Magistérios separados: #FAIL

Alguém já disse que a Igreja Católica parou de queimar hereges na estaca não porque tenha concluído que isso é errado, mas porque os governos seculares pararam de deixar.
(Este, aliás, é o grande ponto polêmico da peça Santa Joana, de Bernard Shaw: o argumento do dramaturgo é de que Joana d’Arc não foi vítima de um erro judiciário coisa nenhuma: a inquisição era aquilo mesmo)
Exagero ou não, o chiste sobre hereges e estacas chama atenção para um fato importante: religiões em geral só se tornam tolerantes e defensoras da liberdade de consciência quando acuadas.
O judaísmo só parou com os apedrejamentos de dissidentes depois que os romanos passaram o trator por cima da Palestina; os cristãos só apagaram as fogueiras após as revoluções republicanas; e o islã hoje é o rei dos dois pesos e duas medidas, queixando-se de perseguição em parte do mundo e exercendo tirania irrestrita em outra parte.
O padrão agora chega à Rússia, onde a Igreja Ortodoxa, de volta ao papel de ópio do povo e amparo dos poderosos que exercia tão graciosamente durante o regime dos czares, sente-se forte o suficiente para cobrar o ensino do criacionsimo nas escolas.
Enfim, a ideia dos “magistérios não sobrepostos” de Stephen Jay Gould talvez até pudesse funcionar, mas — com o perdão do trocadilho involuntário — faltou mesmo combinar com os russos.

Faça você mesmo: canonização on demand

O Sunday Times de Londres publicou recentemente uma belíssima reportagem sobre a canonização do cardeal John Newman, que o papa Bento XVI deve oficializar durante sua visita ao Reino Unido — supondo que a oposição popular e de ativistas ateus não o faça desistir de pôr os pés nas Grã-Bretanha.
A reportagem do Times é exemplar porque, contrariando a tradição midiática de complacência com alegações de “milagres” emanadas por religiões de pedigree, busca ir fundo nos comos e porquês científicos do suposto milagre atribuído à intercessão de Newman. E conclui: noves fora o lobby religioso, não passa de efeito placebo.
Acho que já expus essa ideia antes, em uma das encarnações anteriores do blog, mas vou repeti-la: alguém deveria fazer um estudo científico controlado para criar um santo fictício.
Canonizações ocorrem depois que pessoas que rezam pelo auxílio do candidato a santo são atendidas por um milagre — geralmente, uma cura tida como inexplicável. Minha sugestão é inventar uma figura historicamente impossível — digamos, Fu Manchu, o chinês que chegou ao Brasil na esquadra de Vasco da Gama — e angariar voluntários para que rezem fervorosamente pra ele, pedindo alguma coisa.
Minha hipótese é que existe um número crítico de suplicantes — na ordem dos milhares, suponho — a partir do qual a ocorrência de “milagres”, tal como definidos pelos padrões do Vaticano, torna-se inevitável, por puro acaso. A principal dificuldade do meu design experimental estaria em encontrar uma junta médica neutra o suficiente para fazer a avaliação, creio.
De qualquer forma, fica a sugestão. Se alguém conseguir tirar um doutorado da criação de São Manchu, avise…

Frase avistada no Twitter

A respeito da bactéria sintetizada (plagiada?), anunciada nesta semana:
Existe um designer inteligente. Seu nome é Craig Venter.
Acho que vou fazer umas camisetas…

