Ainda a Mega-Sena…

Uma coisa divertida a respeito da internet são as ferramentas que a gente acha por aí. Por exemplo, depois de baixar toda a série histórica da Mega-Sena para o meu computador (a Caixa oferece um formato HTML, não Excel, vá lá saber por quê), fiquei pensando, bolas, como tratar esses dados?
Bom, eis que descobrir este fantástico Descriptive Statistics Calculator, e resolvi aplicá-lo a dois conjuntos de dados da loteria: número de ganhadores por concurso e prêmio pago, também por concurso. Tive de cortar parte dos dados (o calculador só aceita até 1024 entradas, e a Mega já tem mais de 1100 jogos), mas fiz isso eliminando alguns valores aleatoriamente.
O que obtive?
Bom: o número médio de ganhadores por concurso é de 0,29, o que indica um grande número de sorteios sem ganhador (os “acumulados”). Na verdade, esse resultado mostra que a sena, historicamente, vem sendo ganha uma vez a cada três ou quatro sorteios, em média.
Quanto aos prêmios, o prêmio médio da sena é de R$ 2 milhões. Essa média é alta assim mesmo levando-se em conta que dois de cada três concursos não pagam nada — um provável efeito do fato de o prêmio acumulado ser transmitido para o concurso seguinte.
A chance de alguém acertar a sena jogando seis números continua a ser, claro, menos de uma em 50 milhões. A planilha da Caixa não diz quantos apostadores há em cada concurso, infelizmente, mas o fato de serem necessários de três a quatro concursos para a sena sair sugere que haja algo como 15 milhões de jogadores da Mega-Sena, ou 8% da população brasileira.
Claro, esse número ignora os jogos com mais de 6 dezenas, os bolões, etc, mas imagino que ele não esteja muito longe da realidade e tenhamos de 4% a 12% dos brasileiros fazendo sua fezinha, dependendo da época e do prêmio oferecido.
(Adendo: esta nota da Folha Online de 2007 sugere que o movimento médio da Mega-Sena envolve 7 milhões de apostas, ou algo perto de 4% da população brasileira atual — de novo, ignorando-se os bolões).

Paradoxo de sexta (41)

Bom, o da semana passada – que chamei de Paradoxo dos Povos Primitivos – representa, como foi notado nos comentários, um falso dilema, ao menos na esfera lógico-teórica: na interação entre duas culturas, deve haver outra opção que não a assimilação ou o isolamento. É concebível, por exemplo, uma coevolução, na qual ambas se influenciam e estimulam, mas sem que cada uma perca efetivamente seu “sabor” característico.
Mas confesso que continuo na dúvida quanto à aplicabilidade prática da coevolução quando o desnível tecnológico e/ou populacional entre as culturas é muito grande, e mesmo quando o contato é cheio de boas intenções. Digo, as grandes culturas do Oriente – Índia, China, Japão – certamente existem em coevolução com a Ocidental, mas como seria possível coevoluir com uma cultura neolítica, hoje, sem esmagá-la, ainda que só por acidente? E, se a coevolução é impossível, por motivos práticos, o paradoxo se reinstala.
Quanto ao hipotético contato alienígena – com a humanidade na ponta “primitiva” da equação -, se a opção fosse entre assimilação ou isolamento, eu sou totalmente pela assimilação (que nenhum Borg ouça isso…)
Mas hoje é dia de coisa nova. Vamos ao Paradoxo de Braess.
Este paradoxo tem um enunciado enganadoramente simples: ele diz que há situações em que reduzir as rotas disponíveis numa rede – onde “rotas” podem ser, por exemplo, ruas numa rede rodoviária, ou jogadores num time de basquete ou de futebol (onde os atletas são abstraídos como as rotas por onde a bola passa) – pode de fato melhorar o tráfego (ou, no caso esportivo, aumentar o número de gols).
Em termos práticos, isso significa que um time com 10 pode jogar melhor que com 11; que a interdição de uma rua em meio a um congestionamento pode fazer o trânsito fluir melhor. E não se trata de papo furado: em 1990, o fechamento da Rua 42 em Nova York fez o trânsito melhorar tanto, mas tanto, que a coisa até rendeu reportagem do New York Times.
Como é possível?

