Gripe suína, ou o tudo e o nada

Ok, cá estou eu entrando no assunto — tragado pelo hype da mídia, pode-se dizer. Mas o que me interessa é exatamente o hype, e o que ele pode nos dizer sobre a natureza humana neste mundo hipermediado, onde o recurso mais escasso é a atenção humana.
Digo, as pessoas — e não me refiro apenas aos jornalistas e comentaristas, embora eles também sejam salvo prova em contrário, pessoas — parecem ter ajustado uma heurística de distribuição de atenção que funciona assim: ou é a grande cagada do século ou é irrelevante. Não há nada no meio, tipo inspira cautela, requer atenção, é preciso cuidado, etc.
É curioso acompanhar o ciclo:no final da noite de ontem (quando os jornais que circulam nesta manhã estavam sendo preparados para impressão) a tendência era de descontração em relação à gripe suína: poucos casos realmente confirmados pela OMS,
todos os casos registrados no Canadá haviam sido rastreados a pessoas que tinham viajado ao México, o total de mortes parecia superestimado…
Hoje cedo, a internet grita: TRÊS CASOS CONFIRMADOS NA ALEMANHA! e PRIMEIRA MORTE NOS EUA! (um bebê de dois anos).
Fora o interesse humano despertado pela morte do bebê, pode-se atribuir a superexposição da gripe, em parte, a uma reação à falta de manchetes viáveis na madrugada (bolas, as bolsas asiáticas não são tão interessantes assim), mas tendo em vista a relativização do problema empreendida 12 horas atrás, o destaque certamente soa excessivo.
Esse ciclo de boost-and-boom na relevância relativa atribuída ao tema talvez seja uma reação à já citada demanda excessiva que as várias mídias (blogs também…) impõem à capacidade de atenção e concentração do ser humano, mas também pode ser um efeito de defesa contra a cultura do eufemismo em que parecemos imersos, onde “técnicas avançadas de interrogatório” substitui “tortura” e “em busca de novos desafios” representa “desempregado”.
Para não dizer que não explorei a possibilidade de um charuto ser apenas um charuto, acrescento que é perfeitamente possível que um tema de fato ganhe ou perca importância em si mesmo, de acordo com a evolução dos fatos. Mas — até agora — esse não parece ser o caso.

O dilema da bomba-relógio

Esse é um problema lógico muito citado em defesa de práticas e tortura: um terrorista sabe onde está uma bomba-relógio, que explodirá dentro de 30 minutos, matando centenas de crianças. Nessa situação, é lícito torturá-lo?
Talvez a dramatização mais contundente desse dilema esteja no filme Dirty Harry, no qual o detetive Harry Callahan confronta um sequestrador que enterrou uma criança viva — a menina tem apenas mais 15 minutos de ar para respirar, e Harry precisa saber onde ela está agora.
O que esse tipo de consideração faz num blog de ciência? É que em lembro de ter lido, há alguns anos, um artigo que analisa a lógica dessa situação e desmonta o uso do dilema da bomba-relógio (ou do sequestrador) como uma “justificativa racional” para a aplicação da tortura. Estou citando de cabeça, mas o artigo mostra que esses cenários têm algumas premissas ocultas, quais sejam:
1. As autoridades pegaram a pessoa certa. É preciso saber, acima de qualquer dúvida, que o prisioneiro tem a informação;
2. O prisioneiro vai ceder. Tem gente que que simplesmente é capaz de resistir a tudo, ou quase tudo;
3. O prisioneiro vai ceder a tempo.Não adianta nada o cara falar quando já for tarde demais;
4. O prisioneiro vai dizer a verdade. A própria urgência da situação impede que a informação seja checada antes de ser usada e, como a Inquisição provou, pessoas sob tortura podem dizer qualquer coisa que o torturador queira ouvir;
5. O torturador pode existir num vácuo. Isto é, é possível que haja um profissional capaz de identificar as fraquezas do prisioneiro, saber exatamente quanta dor aplicar e e em que partes do corpo para levar aquele indivíduo específico a fornecer a informação precisa em tempo hábil — e que esse profissional não tenha sido treinado em uma instituição especializada em, ora, torturar. E que tenha aprendido tudo isso só em aulas teóricas.
Todos esses pressupostos ocultos são muito fracos — o primeiro, o quarto e o quinto, principalmente, têm baixíssima plausibilidade. O argumento da bomba-relógio tem grande potencial dramático e cria uma boa situação para ser explorada por criadores de histórias de suspense, mas as chances de os cinco pressupostos ocorrerem simultaneamente no mundo real é pequena demais para que ele possa ser realmente levado a sério.