O papa em Fátima

Continuando em sua atividade precípua de promotor do turismo religioso e da valorização de relíquias duvidosas e milagres mambembes, Bento XVI esteve em Fátima.
Suponho que esta seja a única frente da missão que Ratzinger se concedeu ao escolher para si o nome de “Bento” (o mesmo do monge padroeiro da Europa) — resgatar o espírito cristão do continente — que tenha alguma chance de sucesso: lembrar aos governos que religião pode fazer bem ao bolso.
Estive na cidade de Fátima em 2000, durante uma viagem a Portugal. Como sói acontecer em lugares do tipo, o culto à suposta aparição da santa (cuja autenticidade é ainda mais duvidosa — se é que tal coisa é possível — que a do Sudário de Turim) empresta um tênue verniz ao mais mesquinho e abjeto comercialismo, e digo isso como alguém que sempre considerou o comércio uma atividade muito mais útil e honrada que a religião.
O verniz é tão tênue, na verdade, que chega a surpreender que alguém, exceto os fanáticos mais cegos, se deixe levar por ele. A cidade toda é uma enorme praça de camelôs, organizados em barraquinhas estreitas.
(Hoje, a lembrança me traz à mente o relato de James Randi, que li anos mais tarde, sobre a igreja canadense onde se vendiam medalhinhas comuns, baratas, e “benzidas pelo bispo”, mais caras; sendo que os dois balcões eram preenchidos, indiscriminadamente, a partir de um caixote comum)
O hotel em que fiquei tinha uma enorme loja de aparatos religiosos e equipamentos para igrejas — ostensórios, turíbulos, crucifixos, pias de água benta, batinas, estolas — no subsolo.
Imagino quantos padres babões de diversas partes do mundo, da Albânia ao Zaire, não torraram os tubos por lá, enquanto seus paroquianos, em casa, diligentemente seguiam depositando doações na caixinha dos pobres e no ofertório da missa.
A única exceção é a área do santuário propriamente dito, onde existe apenas uma loja de velas e imagens de cera — franquia exclusiva — com o apelo altamente hipócrita de que os fiéis não devem gastar todo o dinheiro que pretendem devotar à Virgem em velas, mas usar o excesso em obras de caridade. Como se o excesso já não tivesse ficado nas barraquinhas do lado de fora!
Enfim, para quem quiser uma desconstrução detalhada dos supostos “milagres” da aparição portuguesa, recomendo este artigo de John Nickell:
The Real Secrets of Fatima
Boa diversão!

Science Wars, com um certo timing atrasado

Comecei a ler ontem Higher Superstition, a crítica à crítica pós-moderna do método científico que desencadeou as chamadas “Science Wars” entre humanas e exatas na década de 90. Ok, estou quase 20 anos atrasado, mas na década de 90 eu estava mais preocupado em engabelar a professora de redação Jornalística que não queria me aprovar e arrumar emprego, então desculpem-me…
O livro ainda é muito interessante — e já detecta a reação´padrão que seria adotada pelos pós-modernos, de dizer Peraí, nenhum de nós realmente acreditava nessa bobagem. A distinção entre argumento e retórica feita pelos autores também é muito útil ainda hoje.
Uma coisa muito engraçada que achei no livro foi o que os autores chamam de “hierarquia folclórica” da academia — e que, segundo eles, seria uma fonte de ressentimento das humanas contra as exatas. Os autores são cuidados em não endossar a hierarquia, e a citam apenas como o que parecia passar por “senso comum” nas salas de professores e na hora de distribuir verbas. Ela seria assim:
Exatas e biológicas: produzem conhecimento razoavelmente confiável.
História: factualmente confiável, desde que a metodologia seja boa; interpretativamente duvidosa.
Economia: tem rigor matemático, mas os modelos em que se baseia são simplificações tão grosseiras que se tornam quase inúteis.
Sociologia: tem alguma sofisticação estatística, mas as interpretações são subjetivas demais para se levar muito a sério.
Crítica literária: subjetividade pura. Epistemologicamente, não vale um tostão furado.
Teria essa “hierarquia” mudado? Ou continua a ser o “senso comum”, e a estimular ressentimento? Com a palavra, quem vive nas universidades…

Polêmica freudiana, again?

Sou só eu que bocejo toda vez que alguém “descobre” que a psicanálise não é ciência? Agora foi a vez do filósofo francês Michel Onfray. Se não me engano, o marxismo e a psicanálise foram os dois exemplos clássicos de pseudociência usados por Karl Popper ao definir o conceito, trololós de anos atrás.
(Resumo: uma pseudociência é um sistema de interpretação dos fatos do mundo dotado de lógica interna — real ou aparente — mas que só é capaz de oferecer explicações ad hoc e a posteriori, e não presta para fazer previsões com qualquer grau razoável de precisão. Geralmente é possível detectar uma pseudociência ao notar que ela não faz nenhuma afirmação que possa ser desmentida, de modo inambíguo, pelos fatos)
O que talvez seja mais assustador nessas “redescobertas” cíclicas é a absoluta incapacidade das humanidades de evoluírem, e de desfulanizar boa parte de suas questões.
Mal comparando: Descartes estava redondamente enganado em sua teoria da mente e em sua teoria dos vértices, e suas provas da existência de Deus estão cheias de falácias, mas nenhum usuário de geometria descritiva sai por aí aos berros, escandalizado, ao ouvir isso.
Nas palavras de Daniel Dennett, a psicanálise freudiana foi “a good try”, uma boa tentativa, de interpretar a mente humana por fora dos dogmas religiosos e com as ferramentas disponíveis há 100 anos. Mas a história provou que não era boa o suficiente. Let’s move on, people!