Método infalível para nunca perder na Mega-Sena

Folheando outro dia uma dessas revistas femininas de R$ 1,99, encontrei um catálogo de livros de venda pelo correio que, em meio a ofertas vibrantes e de alto valor sociológico-cultural, como Faça a Sua Macumbinha, Amarre o Amor com os Orixás e O Grande Livro Negro Capa de Aço de São Cipriano (aliás, aqui cabe um mea culpa: vivo tirando sarro de pregadores evangélicos, dizendo que Senhor Jesus cura câncer e dá casa própria, mas não ensina português; pois é, não é só o Cordeiro que se detém na barreira da gramática; o Orixá também), havia o Manual da Mega Sena e as Apostilas da Lotomania.
Pelo que deu pra entender da descrição dos livros que aparece no catálogo (não, não comprei nenhum: isso, só com verba da Fapesp), eles trazem análises e tabelas de frequência de números sorteados, e tiram algumas conclusões esotéricas do fato. Mas, quais conclusões poderiam ser essas?
Bom, digamos que determinadas dezenas apareçam com mais frequência do que outras na série histórica de Mega-Sena (que acumula mais de 1.000 sorteios já realizados). E daí?
Isso pode dar margem a duas interpretações: (a) os números “repetidos demais” são uma aberração probabilística, e portanto em breve devem parar de ser sorteados (para manter a média), logo não se deve jogar neles; ou (b) as bolinhas usadas no sorteio não são todas exatamente iguais — algumas talvez sejam uns poucos miligramas mais pesadas que as outras — e esse efeito aparece na repetição dos números, logo deve-se jogar neles.
(Adendo: como o João Carlos notou nos comentários, as bolas realmente usadas na Mega-Sena são trocadas a cada cinco concursos, o que, em tese, evitaria qualquer espécie de favorecimento consistente a uma dezena específica ao longo de uma série comprida de sorteios. Mas a troca não garante, apenas torna improvável um viés nos resultados finais de longo prazo. E até aí, a Mega-Sena em si já é um negócio improvável pra burro, mesmo…)

Agora, quando o mesmo dado — uma flutuação na frequência esperada das dezenas — sugere dois cursos de ação mutuamente excludentes, é óbvio que alguma coisa está errada. O melhor a fazer é observar um número suficientemente grande de sorteios e ver qual o fenômeno que se confirma — digamos, sequências de sorteios onde determinadas dezenas aparecem muito, seguidas por sequências onde não aparecem, o que sugeriria flutuação estatística com regressão para a média; ou o surgimento, consistente, de dezenas que aparecem quase sempre.
(Apostar contando com a regressão para a média é um método conhecido como Martingale, e tem a contraindicação de que, geralmente, o apostador vai à bancarrota antes que a regressão ocorra)
Afinal, qual a probabilidade de uma dezena qualquer, das 60 presentes no cartão, estar entre as seis sorteadas?
Curiosamente, ela é até alta: 30%. Isso quer dizer que, a cada três ou quatro apostas que você fizer, na média em pelo menos uma delas você deve acertar pelo menos uma dezena. É por isso que o governo não paga nada para quem acerta um número só. É fácil demais.
Sabendo que a Mega-Sena já realizou mais de mil sorteios, qual a chance de um número já ter sido sorteado? Isso é 1 menos chance de ele nunca ter sido sorteado, que é 0,7 elevado à milésima potência. Minha calculadora simplesmente se recusa a fazer a conta: pra ela, a subtração dá exatamete 1, ou 100%.
Ou seja, se houver alguma dezena que ainda não saiu, a bolinha dela provavelmente está cheia de hélio e fica flutuando em direção ao alto da gaiola. Evite jogar nesse número.
E quanto a repetições? Um conceito muito usado por cientistas é o da significância estatística: basicamente, quando os resultados de um experimento têm uma probabilidade menor de 5% de terem acontecido por acaso, aceita-se que, em princípio, pode haver um efeito real ali. Muita gente defende que essa marca da significância baixe para 1%, mas ficando nos 5%: quantas vezes uma dezena teria de ter saído, ao longo de mil concursos, para podermos concluir que ela realmente é favorecida?
Bom, cada dezena tem uma chance de cerca de 50% de ter aparecido mais que 300 vezes, mas apenas 5% (4,5%, na verdade) de ter aparecido 325 vezes ou mais. Então, aí está: se você achar um número da Mega-Sena que saiu mais de 325 vezes em mil concursos, isso é cientificamente significativo: há uma chance de que ele seja favorecido por alguma peculiaridade física da bolinha onde está estampado.
(Para confirmar isso é preciso reproduzir o experimento, o que envolveria esperar mais mil concursos e ver se a tendência se mantém. Para quem não está com pressa…)
Claro, isso ajuda a escolher uma dezena; ficam faltando cinco. Além do quê, continua em aberto a questão de quando o número favorecido vai mesmo sair: se a chance dele aparecer for de, digamos, 32%, sobre os 30% dos demais, pode ser necessária uma longa sequência de apostas para que se possa tirar proveito do fato.
Então, qual o método infalível para nunca perder na Mega-Sena? Não jogar.

