Moralismo e DSTs

The New York Times publica um belo ensaio sobre as mais recentes pesquisas a respeito da origem da sífilis — ao que tudo indica, a doença era pouco mais que um leve incômodo dermatológico entre os nativos do Novo Mundo, e evoluiu para sua forma mais letal (e sexualmente transmissível) na Europa.

O texto de Marlene Zuk aproveita a deixa para tratar da associação entre moralismo e doenças sexualmente transmissíveis, algo muito claro, hoje, na questão da aids. Mas não se aprofunda (o que não é um demérito do artigo; afinal, cada texto tem um espaço-limite e um foco) nas várias formas que o moralismo frente à doença, a tendência bíblica de culpar o sofredor pelo sofrimento, assume.

De todas as modalidades de moralização esdrúxula da aids, a que me parece mais curiosa não é nenhuma das que costumam apanhar (merecidamente) da mídia, como o estigma de “praga gay” ou o “pecado” do uso da camisinha, mas a, digamos,”alternativa”, que nega o nexo causal entre HIV e aids e insiste que a doença é uma espécie de mal-estar da civilização, um “estado de espírito” adquirido nestes tempos repressivos/neoliberais/dominados pelo pensamento ocidental/wathever.

No fim, é um moralismo antimoralista, se me perdoam a antítese. Tão daninho quanto os demais.

Desculpe, Deus não pode atender agora…

A mídia brasileira não deu muita pelota para o caso do casal Neumann, dois americanos que preferiram ficar rezando pela saúde da filha enquanto a menina morria de diabete, em vez de chmara um médico. Nos EUA, já existe até uma reação atacando a decisão de processar o casal como uma afronta à liberdade religiosa.

Existem tantas questões misturadas nessa história que vou me conter e destacar apenas quatro:

1. Por que o casal teve fé suficiente para achar que não precisava de um médico, mas agora acha que precisa de um advogado?

2. Parafraseando James Randi, vamos notar como o conceito de “liberdade religiosa” serve como pretexto para qualquer coisa. Se duvida, veja este manifesto de um pastor em defesa do casal.

3. Mais uma vez, vemos como a religião reforça a idéia de que o filho não é um indivíduo em si, mas mera propriedade dos pais.

4. De um ponto de vsita estritamente cristão, é possível dizer que o que esses pais fizeram foi errado? Afinal, a ciência humana é um fruto mesquinho de nossa arrogância, enquanto que o Senhor Deus é onipotente e infinitamente bom. Ninguém vai dizer isso no tribunal, mas o verdadeiro crime nos Neumanns foi levar sua fé realmente a sério.

Acréscimo de última hora: não resisti e fiz um excerto do manifesto do “pastor Bob”. Ei-lo:

While it is true that God created the world and all that is in it, including doctors, we must note: Jesus never sent anyone to a doctor or a hospital. Jesus offered healing by one means only! Healing was by faith. Yes, God created doctors but only to give man a choice between man’s ways — the doctor — or His way — faith! When we don’t have faith we need the doctor and it’s obvious that most want-to-be Christians need the doctors because they have no faith in God; their faith is in man. God created good and evil. Witchcraft can heal also. Should Christians also seek witches?

Padre Pio

Ah, o catolicismo… O islã e os pentecostais andam levando muito da fama por conta da violência, fanatismo, ignorância e puro mau gosto associados à religião em geral, mas é difícil bater uma franquia que está no negócio desde os tempos do Império Romano.

Caso em tela: Padre Pio. Exumado e exibido num esquife de cristal (climatizado?)

O cara – que dizia ter estigmas, entre outras coisas – já havia sido exposto como fraude décadas antes de ser canonizado, e ninguém menos que o papa João XXIII chegou a declará-lo “uma enorme enganação”. Mas, e daí? É o dinheiro que conta, afinal.

Ou, em termos do duplipensar católico, não há nada de mau em uma fraudezinha se ela estimula a fé e as boas obras. Fins justificam os meios, etc. Cesare Borgia, o príncipe-modelo de Maquiavel, é sempre bom lembrar, era filho de um papa.

Ah, sim:
antes que alguém ache que o cadáver do padre está “incorrupto”, o que algumas pessoas vêem como sinal de santidade (e não, curiosamente, de boas técnicas de embalsamamento), o rosto do corpo está coberto por uma máscara de silicone. Mas aposto que não há nenhum cartaz na igreja dizendo isso…

Isso você não vai ver no Fantástico…

Um documentário da BBC sobre o acobertamento de crimes sexuais cometidos por padres católicos e que denuncia a política oficial de segredo da Igreja para com esses casos. O documento que sustenta essa política é este aqui, e o documentário, em inglês, pode ser assistido a partir deste link.