O Vaticano e as células-tronco

A soi-disant Santa Sé vai financiar um estudo americano que busca determinar se as células-tronco do aparelho digestivo têm pluripotência. Trata-se, evidentemente, de um avanço sobre a política anterior — que provavelmente não será abandonada — de pressionar políticos para que absorvam dogmas de fé na legislação de países supostamente laicos.
Em vez de simplesmente cacarejar sobre alternativas inexistentes, a hierarquia católica tentará produzir algumas alternativas concretas ao uso de células embrionárias.
A notícia foi divulgada na sexta-feira por agências internacionais.
Preocupante é o uso publicitário a que os resultados da pesquisa serão submetidos, sejam quais forem; se as células adultas forem bem-sucedidas, este certamente será um aríete de relações públicas na tentativa de coibir a liberdade de investigação científica. Se malsucedidas, alguma outra instrumentalização criativa do resultado surgirá.
De qualquer forma, trata-se de um investimento saudável do dinheiro da igreja. Melhor, certamentre, do que a compra de báculos, ostensórios e turíbulos.

Abusos sexuais na Igreja Católica: uma avaliação

Agora que a ação proposta por Richard Dawkins contra Bento XVI provavelmente vai jogar a questão dos padres pedófilos no centro das “culture wars” entre ciência e religião, acho que é uma boa ideia tentar aclarar alguns dos conceitos e princípios que me parecem estar em jogo, e que andam meio submersos na gritaria de parte a parte.
Individualização da pena: Todo castigo coletivo é absurdo. Um crime é cometido diretamente por um indivíduo, com o concurso de um ou mais cúmplices, e são essas pessoas que devem ser punidas. Condenar ou punir a totalidade do clero católico pelos abusos cometidos por padres individuais é tão odioso quanto culpar todos os ciganos, todos os negros, todos os judeus, etc, por crimes cometidos por um ou outro membro desses grupos.
A tradição do acobertamento: O princípio da individualização da pena, no entanto, não deve servir como pretexto para que as autoridades eclesiásticas responsáveis sejam eximidas da culpa, quando houver, pelo acobertamento, pela relutância em entregar pedófilos às autoridades policiais, pela continuada complacência com pedófilos e acobertadores. O cardeal emérito de Boston, Bernard Law, que atuou durante décadas pondo “panos quentes” em casos de pedofilia cometidos em sua arquidiocese, nunca foi formalmente punido, e sua transferência para Roma — onde atua até hoje — pode muito bem ser interpretada como uma tentativa de afastá-lo do braço da justiça dos Estados Unidos. Law sequer foi impedido de votar na eleição de Bento XVI para o papado.
O celibato: A política de celibato obrigatório do clero no catolicismo de rito romano pode não ser, como às vezes se diz, um estímulo ao abuso sexual de jovens, mas não é difícil argumentar que ela faz da carreira eclesiástica um atrativo para pessoas com esse tipo de tendência. Da mesma forma que necrófilos buscam trabalhar em casas funerárias, é bem possível que homens que se sentem atraídos por meninos busquem o clero. Principalmente em comunidades católicas conservadoras, que melhor pretexto, além da batina, um homem adulto teria para se manter solteiro e em contato constante com crianças?
A ação contra o papa: O homem Joseph Ratzinger certamente não está acima da lei, e durante décadas exerceu postos de alta responsabilidade na administração do clero católico. Foi ele, por exemplo, quem puniu Leonardo Boff por supostos erros doutrinários. Não é, portanto, exagerado ou absurdo suspeitar que tenha desempenhado um papel na longa história de acobertamentos da qual o cardeal Law é apenas o exemplo mais evidente. Se não como réu, certamente seu depoimento como testemunha seria útil em pelo menos alguns casos como, por exemplo, no da carta revelada pela Associated Press.

