Sobre neandertais e despedidas

Neanderthal_child.jpgDizer adeus nunca é fácil. Publiquei ontem a última coluna no meu blog de biologia evolutiva, o Visões da Vida, do G1. Para combinar com o clima elegíaco da coisa toda, decidi abordar a mais intrigante de todas as extinções de hominídeos (ou homininos, como prefere o grande Roberto Takata): o sumiço dos neandertais. Confiram o texto abaixo. Com um pouquinho de paciência, juro que virá muito material inédito por aí.
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Num dia de despedidas como este, é no mínimo adequado abordar o maior de todos os adeuses, a mãe de todas as despedidas. Ela aconteceu em algum lugar da Europa Ocidental, há menos de 30 mil anos. Esse é o momento aproximado em que os seres humanos anatomicamente modernos se tornaram a única espécie de hominídeo da Terra (há controvérsias; um evento parecido pode ter se dado um pouco mais tarde no Sudeste Asiático, mas deixemos isso para lá por enquanto). Quem nos deixou para sempre foram os neandertais, provavelmente as criaturas mais parecidas com o homem que já existiram. O sumiço desses primos tão próximos é indiscutível; difícil mesmo é explicar por que ele aconteceu.
E, antes que você pergunte, sim, o desaparecimento dos neandertais – e o dos outros hominídeos que chegaram a conviver com a nossa linhagem – exige uma explicação especial por uma razão bem simples: é algo totalmente fora da série. Durante os últimos 6 milhões de anos, a convivência entre múltiplas espécies mais ou menos “humanas” na Terra foi a regra, e não a exceção. Por razões completamente pessoais, costumo dizer que a situação-padrão durante a trajetória evolutiva humana não era muito diferente da que se vê em “O Senhor dos Anéis” ou em outras obras da literatura de fantasia. Várias espécies humanoides inteligentes conviviam no mesmo mundo – como neandertais, Homo erectus e Homo sapiens nos papéis de elfos, anões, hobbits e quejandos.
O caso dos neandertais é especialmente chocante porque, em plena Era do Gelo, os seres humanos anatomicamente modernos oriundos da África invadiram uma Europa que era dominada por nossos primos havia 150 mil anos – e no fim do processo só restaram os africanos recém-chegados. As visões mais épicas desse processo traçam um quadro de combate e genocídio, no qual os humanos modernos “superiores” fizeram picadinho dos “primitivos” neandertais e, assim, herdaram a Terra. Análises do DNA de pessoas de hoje e do material genético obtido de ossos neandertais parecem favorecer a ideia de que uma população substituiu a outra (sem especificar bem como, é bom ressaltar), porque até hoje não foram encontrados exemplos inequívocos de genes neandertais no organismo de gente moderna.
Apesar desse quadro aparentemente simples, porém, as pesquisas mais recentes estão mostrando que é preciso cautela na hora de postular uma vitória de goleada dos humanos modernos sobre os neandertais. Os dados mais atualizados sobre essa controvérsia estão resumidos numa reportagem equilibradíssima, assinada por Kate Wong, na edição deste mês da revista “Scientific American”. Os últimos estudos mostram que o suposto abismo comportamental e cultural entre “nós” e “eles” é muito menor do que nos acostumamos a imaginar. É fato que nós sobrevivemos e eles pereceram – mas a diferença entre uma coisa e outra foi decidida nos detalhes e talvez tenha envolvido uma boa dose de sorte.

