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Crianças famintas e com frio no gueto de Varsóvia

A Guerra e a Peste: A Epidemia de Tifo no Gueto de Varsóvia

Por Amanda Tognoli da Silva

Guerra, Peste e Fome andam sempre juntas. O Tifo, uma doença infecciosa com altas taxas de transmissão, sendo facilmente contraída pela população por meio de pulgas e piolhos infectados, também gosta desta companhia. Não por acaso, o Gueto de Varsóvia, local precário onde milhares de judeus foram presos pelo governo alemão durante a Segunda Guerra Mundial, sofreu uma grande epidemia de tifo. Porém, com a ajuda de toda a comunidade, a epidemia foi debelada. Conhecendo um pouco mais sobre esse triste episódio da história e das medidas sanitárias e políticas que os moradores do Gueto de Varsóvia tomaram, o que podemos aprender?

Tifo: uma doença fatal

O Tifo é o nome genérico de várias doenças causadas pelas bactérias do gênero Rickettsias. Grande parte dessas bactérias se desenvolve num reservatório animal, e é transmitida ao homem pela picada ou contaminação com fezes de insetos infectados, como piolhos e pulgas. Desta forma, a contaminação com as fezes infectadas ocorre através de cortes na pele ou membranas mucosas dos olhos ou da boca.

Rickettsias vista em microscópio

Imagem de Rickettsias ao microscópio. As Rickettsias, bactérias microscópicas que causam o tifo epidêmico. Em geral, estas bactérias são carregadas em pulgas, carrapatos e piolhos.

As bactérias se proliferam nas células endoteliais dos vasos sanguíneos e podem provocar lesões graves. Os sintomas começam cerca de 7 a 14 dias após a bactéria entrar no organismo. Dentre os sintomas identificados estão febre, dor de cabeça intensa, cansaço e erupções cutâneas que geralmente começam no peito e se espalham para os braços e pernas. Se a infecção for grave, a pressão arterial pode baixar, os rins podem apresentar mau funcionamento e pode haver o desenvolvimento de gangrena e pneumonia.

Charles Nicolle encontra as Ricketsias

Se não tratado, o tifo pode ser fatal. Atualmente, o tratamento do tifo se faz por meio da administração do antibiótico doxiciclina por via oral. O paciente toma o antibiótico até melhorar e não apresentar febre por 24 a 48 horas. Entretanto, é necessário tomar o antibiótico por pelo menos 7 dias.

Em 1928, Charles Nicolle recebeu o Prêmio Nobel por ter descoberto o papel do piolho na transmissão do tifo em 1909. Nicolle fez observações e concluiu que os pacientes não eram mais contagiosos após receber tratamento hospitalar, tomar banho e trocar de roupas. Desta forma, ele colocou piolhos sem a bactéria em macacos infectados e depois transferiu os piolhos, agora infectados, para macacos saudáveis, que acabaram desenvolvendo tifo.

Charles Nicolle

Charles Nicole, infectologista francês (1866-1936), em seu ambiente de trabalho. ele descobriu o papel do piolho na transmissão do tifo, o que lhe rendeu o Nobel em 1928.

 

Os diferentes tipos de Tifo

Os tipos mais comuns de tifo são o epidêmico e o endêmico. O tifo epidêmico é causado pela bactéria Rickettsia prowazekii e transmitida pelas fezes do piolho do corpo humano, Pediculus humanus. Por outro lado, o tifo endêmico tem como vetores Rickettsia typhi ou Rickettsia mooseri, transmitidas pelas pulgas do rato, Xenopsylla cheopis. Os sintomas do tifo endêmico são menos intensos que os do epidêmico.

A infecção ocorre principalmente em áreas com más condições sanitárias e de higiene e com grande aglomeração de pessoas. Desta forma, campos de refugiados, prisões, áreas de guerras civis e de extrema pobreza são áreas preferenciais para os surtos de tifo. como se pode ver, há focos dessa doença espalhados pelo mundo todo.

Epidemias de Tifo na história

O registro mais antigo de uma epidemia de tifo é a praga de Atenas, do século 15 a.C. Este surto supostamente começou na Etiópia e passou pelo Egito, chegando ao porto de Piraeus. Foi observado tosse, vômitos, diarréia e erupções cutâneas. Contudo, tal descrição do surto está aberta a interpretações e muitas doenças podem ser responsáveis por ele como tifo, catapora e peste bubônica.

            Apesar deste registro, muitos autores acreditam que a primeira epidemia autêntica de tifo ocorreu durante a conquista de Granada, na Espanha, em 1492. A doença que abateu a população foi descrita como uma febre maculosa e se parece muito com a descrição moderna de tifo.