Homeopatia faz mal para a África

Respondendo a um apelo de médicos africanos assustados com o aumento da oferta de tratamentos homeopáticos para doenças que assombram o continente – como malária, tuberculose, diarreia e aids – a OMS finalmente saiu de seu coma politicamente correto e emitiu comunicados condenando o uso da técnica “alternativa” para o tratamento dessas doenças.
Há um longo texto a respeito no site da BBC, do qual ofereço estes excertos:
Dr Mario Raviglione, director of the Stop TB department at the WHO, said: “Our evidence-based WHO TB treatment/management guidelines, as well as the International Standards of Tuberculosis Care do not recommend use of homeopathy.”
Dr. Mario Raviglione, diretor do departamento Pare a Tuberculose da OMS, disse: nossas recomeddações de tratamento e controle baseados em evidências da tuberculose, bem como os Padrões Internacionais de Tratamento da Tuberculose, não recomendam o uso da homeopatia.
Outro:
“Homeopathy does not focus on the treatment and prevention of dehydration – in total contradiction with the scientific basis and our recommendations for the management of diarrhoea.”
Homeopatia não focaliza no trtamento e prevenção da desidratação – em total contradição com a base científica e nossas recomendações para o controle da diarreia.
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Resta saber o que o príncipe Charles vai achar dessas chocantes revelações…

Paradoxo de sexta (40)