Curioso como a TV brasileira, tão ansiosa em assimilar as frivolidades da TV internacional, nunca exibiu esse docomentário e nem, por falar nisso, uma série como The Root of All Evil, de Richard Dawkins.

A alma

De que a mente é um “secreção do cérebro”, na famosa frase de Darwin (Why is thought being a secretion of brain, more wonderful than gravity a property of matter? It is our arrogance, our admiration of ourselves), a ciência dá mais e mais provas a cada dia. Avanços recente sugerem que o processo de tradução da atividade cerebral em atividade mental poderá ser desvendado de vez nas próximas décadas, e até realizado por máquinas — quem duvida é convidado e clicar aqui e aqui.

A despeito disso, a idéia de uma “alma” — algo que, imaterial, é a “essência” de uma pessoa — perdura.

Existe, talvez, alguma utilidade lingüística no conceito de alma: afinal, há algo aqui que sou eu, e que resiste à reciclagem completa de todos os átomos de meu corpo, que se completa a cada sete anos, mais ou menos.

Da mesma forma, no entanto,que uma sinfonia é “algo mais” que padrões de vibração no ar, mas não pode existir sem o ar e sem a orquestra que o faz vibrar, a “alma” não é algo que tenha existência independente de seu suporte físico. O consenso da comunidade científica, nesse specto, é avassalador — só não notaram isso alguns bilhões de dualistas que ainda habitam a Terra…

Eis que o Vaticano quer uma estátua de Galileu…

É o que dizem algumas notícias publicadas no mês passado. Depois de Joana D’Arc ter sido condenada por bruxaria, queimada na fogueira e então canonizada, isso não deveria supreender ninguém: o potencial para hipocrisia e cara-de-pau da Igreja é algo que atravessa os séculos.

Só para lembar, no entanto, um rápido histórico da posição dae Igreja quanto à estrutura do sistema solar:

A idéia de que a Terra gira em torno do Sol foi combatida por três papas: Paulo V e Urbano VIII, que perseguiram Galileu, e Alexandre VII, que assinou, em 1664, uma bula proibindo os católicos de ler “todos os livros ensinando o movimento da Terra e a estabilidade do Sol”. A medida só foi revogada em 1835, quase 200 anos mais tarde.

Parece haver alguma controvérsia sobre se a bula de Alexandre VII não estaria coberta pela infalibilidade papal, o que torna a coisa toda ainda mais bizarra…

Falando em hipocrisia e infalibilidade, Bento XVI fez um pouco de relações públicas com vítimas de abusos sexuais nos EUA, inclusive com críticas à atuação da hierarquia católica no caso, mas não há notícias de que o cardeal Bernard Law, que fez, durante anos, vistas grossas às atividades de um padre ‘seral-rapist’, tenha sido incomodado em sua aconchegante aposentadoria no Vaticano…

Mas e os nazistas, Pol Pot, Mao…?

Já ouvi essa objeção, digamos, “moral” ao ateísmo tantas vezes que resolvi escrever um pouco a respeito. A idéia geral é de que a humanidade até que ia se virando razoavelmente bem, com um pogromzinho aqui, uma bruxinha queimada na estaca ali, uma cruzadinha acolá, até que o Iluminismo resolveu “matar Deus”, “dar asas à arrogância humana” e, pimba!, mergulhamos no relativismo niilista que nos levou diretamente aos campos de extermínio nazistas e aos campos de matança cambojanos.

Então tá.

Esse argumento costuma ser sacado em dois tipos de situação, defensiva (“tá vendo, a religião não é tão má assim, ateus também fazem merda”) e ofensiva (“na Idade Média não tinha atrocidades como no século 20”).

As duas modalidades, no entanto, pecam por ignorar um dado óbvio, que é a diferença de meios. Torquemada não tinha metralhadoras; e não consigo imaginar um argumento melhor para a separação entre Igreja e Estado do que a idéia de Urbano II, o papa que iniciou a febre das Cruzadas, de posse de um arsenal nuclear.

Aliás, o mundo secularizado do século 20 conseguiu evitar a esterilização atômica da Terra. Mas que tal pôr no lugar de Nikita Kruschev uma figura como o monge e enviado papal à cruzada contra os cátaros, Arnaud “Matem Todos, Deus Saberá Quais os Seus” Amalric, e ver o que acontece?

