito curioso de Lula dizer daqui a um tempo que salvou o Ártico). Isso, porém, não vai eliminar a maior ameaça ambiental à região: a mudança climática. Segundo dados do National Snow and Ice Data Center, dos EUA, que acompanha em tempo real a cobertura de gelo marinho, 2012 baterá 2007 como o ano de maior perda de gelo no polo Norte. Nem o negão do Greenpeace pode impedir isso.

PS: Juro que não combinei nada com ele, mas enquanto eu escrevia este post, ontem à noite, Kumi Naidoo escalava a Prirazlomnaya, a primeira plataforma de petróleo do mundo construída especialmente para resistir ao gelo marinho, que a petroleira russa Gazprom instalou no Oceano Ártico, no Mar de Pechora. Leia aqui o blog de Kumi sobre a ação.

 

* Kumi nasceu em Durban e é de família indiana, mas os sul-africanos dividem a si mesmos em “brancos” e “pretos”, e os indianos se colocam na segunda categoria.

Como o gás natural derrubou as emissões dos EUA. E por que não dá pra confiar demais nele

Plataforma da Cabot Oil and Gas em Springville, PA

A MAIOR revolução energética do século 21 não foi planejada. Ela está acontecendo longe dos centros de pesquisa avançada e mais longe ainda da mesa de negociações de clima das Nações Unidas. Seu palco é um cu-de-mundo chamado Susquehana, um condado de estradas de terra e caipiras tementes a Deus na divisa entre os Estados da Pensilvânia e de Nova York, nos EUA.

Desde 2007, essa região tem sido palco de uma febre de exploração de gás natural, estocado a 800 m abaixo da superfície numa camada de rochas conhecida como folhelho Marcellus, ou Marcellus shale, em inglês. Trata-se de um antigo mar raso que se estendia por um terço de Nova York, metade da Pensilvânia e ia até o atual Ohio, conhecido hoje pelo singelo apelido de “Arábia Saudita do gás”. O Marcellus é uma das formações onde a indústria dos hidrocarbonetos americana tem aplicado uma técnica conhecida como fraturamento hidráulico, ou “fracking”, que permite acessar óleo e gás em formações rochosas não-convencionais.

A técnica foi criada por um texano teimoso chamado George Mitchell, em 1999. Mitchell já sabia que folhelhos continham muito gás, mas ninguém até então sabia como extraí-lo, já que ele fica preso em fendas minúsculas na rocha. Disposto a abrir a fechadura dos folhelhos, Mitchell passou 20 anos testando maneiras de reativar as fendas ricas e gás. Já estava quase falido quando descobriu a fórmula: água, areia e químicos surfactantes injetados a alta pressão em poços horizontais de quilômetros de extensão.

O sucesso do “fracking” foi tão estrondoso e tão rápido que passou longe do radar dos analistas de clima e energia e do IPCC. Em cinco anos, derrubou o preço do gás natural nos EUA de US$ 15 o milhão de BTUs para US$ 2 (no começo deste ano). O país, que preparava o retrofit de vários portos para importar gás liquefeito do Qatar, hoje estuda um novo retrofit desses mesmos portos para exportar gás da Pensilvânia e do Texas a partir de 2014. E tudo isso considerando que Nova York, que abriga a fatia do leão das jazidas do Marcellus, ainda tem uma moratória ao “fracking” em vigor.

Outra maneira de medir o sucesso do fraturamento hidráulico é seu impacto nas emissões dos EUA. O gás barato tem desestimulado as termelétricas a carvão, e o presidente Barack Obama resolveu surfar nesta onda e baixar, no começo do ano, uma regulação da EPA (Agência de Proteção Ambiental) limitando as emissões das usinas a carvão. Aqui entra a genialidade política de Obama, faturando em cima de algo que já estava mais ou menos no script. A participação do carvão na matriz energética caiu de 51% em 2005 para 43% em 2011, e a de gás subiu no mesmo período de 14% para 24% , segundo um relatório da Agência de Informação sobre Energia dos EUA divulgado na semana passada.

Segundo me contou David Victor, professor da Universidade da Califórnia em San Diego e um dos poucos teóricos das relações internacionais que levam o aquecimento global a sério, de 2006 a 2011 as emissões de CO2 dos EUA caíram em 186 milhões de toneladas. Para você ter uma ideia do que isso significa, é como se o Brasil tivesse seguido o receituário do Greenpeace e zerado as emissões na Amazônia. É claro que não foi só mérito do gás: tivemos também uma crisezinha econômica nos últimos anos. Mas o sinal que o “fracking” manda é poderoso, especialmente aos burocratas da Convenção do Clima, que passaram os últimos 20 anos parolando sem conseguir realizar o que os capiaus furadores de poço da Pensilvânia fizeram em 5, seguindo apenas seus bolsos.

O mundo está salvo, então? Podemos ir embora? Mais ou menos. Como toda boa festa, a do gás de folhelho também tem convidados barraqueiros. Nos EUA, eles atendem principalmente por três nomes: Tony Ingraffea, Bob Howarth e Mark Ruffalo. Os dois primeiros são professores da Universidade Cornell. O último, bem, é um cara que fica verde e quebra tudo quando passa raiva.

Ruffalo virou ativista antifracking depois de comprar uma casa nas Catskills, montanhas idílicas a noroeste de Nova York de onde vêm os rios que abastecem a metrópole e que estão no mapa da indústria do gás. Howarth e Ingraffea fizeram uma série de contas e descobriram que as emissões de sistemas de gás natural são maiores que as do carvão, pelo menos nos primeiros 20 anos. Isso porque os poços fraturados passam semanas “vomitando” metano juntamente com água depois da perfuração. O vazamento é pelo menos duas vezes maior do que em poços convencionais, perfurados sem água. Como o metano é muito mais eficiente que o gás carbônico em reter radiação infravermelha (e aquecer a Terra), a multiplicação de poços pode aumentar perigosamente as emissões de metano dos EUA, a ponto de anular os ganhos com a redução de CO2.

Isso não seria um problema no longo prazo, já que o metano tem também uma vida curta na atmosfera. Acontece que os próximos anos serão cruciais para a humanidade, já que as emissões globais teriam de alcançar seu pico em 2020, no máximo. Um tratado internacional contra o CO2 tem chance zero de dar conta dessa janela de oportunidade. Uma das maneiras de ganhar tempo, defendida pelo próprio governo dos EUA, é cortar emissões de fuligem e metano, que juntos respondem por 40% da elevação da temperatura. É difícil ver onde o “fracking” se encaixa nessa redução.

Mesmo que Howarth e Ingraffea estejam errados em seus cálculos, o affair do gás de folhelho traz dois recados importantes para a comunidade internacional: primeiro, a mudança climática não será combatida de cima para baixo sob auspícios da ONU. O gás da Pensilvânia é um trunfo do modelo americano: não faça nada na arena internacional e espere um “fix” tecnológico para o problema. Segundo, é arriscado pôr todos os ovos em uma cesta só: além do risco de emissões de metano, o mesmo “fracking” também está sendo usado para extrair petróleo no Texas e na Dakota do Norte, o que pode também aumentar as emissões totais de CO2 e anular o ganho com a redução no carvão mineral. Ou seja: o mercado não pode ser deixado tão livre quanto o Partido Republicano almeja, se a ideia é produzir algum tipo de bem comum.

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