Quanto ao da semana passada: como foi desvendado logo no primeiro comentário, a solução depende, apenas, de uma aplicação direta da fórmula pra calcular a probabilidade de se obter “k” sucessos em “n” tentativas, onde cada tentativa individual tem uma probabilidade “p”, previamente conhecida.
E a resposta é, mesmo, 8%.
Claro, o fato desse resultado ser matematicamente correto não o torna, à primeira vista, menos contraintuitivo. Afinal, a probabilidade de uma moeda qualquer cair cara é 50%, logo em 100 moedas, 50 deveriam… O que há de errado nesse raciocínio?
Imagine que você jogue quatro moedas para o alto, e não 100, e queria saber qual a chance de exatamente duas caírem cara. Bom, chamando cAra de A e cOroa de O temos:
AAAA
AAAO
AAOO *
AOOO
OOOO
OOOA
OOAA *
OAAA
OAAO *
OAOA *
AOOA *
AOAO *
AOAA
AAOA
OOAO
OAOO
Perceba que são 6 combinações em 16 resultados possíveis, o que é bem menos que a metade: cerca de 37%. E este é o ponto: conforme aumenta o número de tentativas, o número de diferentes resultados possíveis também cresce. Quando se chega a 100, o número de formas de não se obter metade das moedas viradas para um lado e a outra metade virada par o outro é simplesmente gigantesco.
No entanto, a probabilidade de se obter 50 caras em 100 lançamentos ainda é a maior probabilidade individual nessa situação. A probabilidade de se obter algo fora da faixa de 40 a 60 é virtualmente zero.
Para esta semana, eu estava pensando em mergulhar nos meus alfarrábios e incunábulos em busca de um problema de probabilidade bem cabeludo, mas aí deparei-me com a campanha Hello from Earth, que está coletando mensagens para serem transmitidas ao espaço a partir de um radiotelescópio australiano. A transmissão terá potência suficiente para chamar a atenção de qualquer Projeto SETI que esteja em operação na direção do feixe, ao longo de vários milhares de anos-luz.
Isso me fez lembrar de que muita gente, incluindo pesos-pesados como Jared Diamond, acha estúpida a ideia de tentar comunicação com outras espécies inteligentes — não porque a probabilidade de sucesso é baixa, mas porque não é zero.
A história da Terra nos ensina, afinal, que sempre que duas culturas entram em contato, a que for tecnologicamente menos sofisticada acaba esmagada ou escravizada pela pela que for mais.
Daí, o que chamo de Paradoxo dos Povos Primitivos (sei que soa politicamente incorreto, mas não resisti a usar três “P”s). Trata-se de dois argumentos aparentemente convincentes, mas que levam a conclusões opostas.
Argumento 1: Toda cultura existente só existe porque é capaz de dar a seus membros os meios para sobreviver no ambiente em que vivem e emprestar significado a suas vidas (se não fosse assim, darwinianamente, essas culturas já se teriam extinguido). Além disso, toda cultura é como uma obra de arte, um produto único da criatividade humana. Logo, o contato da nossa civilização tecnológica com povos materialmente menos sofisticados deve ser evitado, para que as culturas sejam preservadas. Afinal, o que nossa civilização faz por nós é exatamente o que a cultura deles faz por eles: fornecer meios de sobrevivência e sentido. Nenhuma é melhor que a outra. Qualquer interferência seria, além de indevida, arrogante.
Argumento 2. O argumento 1 reduz seres humanos a animais num zoológico. Devemos ficar de fora, observando enquanto xamãs cometem sacrifícios humanos para fazer chover e crianças morrem de doenças que poderiam ser evitadas se suas mães lavassem as mãos com sabão? Temos o direito de condenar uma população inteira ao analfabetismo, privá-la da soma total das conquistas do restante da humanidade — música, ciência, literatura, cinema? Da possibilidade de empresta novos sentidos a suas vidas — da oportunidade de serem médicos, engenheiros, escritores, monges budistas, padres? Ao não interferir, não estamos sendo arrogantes, preservando-os para nosso próprio deleite e privando-os da liberdade de escolha?
Apresentados os argumentos, deixo questão final: supondo que uma civilização mais avançada que a nossa detecte o sinal “Hello from Earth” — você preferiria que eles se alinhassem com o argumento 1 ou com o 2?

Um Vietnã por ano? Mesmo?