            O tifo reapareceu como epidemia durante a Primeira Guerra Mundial. Nesta época, a doença começou na Sérvia e se espalhou para o Centro e Leste Europeu. Da mesma forma, a Rússia teve surtos recorrentes durante a revolução Bolchevique. por fim, segundo as estimativas, 25 milhões de pessoas contraíram tifo entre 1917 e 1925. O saldo da doença foi de 3 milhões de mortes.

            Posteriormente, já durante a Segunda Guerra Mundial, pesquisadores nazistas infectaram 600 prisioneiros de campos de concentração com sangue de pacientes infectados por tifo para testar a eficácia do fenol como tratamento ou vacinação.

Bactérias e Piolhos

            No século XX, o tifo está relacionado às guerras, aos movimento populacional em massa, na má higiene e na fome. As epidemias de tifo que ocorreram após a Segunda Guerra Mundial intensificaram as pesquisas biomédicas. Algumas dessas pesquisas incluíam o uso de pesticidas como o DDT para controlar os piolhos em Nápoles entre 1943 e 1944, e também o uso de antibióticos recém descobertos, como o cloranfenicol. Após muito estudo da vida intracelular da Rickettsia prowazekii e seus efeitos na célula hospedeira, seu genoma foi sequenciado por Andersson et al em 1998.

O Tifo no Gueto de Varsóvia

O discurso alemão sobre higiene influenciou a ideia de que os judeus carregavam doenças. Assim, na ideologia nazista, isso reforçou o discurso de que os judeus seriam a própria doença. Portanto, seria esperado lidar com epidemias, o que no final das contas significou aniquilá-los.

Na Alemanha, havia um grande medo do tifo se espalhar para a população e para o exército por causa de seu impacto depois da Primeira Guerra Mundial, matando 5 milhões de pessoas. Com essa desculpa, os alemães realocaram muitos judeus para os guetos e campos de concentração. Posteriormente, os nazistas criaram uma área chamada Seuchensperrgebiet que era, literalmente, uma área restrita para doenças. Esta área se tornaria o Gueto de Varsóvia, na Polônia.

Crianças famintas e com frio no gueto de Varsóvia

A crianças foram as que mais sofreram durante a ocupação do Gueto de Varsóvia; 

 Em 5 de Outubro de 1940, os nazistas proibiram os judeus de deixar o território do Gueto. Em 15 de novembro deste mesmo ano, uma parede com arame farpado foi construída em volta desta área. Alguns ainda conseguiram escapar por pequenos buracos ou pelo esgoto.

O tifo se alastra no Gueto

O Gueto possuía uma área de 3,4 km², onde foram presos mais de 450 mil judeus.  Um inverno rigoroso e num ambiente de guerra e privações de todo o tipo facilitaram a propagação do tifo epidêmico. No entanto, cerca de 120 mil prisioneiros do gueto infectaram-se pela bactéria, com 30 mil morrendo diretamente por causa da doença e muitos morrendo pela associação da doença com a fome. Assim, a fome no gueto aumentou a epidemia, o que provou aos alemães que os judeus eram portadores de doenças. Para eles, judeus famintos significavam mais comida para o povo alemão. Desse modo, os judeus deveriam ser eliminados, o que pouparia ainda mais comida.

Contudo , até abril de 1941, o foco dos administradores nazistas do gueto era deixar morrer de fome todo residente que não conseguisse comprar comida. a partir de maio deste ano, os novos administradores planejaram construir uma economia auto sustentável no gueto, para não desperdiçar a força de trabalho. Para estes administradores, alguns residentes deveriam receber o mínimo de alimento e nutrição para que pudessem trabalhar. Assim, até setembro, o gueto começou a trabalhar economicamente aos olhos dos alemães. um programa de cozinhas comunitárias, administradas por voluntários, foram responsáveis por prover nutrição básica para ¼  da população.

No entanto, em outubro de 1941, Jost Walbaum, o Diretor de Saúde do Governo Geral, disse que  “Os Judeus são, em sua maioria, os portadores e disseminadores do tifo. Há apenas duas maneiras de resolver isso. Nós sentenciamos os Judeus dos guetos à morte ou atiramos neles…Nós temos uma e apenas uma responsabilidade, que o povo alemão não seja infectado e ameaçado por esses parasitas. Para isso, qualquer meio deve ser correto.”

A epidemia é contida…por quem?

 Neste mesmo mês, contudo, começou um rigoroso inverno e era esperado que as taxas da doença aumentassem. Ao contrário, a curva epidêmica caiu inesperadamente.