Guerra e paz

Primeiro, é bom tirar da cabeça a imagem de uma guerra de conquista entre humanos modernos recém-chegados e neandertais na defensiva. Seria, para começo de conversa, uma guerra absurdamente lerda: levando em conta apenas a Europa, o intervalo entre a chegada dos humanos anatomicamente modernos e o desaparecimento dos neandertais é de uns 12 mil anos (entre 40 mil e 28 mil anos atrás). Isso é o DOBRO do tempo que separa o Brasil do século XXI das primeiras civilizações do Oriente Médio, como os sumérios. Portanto, é MUITO tempo para uma suposta ofensiva-relâmpago. Além disso, não há sinais claros de conflito armado entre as duas espécies, assim como não há indícios indiscutíveis de casamentos mistos, embora alguns fósseis salpicados pela Europa (um deles o famoso “menino do Lapedo”, de Portugal) sugiram, para certos antropólogos e arqueólogos, que algum grau de hibridização ocorreu.
Durante muito tempo, diferenças em tecnologia e em diversidade de hábitos alimentares foram citadas como vantagens competitivas importantes em favor dos nossos ancestrais e contra os neandertais. A sofisticação das ferramentas produzidas pelo Homo sapiens, bem como a nossa maior versatilidade alimentar – obtendo mais alimentos de origem vegetal, pequenos animais, peixes, frutos do mar etc. – teria favorecido os humanos anatomicamente modernos na luta pela sobrevivência.
Mas trabalhos recentes, como o liderado por Chris Stringer, do Museu de História Natural de Londres, sugerem que as diferenças são menos importantes do que parecem. Stringer e companhia mostraram que os neandertais de Gibraltar, território britânico no sul da Espanha, tanto eram capazes de caçar grandes animais em terra como também capturavam focas e golfinhos, coletavam mariscos e abatiam coelhos e aves – uma variedade alimentar comparável à dos primeiros europeus modernos.
Já o americano Bruce Hardy, do Kenyon College, teve a boa sorte de comparar os padrões de ocupação de uma caverna na Alemanha, onde primeiro neandertais e depois humanos modernos viveram. As diferenças, diz ele, são mínimas, embora a variedade de ferramentas produzidas pelos humanos modernos seja um pouco maior. Os neandertais também produziam armas com cabo (grudado com resina vegetal) e faziam instrumentos de osso, capacidade normalmente vista como algo exclusivo dos modernos.
Simbolistas
Até as capacidades simbólicas dos neandertais – ou seja, a produção de arte, adornos corporais e provavelmente linguagem falada – andaram ganhando mais probabilidade nos últimos tempos. Que alguns deles usavam colares de presas de animais no pescoço – a chamada cultura Chatelperroniana – já se sabia há tempos. Alguns especialistas ainda defendem que a cultura Chatelperroniana surgiu apenas por aculturação, com os neandertais copiando os recém-chegados modernos sem saber muito bem o que fazer com os adornos. Outros, como o português João Zilhão, afirmam que as datas do Chatelperroniano antecedem o contato direto com os Homo sapiens, tendo surgido por uma dinâmica própria da sociedade neandertal.
Seja como for, análises do DNA neandertal feitas em 2007 mostraram que eles carregavam uma versão idêntica à humana do gene FOXP2, considerado essencial para o desenvolvimento da fala articulada. É claro que outros genes são importantes para a linguagem, e ainda sabemos muito pouco sobre eles, mas a descoberta, no mínimo, sugere que temos poucas razões para crer que os neandertais não tivessem capacidade linguística como a nossa. É quase um empate em capacidades simbólicas, digamos.
Todos esses dados nos ajudam a encarar com um novo respeito nossos primos extintos, mas também nos deixam numa situação não muito confortável do ponto de vista científico. Por que diabos eles se foram e nós ficamos, então?
Nessa altura do campeonato, só temos hipóteses a esse respeito – algumas delas melhores que outras, claro. Uma das ideias, defendidas por Clive Finlayson, do Museu de Gibraltar, indica que a situação começou a ficar feia para os neandertais muito antes do contato com humanos modernos na Europa, por volta de 55 mil anos atrás. Novos dados paleoclimáticos indicam que o continente passou a sofrer com oscilações bruscas de condições ambientais, do frio intenso para o mais temperado e de volta para o frio intenso. O resultado é que, no tempo de vida de um indivíduo, um ambiente florestal poderia se transformar totalmente em estepe – e voltar a virar floresta ao longo da vida do filho dele. Não é brincadeira se adaptar a mudanças tão radicais.
Talvez seja por isso que outro estudo recente, publicado por Virginie Fabre e seus colegas da Universidade do Mediterrâneo em Marselha (França), tenha detectado sinais de fragmentação populacional no DNA de neandertais de várias regiões da Eurásia. Tudo indica que as mudanças ambientais estavam reduzindo e isolando as populações do hominídeo umas das outras, dificultando cada vez mais a chance de encontrar parceiros saudáveis e ter bebês também com saúde.
Mais dois pequenos detalhes, desta vez relativos ao estilo de vida neandertal, podem ter sido importantes para o sumiço. Outras pesquisas indicam que menos neandertais conseguiam chegar à idade de ser avós do que ocorria entre humanos modernos no fim da Era do Gelo. Isso diminuía o sucesso reprodutivo de um grupo como um todo e talvez dificultasse a transmissão cultural de conhecimentos para sobreviver num mundo difícil. E o corpo musculoso e atarracado dos neandertais provavelmente exigia um aporte extra de alimentos – entre 100 e 350 calorias a mais por dia – para sobreviver quando comparado ao nosso.
Pois é – entre 100 e 350 calorias por dia. Dá algo entre uma e três e meia barrinhas de cereais diárias. Talvez essa tenha sido a diferença entre a extinção deles e a nossa sobrevivência há 28 mil anos. Podia ter sido bem diferente, e as posições poderiam estar invertidas. Tênue é o cordão umbilical que nos prendeu à Terra. Parece um bom motivo para sermos gratos por ainda estarmos aqui – e honrar a chance de vida que nossos primos não tiveram.