Acho que não há cristão (ou judeu, budista, ateu, muçulmano, pagão…) no Brasil que já não tenha sido golpeado na cabeça com a afirmação de que o trânsito em nosso país “mata a cada ano tanto quanto a guerra do Vietnã em toda a sua duração”. Não é que eu seja contra campanhas para tornar os motoristas e pedestres mais atentos e conscientes, mas uma boa causa não merece um mau argumento. E esse papo do Vietnã é um dos piores.
Sem entrar no mérito de que o argumento é de péssimo gosto, pois ignora solenemente os vietnamitas mortos (na casa dos milhões), concentrando-se apenas no número de americanos (cerca de 60 mil, entre mortos e desaparecidos em combate), destaco que a comparação traz, logo de início, uma marca característica da manipulação incorreta – às vezes, inescrupulosa – de dados: a comparação entre números absolutos que não oferece um dado proporcional que permita colocá-los em contexto.
Para ficar num exemplo bocó: a Lituânia teve 370 homicídios em 2000. Os EUA, 16 mil. Os EUA são mais violentos? Bom, a taxa de homicídio por 100 mil habitantes da Lituânia ficou em 10,22 e a dos EUA, em 5,53. Ao omitir as populações envolvidas e citar apenas o número bruto, corre-se o risco de causar uma impressão errada de risco.
Bom, pondo os dados do Vietnã em perspectiva: houve 60 mil militares americanos mortos/desaparecidos no Sudeste Asiático durante o conflito, de um total de 3,4 milhões envolvidos. Isso dá uma taxa de mortalidade de 1,74%.
E os dados do trânsito? Usando números de 2002 – o ano para o qual encontrei o relatório mais completo online – temos 54 mil casos de morte ou invalidez permanente causados por acidentes de trânsito, segundo o DPVAT. Então: 60 mil no Vietnã, 54 mil nas ruas e estradas. Parecido, não?
De jeito nenhum. A frota brasileira de veículos automotores, em 2002, era de 34 milhões de veículos, dez vezes mais que o total de americanos envolvidos no conflito do Sudeste Asiático. Mesmo supondo que cada veículo só transporte uma pessoa, em média, a taxa cai de 1,74% para 0,174%.
Mas, ei, até motocicletas andam com carona por aí. E boa parte da frota é composta de ônibus. Supondo uma média de 6 ocupantes por veículo (indo desde motos sem garupa até ônibus lotados com 40 passageiros, e sem levar em conta a multidão de pedestres), o número cai a 0,029%.
Reprisando: o risco de você morrer no trânsito no Brasil, ao longo de um ano, é pelo menos no máximo 1/60 do que seria se você fosse mandado para a guerra do Vietnã.
Então, podemos relaxar? Nananina.
Nos EUA, que têm uma população significativamente maior que a nossa, o total absoluto de mortes no trânsito é praticamente igual ao brasileiro – o que é evidência clara de que há coisas que poderíamos estar fazendo melhor. Mas assustar as pessoas com comparações sem sentido não é, obviamente, uma delas.

Marina, fé, ciência ou: uma coisa é uma coisa, outra coisa é…

O Estadão desta segunda-feira traz uma página sobre a senadora (e possível candidata à Presidência) Marina Silva, que cita algumas questões polêmicas que envolveram a líder acreana, incluindo sua defesa do ensino do criacionsimo.
Ali, aparece a seguinte frase, atribuída à senadora: “No espaço da fé, a ciência tem todo o acolhimento. Eu gostaria que a fé tivesse o mesmo acolhimento da ciência”. Em que pese o sentido impreciso da expressão “todo o acolhimento”, o que eu queria discutir aqui é o pressuposto, embutido na frase, de que existe algum tipo de equivalência entre os dois campos, de que o “acolhimento” seria uma questão de boas maneiras (tipo, “Senador Fernando sempre dá bom-dia ao senador Pedro. Eu gostaria que o senador Pedro tivesse o mesmo comportamento com o senador Fernando”.)
É importante deixar claro que essa suposta equivalência não existe. O que está em jogo não é, de modo algum, uma questão de boas maneiras ou de diplomacia entre iguais. Resumindo o que poderia ser uma loooonga peroração cheia de ressalvas, circunvoluções e considerações filosóficas, o saldo é: ciência é intersubjetiva e universal; fé é subjetiva e paroquial.
Não importa a quem o templo é dedicado (Zeus, Odin, Espírito Santo, qualquer um dos muito santos ou das várias versões de Maria, Jesus ou de seus músculos cardíacos), se não for construído de acordo com o que ensinam a física e a resistência dos materiais, ele cai. Simples assim. A consagração do templo é uma questão do foro íntimo, do temperamento e da história específicas da comunidade que o erigiu. Já as leis da gravidade e da estática que o mantêm (ou não) em pé são iguais em todo o Universo conhecido e francamente, minha querida, não dão a mínima para foro íntimo, temperamento ou história de quem quer que seja.
O único meio pelo qual a ciência é capaz de “acolher” a fé é como objeto de estudo, mas, quando o resultado não agrada, como no caso do estudo STEP (que indicou que orações prejudicam a saúde de pacientes cardíacos) o que se vê é choro e ranger de dentes. Nenhum “acolhimento”. Já se o resultado tivesse sido positivo, o resultado são páginas e páginas de louvores na internet.
Isto se chama (entre outras coisas) viés de confirmação, a tendência humana de destacar dados que confirmam nossas crenças e fazer pouco caso dos que as ameaçam. Em ciência, é uma falha grave, que volta e meia reaparece, mas nunca deixa de ser combatida; em religião, é apenas o que se espera.