O Livro de Eli: ficção científica evangélica

Fui assistir a O Livro de Eli, novo filme estrelado por Denzel Washington. O filme em si é uma fantasia pós-apocalíptica que mistura, de forma muito diluída, ideias que já foram muito mais bem exploradas na “graphic novel” Apenas um Peregrino, de Garth Ennis e Carlos Ezquerra, e no romance A Estrada, de Cormac McCarthy.
Como costuma acontecer com filmes pós-apocalípticos em geral, este tem um pé na ficção científica e foi isso, claro, que me atraiu ao cinema. Mas trata-se apenas de um verniz: há menções oblíquas à destruição da camada de ozônio e a algo que parece um inverno nuclear, fenômenos que teriam sido precipitados por uma guerra, ocorrida 30 anos antes do início dos eventos da película.
(Spoilers below. Caveat emptor)
No entanto, essas coisas servem apenas para criar a moldura na qual se passa a história de Eli, um sujeito escolhido por Deus para garantir que o último exemplar da Bíblia existente na América do Norte (ou no mundo, já que para o público-alvo da película essas coisas são equivalentes) seja levado a um local seguro e escape das mãos de um maníaco fascista que pretende usá-lo para realizar perigosas manipulações demagógicas.
(O que deixa em aberto a questão de por que o Cara não evitou que isso acontecesse antes da guerra, que segundo o filme foi precipitada por fanatismo religioso)
O roteiro tenta se equilibrar entre o jingoísmo evangélico (Onde Eli, o único cara que reza, é praticamente invulnerável, e a única Bíblia que Deus decide salvar do holocausto nuclear é, claro, a edição clássica em inglês do Rei James) e uma certa ironia: o “lugar seguro” para onde a Bíblia é levada não é uma igreja ou um templo, mas uma espécie de universidade, e o livro acaba não num altar, mas numa humilde estante de biblioteca, entre uma Torá e um Alcorão. Mas o fato é que há intervenção divina e pregação demais na história para pôr em dúvida a qual público os autores estavam mesmo querendo agradar. Ao mais rico e numeroso, claro. Aleluia, irmãos.
Enfim: o filme vale pelas cenas de luta, por algumas soluções curiosas de fotografia e pela oportunidade de ver o Malcolm McDowell (aka “O cara que matou James T. Kirk”) fazendo um papel que, finalmente, não é de vilão.

Conan Doyle e a Medicina

Estou lendo uma biografia recente de Arthur Conan Doyle, escrita por Andrew Lycett, e acabo de passar pelos anos em que ele estudou Medicina em Edimburgo, na década de 70 do século retrasado. O retrato da prática e da ciência médica da época é meio chocante.
É interessante ver como a formação do médico naquela época (e naquele lugar) era um evento absurdamente “mão na massa”: as aulas em classe eram poucas e genéricas, envolvendo basicamente botânica, anatomia e drogas em geral, e o que os estudantes mais faziam era disputar vagas nas clínicas dos professores, para fazer coisas como preparar curativos, dar injeções e, no geral, levar uma vida de escraviário.
Os limites para o exercício da profissão também eram bem elásticos: aos 19 anos, Conan Doyle, ainda estudante, embarcou como médico de bordo numa expedição baleeira à Groenlândia.
O futuro criador de Sherlock Holmes também fez um pouco de pesquisa científica, tendo publicado alguns artigos no British Medical Journal. Como o próprio biógrafo reconhece, no entanto, nenhum desses trabalhos seria levado a sério como ciência hoje em dia, já que envolviam observações de casos únicos, sem controles. Num experimento específico, Conan Doyle testou uma planta venenosa em si mesmo, tomando doses progressivamente maiores, para descobrir o imite de tolerância do organismo, já que a dita-cuja parecia fazer bem para a dor de cabeça.
(Foi um teste sem controles e no qual Doyle não anotou que partes a planta estava usando em cada etapa, o que tornou o esforço todo meio inútil. Ele registrou uma forte diarreia, no entanto)
A ética médica da época também bem mais grosseira que a atual: um colega de faculdade do escritor enriqueceu montando uma clínica onde as consultas eram grátis, mas os remédios, misturados no porão pela esposa do doutor, não. Escolas de inglês usam um esquema parecido hoje em dia.
Mas os médicos vitorianos tinham senso de humor. Ao receber seu MB (grau de bacharel em Medicina), Conan Doyle fez um desenho comemorativo — ele tinha muitos parentes arquitetos, desenhistas e caricaturistas, e o talento parecia estar na família — com a legenda “Licenciado para Matar“.

Categorias

Sobre ScienceBlogs Brasil | Anuncie com ScienceBlogs Brasil | Política de Privacidade | Termos e Condições | Contato


ScienceBlogs por Seed Media Group. Group. ©2006-2011 Seed Media Group LLC. Todos direitos garantidos.


Páginas da Seed Media Group Seed Media Group | ScienceBlogs | SEEDMAGAZINE.COM