Descendo aos específicos, o mito do “nazismo ateu” é o mais fácil de eliminar. Simplesmente porque o nazismo não era ateu. Hilter era católico (nunca foi excomungado; a Igreja Católica chegou a baixar uma norma de excomunhão automática para comunistas, mas nunca se deu ao trabalho de fazer o mesmo com os nazistas, ora veja só), e todo o projeto do Holocausto já havia sido traçado por Martinho Lutero. O nazismo foi, sob esse aspecto, profundamente cristão – ecumênico, até.

Ok, e o Camboja? E a China? E…?

É preciso notar, de antemão, que pessoas que se envolvem em massacres e atrocidades em escala industrial geralmente acreditam estar fazendo a coisa certa. Ninguém (ou quase ninguém) acorda de manhã para se olhar no espelho e diz, “bom-dia, lindo assassino de criancinhas, amigão criminoso de guerra!”.

Torturadores, assassinos em massa, guardas de campo de extermínio acreditam que o que fazem é bom, justo e necessário. Acreditam contra todas as evidências. Em resumo, têm fé. Como já comentei numa postagem anterior, “fé” é o verdadeiro motor das atrocidades.

Sim, não é preciso que seja uma fé no sobrenatural; pode ser fé no rumo da História, no Destino Manifesto, no Grande Pássaro da Galáxia, no Guia dos Povos, ou em qualquer outra coisa.

Mas quem ensinou à humanidade que ter fé é uma virtude, é desejável, é sinal de caráter, foram os monoteísmos. Dessa culpa, dessa grande culpa, eles jamais se livrarão.

E lá vamos nós…

Mais uma santa que chora azeite e sangue. Se não fosse ateu, eu perguntaria a Deus quando que bogagens assim vão parar. Quousque tandem abutere Deus patientia nostra?

O problema, claro, é que essas coisas muitas vezes deixam de ser pequenas, digamos, performances artísticas de mau gosto e acabam virando verdadeiros frenesis de massa, como o trágico caso de Audrey Santo, a pobre menina que morreu em 2007.

O bispo local parece estar reagindo com cautela à situação, mas aí é que vemos o grande calcanhar de Aquiles de todo sistema de fé: em princípio, dentro do, com o perdão da palavra, paradigma católico, a idéia de que o azeite e o sangue são miraculosos é perfeitamente normal. Se Lourdes e Fátima valem, por que não Sorocaba?

Aguardemos desdobramentos…

Vitória dos blogs

Faz muito tempo que não publico uma postagem, então resolvi aparecer para comentar algo que não tem muito a ver com a linha geral do blog, mas que merece destaque: não sei se vocês acompanharam esta história, sobre o menino que teria calculado um alto risco de colisão de um asteróide com a Terra, e que acabou desmentido pela Nasa.

Folclore à parte, é curioso notar que a barriga (jargão jornalístico para notícia errada publicada de boa-fé) nasceu em um jornal impresso (Bild) ganhou mundo graças a uma respeitada agência de notícias (France Presse) e acabou sendo esclarecida por um… blog!

Talvez o meio seja mesmo a mensagem, mas é a mensagem que constrói o meio…

Deixando sua religião

Muitos anos atrás, encontrei um website na internet que explicava como uma pessoa deveria agir para deixar de ser considerada, formalmente, membro desta ou daquela religião. Na parte sobre catolicismo, o autor dizia, ironicamente, que os únicos meios de fazer a Igreja Católica repudiar alguém estavam, também, “listados no código penal”, e que portanto a situação era irremediável.

Nunca mais consegui reencontrar o website (a internet muda depressa), mas achei este memorando católico em PDF, sobre o que define uma “deserção formal da Igreja Católica”. Encontrei também um belo modelo de carta de apostasia online (se quiser usar, é só trocar os nomes e endereços pertinentes). Uma versão mais curta é esta aqui.

Então, parece que o chiste do velho website era apenas uma boa piada, certo? Nem tanto. Lendo com atenção o memorando católico, chego, perto do final, à seguinte afirmação:


Ou: “o laço sacramental de pertencimento ao Corpo de Cristo que é a Igreja, conferido pelo caráter de batizado, é um laço ontológico e permanente, que não se perde em razão de qualquer ato de deserção”.

Quer dizer, ser batizado é como o pecado original: você não tem nada com isso, mas não há como se livrar dele.

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