Sustentabilidade e Teoria dos Jogos

Pegando carona na postagem de quinta-feira do Rastro de Carbono, vejo-me perguntando a mim mesmo como seria um modelo, em termos de teoria dos jogos, do atual impasse comportamental da raça humana perante o desafio da mudança climática em particular, e da sustentabilidade, em geral.
A questão das negociações entre países ricos e pobres, sobre quem deve cortar o quê em termos de consumo e emissões, lembra um caso típico de Dilema do Prisioneiro, correndo talvez o risco de degenerar numa partida de ultimato.
Já o impacto das ações individuais no cenário global corre o risco de produzir equilíbrios de Nash, situações onde nenhum gesto bem-intencionado é capaz de, por si só, melhorar a situação.
Todas essas situações teóricas, para chegar a um desenlace, requerem que ou o jogo/dilema seja jogado várias vezes, de forma que um sistema de punição e recompensa emerja espontaneamente entre os participantes, ou que algum tipo de coordenação seja imposta ao grupo.
Isto é, o pé coletivo só sai da lama quando surgem regras claras e castigos inevitáveis para quem se recusar a cumpri-las.

Criacionsimo põe as manguinhas de fora…

Seguindo, ainda que de modo menos estridente, a onda criacionista americana, várias instituições de ensino de inspiração cristã-protestante no brasil se lançam ao esforço de revestir o criacionsimo de um verniz de respeitabilidade intelectual.
A última tentativa nesse sentido foi da Universidade Presbiteriana Mackenzie, que trouxe ao Brasil o matemático John Lennox, da Universidade de Oxford.
O Estadão publica neste domingo uma extensa entrevista com Lennox e, na edição online, um “rebuttal” do biólogo Diogo Meyer, da USP.

Paradoxo de sexta (24)

O paradoxo da semana passada, o do pensamento positivo ou da oração, se resolve em dois níveis.
No primeiro, como exposto por Robert M. Price em sua análise da literatura de pensamento positivo, The Secret’s Secret (livro provavelmente condenado a permanecer inédito em português para todo o sempre), coisas como uma atitude positiva e preparação psicológica só têm chance de serem realmente decisivas quando o que está em jogo é algo ligado diretamente ao topo da pirâmide das necessidade humanas.
No segundo, também é necessário destacar que esse tipo de preparação só pode ser decisivo quando o que está em jogo não é um recurso muito raro ou único. Digo, estar mentalmente bem disposto pode ajudar você a conseguir um emprego, mas provavelmente não basta para que você consiga aquele emprego.
Ou, na frase atribuída (e confesso que posso estar citando uma lenda urbana) a Roberto Shinyashiki após o fragoroso fracasso da seleção brasileira masculina de futebol nas Olimpíadas de 2000, “o problema é que nesses esportes você tem um adversário“.
Bom, chega de auto-ajuda: vamos ao paradoxo desta semana, que é o Paradoxo do Corvo Negro. É assim: uma vez apresentada a hipótese de que todos os corvos são negros, o princípio da indução sugere que, a cada corvo negro observado, nossa confiança na verdade da hipótese se fortaleça.
A ciência funciona, em grande parte, nessa linha: uma vez levantada a hipótese de que a gravidade desvia a trajetória de raios de luz, toda vez que um astrônomo observa um raio de luz desviado ao passar perto de um corpo de grande massa, a confiança na veracidade da hipótese cresce. É claro que nenhum número de instâncias positivas pode provar algo com o mesmo grau de certeza que uma demonstração matemática, mas um número suficientemente grande de confirmações pode permitir que as pessoas relaxem um pouco e passem a basear toda a infra-estrutura tecnológica da civilização em uma meia-dúzia dessas “verdade indutivas”.
Pois bem.
Logicamente, a fase “todos os corvos são negros” é equivalente a “todos os não-negros são não-corvos”. E não se trata de uma mera conversão formal: afinal, se você excluir todas as coisas pretas, negras ou escuras do Universo e, no que restar, não tiver ficado nenhum corvo, a afirmação de que todos os corvos são negros estará provada — ainda que de um modo extremamente trabalhoso.
Dessa maneira, o poder confirmatório da observação de um corvo negro deve ser equivalente ao da observação de uma coisa que não é negra e também não é corvo… Digamos, de um cisne branco ou de um Corolla prata.
Mas tem mais: um mesmo objeto (o Corolla prata) pode ser, ao mesmo tempo, um “não-corvo não-negro” e um “não-corvo não-verde”. Logo, ele torna mais prováveis tanto a hipótese de que todos os corvos são negros quanto a de que todos os corvos são verdes!
Como uma mesma peça de evidência pode apoiar, ao mesmo tempo, duas conclusões mutuamente excludentes?