Asteroides e estrelas

Só comentando rapidamente duas notícias importantes da semana passada: uma, o manifesto da União Astronômica Internacional contra a poluição luminosa – fenômeno que consegue ser ao mesmo tempo um problema econômico, estético, sanitário e ambiental. Representa desperdício de recursos, enfeia a paisagem e ameaça o ciclo de vida dos animais noturnos (e do homem).
Outra, a conclusão de que a Nasa não tem condições de cumprir o mandado definido pelo Congresso americano, de caracterizar pelo menos 90% dos asteroides potencialmente perigosos.
O interessante é que são dois problemas sérios que recebem muito pouca atenção. E nem digo a opinião pública – que, afinal, já está sobrecarregada com desemprego, segurança e outras mazelas do dia-a-dia – mas também dos agentes políticos que supostamente ganham para cuidar dessas coisas enquanto o povão corre atrás do custo de vida.
Acho que é o fenômeno que os psicólogos chamam de “viés de disponibilidade”: problema é aquilo de que você já ouviu falar. Por exemplo, o risco de um cidadão dos EUA morrer
vítima do impacto de um asteroide é maior que o de ser vítima de ma picada de cobra, mas cobras são mais familiares que asteroides, logo…

Paradoxo de sexta (39)

O Paradoxo Heterológico, da semana passada é, como o Igor sugeriu, um tipo de paradoxo de autorreferência (que pode ocorrer quando uma frase ou palavra tenta dizer uma coisa sobre si mesma). Mas é de um tipo especial e historicamente importante: é um paradoxo de autorreferência de conjuntos.
Para entender o significado disso, vamos voltar ao estado da matemática no início do século passado: naquela época, parecia — mesmo — que a realização do sonho de reduzir a matemática à lógica pura e de eliminar, se não todas, pelo menos 99.9999% das circularidades e dos apelos à intuição nas definições matemáticas (tipo, “um número par é um número divisível por 2. O que é 2? É o menor número par”) estava ao alcance da mão.
O veículo para isso seria a teoria dos conjuntos. Números seriam definidos a partir de relações concretas entre conjuntos. Dois números seriam iguais, por exemplo, se os conjuntos a que se aplicam — digamos, um de cubos azuis e outro, de pirâmides vermelhas — pudessem ser organizados de tal forma que, a cada cubo azul, correspondesse exatamente uma pirâmide vermelha.
Perceba que essa é uma definição de número onde não aparece a palavra “número” no enunciado, o que é considerado de muito bom tom. O conceito intuitivo de “um” entra na jogada, mas em nenhum momento “um” é definido como número ainda nessa etapa do processo.
O problema é que logo apareceram defeitos na própria teoria dos conjuntos. O paradoxo clássico é o seguinte: um conjunto pode ser ou não membro de si mesmo (o conjunto de todos os blogueiros não é um blogueiro, mas um blog que reúna as postagens de todos os blogs é um conjunto de blogs e, também, um blog).
Então, agora imagine o conjunto de todos os conjuntos que não são membros de si mesmos (todos os blogueiros, todos os cristãos, todos os ateus, todas as torneiras…). Esse conjunto é um membro de si mesmo?
Duh.
Se não é, então devia ser; se é, então não pode ser.
Como o paradoxo a semana passada pode ser refeito em termos de “o conjunto das palavras heterológicas” e do “conjunto das palavras autológicas”, ele é equivalente a esse paradoxo mais geral dos conjuntos. Qual a saída?
Bom, a teoria dos conjuntos que permite a formação desse tipo de paradoxo foi classificada de “ingênua” e os matemáticos passaram a buscar alternativas. Uma que ficou famosa foi a Teoria dos Tipos, de Bertand Russell, que cria uma hierarquia de tipos: “tipo zero” são os elementos sem membros; “tipo um” são os conjuntos formados por coisas de “tipo zero”; “tipo dois” são os conjuntos de coisas “tipo um”… Dessa forma, nenhum conjunto poderia ser membro de si mesmo, já que qualquer coisa de que ele seja membro tem, por definição, de pertencer a uma ordem, ou tipo, superior à sua.
Mas nem todo mundo gostou da Teoria dos Tipos, e o problema não tem solução consensual até hoje.
Para a semana que vem, vamos não com um paradoxo, mas com uma pergunta: suponha que você jogue 100 moedas idênticas para cima. Qual a sua expectativa de que exatamente 50 caiam cara?