Desta forma, Emanuel Ringelblum, o cronista do gueto, escreveu em Novembro de 1941: “A epidemia de tifo diminuiu apenas no inverno, quando geralmente piora. A taxa epidêmica caiu cerca de 40%. Ouvi isso dos boticários, médicos e do hospital.

Inicialmente, por meio de análises de documentos históricos e modelos matemáticos, um grupo de pesquisadores descobriu que a comunidade agiu ativamente para erradicar a doença, poupando cerca de 100 mil vidas. Nesta analise, constatou-se que programas de saúde e práticas de distanciamento social por parte da comunidade foram responsáveis pelo colapso da doença. Por outro lado, verificou-se que o gueto possuía muitos médicos e especialistas que ministraram cursos muito bem organizados sobre higiene pública e doenças infecciosas, assim como centenas de palestras sobre o combate ao tifo.

Fila da refeição no gueto de Varsovia

Fila para comida no Gueto de Varsóvia

Da mesma forma, houve também relatos de universidades secretas, onde jovens estudantes de medicina receberam treinamento sobre como lidar com doenças epidêmicas. Além disso, encorajou-se a higiene geral e limpeza das casas, às vezes usando a força. Ademais, o distanciamento social era considerado um senso comum básico e as quarentenas eram comuns. O Departamento de Saúde, do Conselho Judeu, criou neste período vários e complexos programas de Saúde Publica.

Em síntese, o Gueto de Varsóvia teve inúmeras instituições internas civis, médicas e sociais trabalhando intensamente durante meses para parar a epidemia de tifo. Não obstante o constante esforço da comunidade e de organizações para acabar com a epidemia contribuiu para diminuir a transmissibilidade abaixo do limite crítico, levando a epidemia a uma parada repentina e precoce.

A “Solução Final” e o fim do Gueto

Entretanto, em 1942, os nazistas enviaram muitos moradores do gueto para os campos de concentração que estavam construindo.  Posteriormente, em 1943, o Governador Geral Hans Frank alegou que “razões de saúde publica” eram a causa do “inevitável” assassinato de 3 milhões de judeus na Polônia “. Este foi somente um mais caso óbvio de uma doença usada como arma de guerra e pretexto para um genocídio.

De acordo com Ludwik Hirszfeld, um bacteriologista indicado ao Prêmio Nobel e que viveu no gueto, não tem dúvidas: “No caso da Segunda Guerra Mundial, o tifo foi criado pelos alemães. Iniciado pela falta de comida, sabonete e água, então alguém concentra 400.000 pessoas em um distrito, tira tudo deles e não dá nada, é assim que se cria o tifo. Nessa guerra, o tifo foi trabalho dos alemães.”

O que a epidemia de tifo no Gueto de Varsóvia pode nos ensinar

 “Um povo que não conhece a sua História está fadado a repeti-la”, já dizia o filósofo irlandês Edmund Burke. Uma frase dita há mais de 200 anos nunca foi tão atual.

Visto dessa forma, a epidemia de tifo no Gueto de Varsóvia e a pandemia mundial de covid-19 possuem muitas similaridades. Contudo, ambas doenças relacionam-se a microrganismos invisíveis, que se espalham rapidamente e podem matar milhões. Além disso, ainda não há remédio efetivo para nenhum deles. Portanto, é possível dizer que estudar a epidemia no Gueto seria um ótimo modo de ver como uma doença altamente transmissível pode ser erradicada se toda a população se comprometer para tal. Ao estudá-la, notaríamos que políticas públicas de contenção, uma boa comunicação com a comunidade e a cooperação geral foram, e são, essenciais para o fim da epidemia. Além disso, perceberíamos que a contenção é possível até mesmo nas piores condições sanitárias e no pior cenário político possível, um regime desumano e assassino.

 Contudo, o que nos impede de nos unirmos para vencer este vírus que já tirou tantas vidas? Uma doença que é propagada pelas pessoas, só pode ser detida pelas pessoas. A contenção de uma doença como o tifo depende, sobretudo, do comportamento humano.

SOBRE A AUTORA

Amanda Tognoli da Silva, 24 anos, nascida e criada em Conchal-SP. Estudante de Ciências Biológicas na UNICAMP, apaixonada por astrobiologia e livros de investigação. Grande objetivo como bióloga: a divulgação da ciência.

Para saber mais:

New study explains 'miracle' of how the Warsaw Ghetto beat Typhus. in:https://www.eurekalert.org/pub_releases/2020-07/ru-nse072020.php  
(este texto foi elaborado durante a disciplina Historia das Ciências Naturais, no Instituto de Geociências da Unicamp, no 2º semestre/2020.  Os trabalhos elaborados tinham como tema "As Epidemias e a História da Ciência")