E por que você diz isso?

Um jeito muito eficiente de desviar a atenção num debate é questionar os motivos do interlocutor. Em vez de atacar o argumento do adversário, ataca-se a razão que levou o adversário a lançar mão do argumento.
É uma espécie de culpa por associação: se o argumento A, B ou C parece pôr azeitona na empada de algum grupo dado como “desprezível” — sejam os nazistas, os comunistas ou o exército da salvação — então ele está desacreditado in limine.
A tática tem a vantagem de nos poupar do trabalho de avaliar os méritos do argumento em si.
Essa “falácia do motivo desprezível” (ela deve ter um nome oficial em latim, mas não vai dar tempo de pesquisar agora) é especialmente perigosa quando usada como insinuação: “Mas nós sabemos a que interesses as palavras do Professor Pardal servem”, diz um dos contendores, dando entender que só um imbecil congênito não seria capaz de ver através do véu de dissimulação de Pardal. Não é nada difícil a plateia cair nessa.
O uso do “motivo desprezível” para pôr o diálogo em curto-circuito é parte do arsenal de professores, políticos, sindicalistas, cônjuges, jornalistas… enfim, de todos aqueles que, num dado momento, sentem-se mais interessados em melar a conversa (ou “ganhar” o debate) do que em chegar à verdade.
Evitar essa falácia é um exercício de humildade, já que requer que reconheçamos que até mesmo motivos torpes (ou motivos que nos parecem torpes) podem dar margem a argumentos válidos — ou que um argumento válido pode, prima facie, ser sacado em defesa de um motivo torpe. Nessas horas, por maior que seja a tentação de mudar de assunto, o melhor é esmiuçar a questão.
Afinal, melhor que o conselho de Jesus de Nazaré, que nos diz que pelo fruto conheceremos a árvore, é o de Brás Cubas, que nos lembra de que do esterco também brotam flores.

Planetas! Planetas!

Com o feriado e o esquema de plantões na mídia nacional, está meio que passando batido por aqui a Semana Europeia de Astronomia e Ciência Espacial, que acontece na Inglaterra. Muita coisa está sendo apresentada, mas o principal destaque, ao menos para este escriba, são as novidades de ciência planetária.
Primeiro, foi anunciada a detecção de sinais de planetas rochosos ao redor de estrelas anãs brancas. Como o destino do Sol é virar anã branca, meu lado ficção científica logo se agitou com a possibilidade de haver relíquias arqueológicas de civilizações perdidas entre asteroides e planetas mortos… (Esta notícia aqui, mais antiga, traz algumas outras informações a respeito).
Segundo, duas descobertas no sistema de Gliese 581: uma, a de um planeta de massa muito próxima à da Terra; outra, de um planeta gigante dentro da chamada “zona habitável” da estrela. Ambas as novidades são descritas rapidamente aqui.
O conceito de “zona habitável” é, para dizer o mínimo, altamente problemático (habitável para quem, cara-pálida?), mas, de novo, meu gêmeo maligno science fiction não consegue deixar de se encantar com a possibilidade.
Uma das características mais fascinantes (para não dizer, irritantes) do estado atual de nosso conhecimento sobre o restante do Universo é a coexistência de indícios cada vez mais claros de que a vida deve ser um fenômeno abundante — moléculas orgânicas flutuando no vácuo, peptídeos encontrados em meteoritos, metano em Marte, planetas rochosos aparecendo a torto e a direito — e a total ausência de evidência direta de uma outra biosfera.
A tensão entre esses dois dados — abundância de indícios, ausência de evidência — é extremamente rica em possibilidade literárias, filosóficas, bloguísticas. Eu, pelo menos, vou ficar roendo as unhas até a questão se resolver, para um lado ou para o outro.