Acima, como abaixo

A Nature que circula esta semana traz um artigo sobre o melhor método de realizar o “empacotamento denso” de sólidos platônicos (os formados por polígionos regulares, e que você provavelmente estudou/está estudando/vai estudar no ensino médio) e arquimedianos (formados por dois ou mais tipos de polígonos regulares). Quabndo bati o olho na história, pensei: que legal! E, logo em seguida, assaltou-me a dúvida: como explico que é legal?
Começando pelo começo: “empacotamento denso” significa a melhor forma de junta um determinado conjunto de objetos num espaço de modo que a maior fração possível do espaço seja ocupada pelos próprios objetos.
Cubos ou paralelepípedos têm uma densidade de empacotamento de 100%. Idealmente, é possível empilhá-los sem deixar nenhum espaço entre eles. Já esferas e icosaedros, por exemplo, são casos à parte.
O empacotamento de esferas, aliás, é um problema matemático clássico. Até Kepler, o das três leis, chegou a elaborar uma conjectura a respeito do modo mais eficiente de juntar esferas num espaço tridimensional. O problema é mais complexo do que parece: uma prova da conjectura, apresentada em 2005, ao que tudo indica não tem falhas. Se a conjectura estiver correta, o empacotamento mais denso possível de esferas gera um aproveitamento do espaço da ordem de pi/SQR 18, ou 74%.
No artigo da Nature, que tem como autor principal o engenheiro e matemático Salvatore Torquato, da Universidade de Princeton, são apresentados empacotamentos que superam os 90%, para o dodecadedro e o octaedro.
O caso do dodecaedro é especialmente interessante porque essa é a forma que esferas empacotadas assumem quando se permite que elas se expandam à vontade, encontrando como barreira apenas a rigidez das esferas ao redor. Em duas dimensões, isso é o que ocorre com círculos, que acabam deformados em hexágonos — daí o formato dos favos de mel.
A conclusão do artigo de Torquato é uma generalização da conjectura de Kepler para todos os sólidos platônicos ou arquimedianos dotados de simetria central — isto é, dotados de um centro que divide exatamente ao meio todas as linhas que unem pontos opostos da superfície. Essa generalização diz que o modo mais eficiente que obter os empacotamentos é por “treliça”.
“O modo mais fácil de explicar a treliça é no caso de esferas”, escreveu Torquato, depois de consultado, via e-mail, por este blog. “Um empacotamento de esferas por treliça significa que é possível dividir o espaço em células, ou unidades repetidas, idênticas, que contêm exatamente uma esfera. Cada esfera no empacotamento infinito pode ser vista como tendo uma célula associada a si. Essas células são as menores unidades repetidas que permitem realizar o empacotamento. Em empacotamentos sem treliça, as unidades repetidas são mais complexas, porque contêm duas ou mais esferas, arranjadas de um modo mais complicado”.
E o que há de legal nisso? Bom, se você ainda precisa perguntar, fico surpreso que tenha lido a postagem até aqui. Mas respondo, mesmo assim: essa questão do empacotamento é mais uma evidência do que já foi chamado de a “nada razoável aplicabilidade da matemática às ciências físicas”. Tratado de modo abstrato, o problema do empacotamento denso oferece dados importantes para situações que vão desde a melhor forma de guardar latinhas de cerveja na geladeira à organização de sementes numa vagem, células num corpo, átomos numa estrela.
O velho Hermes Trimegisto não estava tão errado assim, afinal.

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