Caiu, caiu Angband, a Grande

“Thus an end was made of the power of Angband in the North, and the evil realm was brought to naught; and out of the deep prisons a multitude of slaves came forth beyond all hope into the light of day, and they looked upon a world that was changed.”
(The Silmarillion, J.R.R. Tolkien)
Quem tem ouvidos para ouvir, que ouça.
*Em homenagem ao Renan, que provavelmente sabe o que eu estou sentindo (ao menos seguindo a pista da referência tolkieniana), e em honra a um novo começo. Voltei para casa. E para cá também.

Exército de um homem só

Rápida nota pessoal, mas on-topic, antes de voltarmos a posts mais suculentos: neste momento eu sou a única pessoa que restou na editoria de Ciência e Saúde do G1. Meu chefe (e um de meus melhores amigos) acaba de ser demitido.
Sabe aquela crise do jornalismo científico mundial? Aquela que está quase deixando todo mundo out of business? Pois é. A água acaba de bater por aqui…
São Marcus Brody, orai por nós!

Vergonha alheia da Veja

Juro que eu gostaria de voltar a temas arqueológicos mais divertidos e agradáveis. Mas, até por uma questão de autoestima profissional, não dá para passar batido pela reação indiscutivelmente patética da revista Veja diante de um erro besta em sua última edição.
Meus honrados Sciblings Carlos Hotta e Rafael Soares já fizeram um ótimo trabalho descrevendo a escorregada aqui, aqui e aqui. (Para entender o caso, sugiro que você confira os posts exatamente na ordem acima.) Em resumo, o que acontece é que, num infográfico sobre a célebre dupla hélice do DNA, o pessoal da revista acabou representando os pares de nucleotídeos (os famosos A, T, C e G cuja aparição em trio contém o código para a fabricação de proteínas) como se eles fossem moléculas contínuas.
No entanto, o que realmente acontece é que os nucleotídeos interagem por meio de pontes de hidrogênio, que não são ligações moleculares no sentido estrito (como as que unem os átomos de hidrogênio e oxigênio na água, digamos). As pontes de hidrogênio são as mesmas interações que existem entre cada uma das moléculas de água num copo do líquido. Por isso, o certo é representá-las, como sempre se faz, com tracejadinhos ou coisa que o valha, simplesmente porque elas são mais fracas do que uma verdadeira ligação molecular.
Reação estapafúrdia
O mais maluco em relação a isso tudo é que, depois de um e-mail educado e respeitoso explicando o problema conceitual e sugerindo a correção, os caras me respondem (não a mim, quero dizer; estou só usando o pronome reflexivo com a função enfática, se é que você me entende) dizendo “desculpe, não somos uma revista científica, então podemos escrever com a bunda” (estou parafraseando um pouco aqui).
Oi? E um negócio chamado precisão? Eu até concordo que nem todo jornalista precisa nascer sabendo o que são pontes de hidrogênio. Simplificar as coisas é uma necessidade grande em muitos infográficos. Ok. Mas existe uma distância abissal entre simplificar e introduzir um erro no que você quer representar. A reação jornalística-padrão diante de um erro factual é simplesmente abaixar as orelhas e dar um Erramos. Não tem discussão.
Concordo com o Rafael quando ele diz que a reportagem até prestou um serviço interessante ao fugir da lengalenga do determinismo genético. Mas a falta de humildade na hora de reconhecer um erro factual é um sintoma muito preocupante de uma maneira de pensar. Por que diabos o jornalismo científico fica em categoria diferente de, por exemplo, o jornalismo político? Se alguém da Veja escrevesse “a primeira-dama Marcella” ou “o ministro Gilberto Mendes”, duvido que isso não virasse objeto de Erramos. Não se render a essa lógica óbvia denota uma arrogância e um apego às próprias certezas que não combina com bom jornalismo em lugar nenhum do mundo.
Alguém já disse que quem não é fiel nas pequenas coisas não será fiel nas grandes. Ficadica, Veja.