A abdução original

Deu no Live Science: a Universidade de New Hampshire está montando uma exibição sobre Barney e Betty Hill, os primeiros abduzidos da América.
Abduções alienígenas são fenômenos interessantes, a meu ver, sob duas perspectivas: uma, a psicológica, que mostra como um mesmo tipo de experiência subjetiva é interpretada diferentemente dependendo da mitologia em que o sujeito vive — relatos de abduções, no fim, não são muito diferentes, por exemplo, das narrativas de bruxas medievais que eram arrebatadas por demônios ou, talvez a abdução mais famosa de todas, a viagem de Maomé ao céu na companhia do anjo Gabriel.
A segunda é a epistemológica: como a maioria dos fenômenos da ufologia, abduções não se prestam a uma explicação genérica, tipo tamanho único — para dirimir todas as dúvidas e examinar todas as hipóteses, é preciso estudar cada alegação de ocorrência a fundo. Como os recursos para investigação são limitados, é natural que reste um resíduo de casos que ficam sem explicação completa e/ou satisfatória.
É possível que, nesse resíduo, exista de fato o relato de alguém que foi contatado por uma civilização extraterrestre? Bom, certamente não se trata de algo tão impossível quanto, digamos, resolver o problema da quadratura do círculo com régua e compasso, mas com certeza envolve uma improbabilidade esmagadora — do tipo que requer evidências igualmente esmagadoras para ser vencida.

Paradoxo de sexta (23)

O da semana passada se resolve quando notamos que o raciocínio dos apostadores assimila uma contradição: é como se cada um estivesse imaginado que a gravata que tem é, ao mesmo tempo, a mais cara E a mais barata. O que, claro, não faz sentido.
Nesta semana, vou sugerir um paradoxo mais open-ended, no sentido de que não tem uma solução lógica rigorosamente correta como, digamos, têm as “provas” de que 1=2 ou de que 0=1. Mas ele oferece uma boa margem para reflexão.
É paradoxo conhecido como paradoxo da oração ou, em versão secular, paradoxo do pensamento positivo.
Como “da oração”, ele talvez tenha tido sua formulação mais clara com Voltaire: O que acontece se eu e meu vizinho, ambos igualmente merecedores e igualmente necessitados, rezarmos, com igual fervor, um pedindo sol e o outro, chuva?
Como “do pensamento positivo”, é assim: o que acontece quando dois homens igualmente preparados e motivados, escolados nos mesmos gurus da eficiência, da ética corporativa e da neurolínguística, procuram o mesmo emprego ao mesmo tempo?
Tchan-tchan-tchan…

O terceiro escondido

Uma nota rápida sobre lógica: é muito fácil supor que o princípio do “terceiro excluído”, que afirma que, dada uma propriedade — ser belo, verdadeiro, alto, baixo, etc. — ela estará ou presente ou ausente, sem terceira opção, cria um universo de polos opostos: belo ou feio, verdadeiro ou falso, alto ou baixo, etc.
Isso, no entanto, não é verdade. “Não A” não é o mesmo que “O oposto de A”. Pode significar, simplesmente, “a ausência de A”. Assim, se me perdoam o exemplo machista, uma mulher que não é bonita não é, necessariamente, feia; pode ser apenas normal, meio em graça, comum, etc. Um homem pode ser não-alto ao ter 1,7 m, o que certamente não faz dele um homem baixo. E uma afirmação pode ter seu valor de verdade indefinido.
Muitas vezes, a ideia de que a única forma de não partilhar de A é opor-se a A é usada para fins de manipulação retórica e/ou política. Isso vem acontecendo com frequência no debate sobre o uso de símbolos religiosos em repartições públicas — com alguns importantes juristas, cujo treinamento em latim e lógica só me permite imaginar que estejam lançando mão do argumento de má-fé, insistindo que a remoção dos emblemas cristãos consagraria um Estado ateu.
Não é nada disso: a negação do religioso pode até ser o ateu, mas não o é, necessariamente. Pode também ser, simplesmente, o indiferente. Ou o laico.

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