Ruth de Aquino: enterrando a defunta

Com (muito) atraso, e antes de voltar à arqueologia e a coisas mais divertidas, vou meter rapidamente a minha colher no rolo envolvendo Ruth de Aquino, colunista da revista “Época”. Como sabe amplamente quem acompanha o ScienceBlogs, a moça causou uma reação calorosa da comunidade científica ao criticar o que considera o “besteirol” da pesquisa atual em um de seus textos.
Gostaria de ter podido comentar o affair lá no G1, onde trabalho. O fato de eu não ter feito isso levou até alguns amigos e colegas a achar que estava rolando algum tipo de censura; afinal, ambos os veículos pertencem às Organizações Globo. Na verdade, o que ocorreu é mais prosaico: não temos mais um espaço opinativo genérico no G1. (O Blog da Redação foi praticamente desativado para publicação de conteúdo original, porque não conta como audiência de jornalismo para o Ibope. Pois é.) Como seria absurdamente off-topic tratar do tema na minha coluna/blog, que versa sobre evolução, acabei deixando a coisa passar. Mas a liberdade aqui no ScienceBlogs me permite voltar ao tema.
A doença e os sintomas
Anyway: para ser sucinto, eu diria que Dona Ruth não é a doença, é apenas um sintoma dela. Não vejo problema nenhum em fazer humor com ciência e sou contra a tentativa de “sacralizar” o mundo científico. A ciência tem seus elementos de ridículo, assim como todo tipo de empreendimento humano. Também não se faz humor sendo equilibrado ou ponderado. Beleza. Mesmo assim, as coisas que a moça escreveu são preocupantes porque denotam um tipo de pensamento utilitarista e simplista que domina as grandes figuras do jornalismo brasileiro. É a “síndrome do pra quê serve”, batizada em homenagem a um ex-ombudsman da “Folha de S.Paulo” que sempre fazia essa pergunta em relação a reportagens de ciência.
Desculpe, Dona Ruth, mas não dá para fazer ciência pensando só no “pra quê serve”. Alguém já disse que, se os cientistas tivessem organizado um megaprojeto para tentar achar formas de curar o glaucoma, jamais teriam chegado… ao laser, que é o que realmente resolve o problema em cirurgias hoje. A pesquisa básica, por mais inútil que pareça, tem justamente a vantagem de abrir novas avenidas pro conhecimento. Nunca se sabe quando elas vão ser úteis, mas isso não é motivo para deixar de abri-las.
Outro problema sério: essa mania de ficar se esgoelando, dizendo que “o meu, o seu, o nosso” dinheirinho está sendo desperdiçado com estudos sobre a velocidade do pum dos pinguins. Na boa, achar que as pesquisas estilo IgNobel (muitas vezes legais e interessantes, por sinal) monopolizam o financiamento público à pesquisa é ser MUITO cego. Basta comparar o dinheiro que é destinado, em qualquer lugar do mundo, aos estudos sobre câncer com a verba para mapear a biodiversidade de insetos (grande exemplo de pesquisa “inútil”, dirão alguns) para ver que a pesquisa “útil” é desproporcionalmente financiada.
São essas distorções que todos nós, como comunicadores de ciência, temos de trabalhar para combater.

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