Mais muçulmanos que católicos…
Fora a questão teológica de por que Deus, sadicamente, permite que a maior parte da população mundial nasça numa cultura já condenada ao inferno (uma vez que não há salvação fora da fé em Cristo), a notícia de que o total de muçulmanos supera o de católicos chama atenção pelo parágrafo final:
A porcentagem de muçulmanos vem aumentando por causa da alta taxa de natalidade neste grupo.
Ou seja: de novo, trata-se a criança como propriedade inalienável da religião dos pais. E ninguém vê nada de errado nisso…
A prova de Deus
Parte da mídia — principalmente veículos declaradamente cristãos, mas destcando-se ainda a revista IstoÉ — está vendendo o trabalho do padre-cosmólogo Michael Keller como sendo a prova científica da existência de Deus. Keller ganhou o prêmio Templeton, dado a cientistas que façam uma “aproximação” entre ciência e religião.
No entanto, a “prova” de Keller, tal como vem sendo descrita, não passa de mais um exercício do bom e velho argumento do “Deus das lacunas”: se não sei o que é, é Deus. Essa manobra só faz trocar “ignorância” por uma palavra de quatro letras, o que é útil para tipógrafos e quase ninguém mais.
O curioso é que provar cientificamente a existência de deus não deveria ser difícil — se houvesse um Deus. Trata-se de formular uma hipótese, digamos, como “fusão nuclar é o que faz o sol arder”, só que dizendo “Deus é o que faz o universo existir”.
Claro, a hipótese fusão-sol já foi testada e largamente comprovada, até o ponto de terem sido encontrados os neutrinos que faltavam. Já a hipótese Deus-universo… bem… sabe como é…
Este, na verdade, é um dos grandes problemas filosóficos contemporâneos do teísmo, superando até a teodicéia (a conciliação entre a existênciade Deus e a presença de mal no mundo): a ocultação divina.
Resumindo: se Deus exsite, como é possível que haja gente que não acredita nele?
A resposta clássica, a da “liberdade de escolha”, não cola: qual o sentido de dizer, por exemplo, que “sou livre” para não acreditar em árvores, ou pássaros? Eles estão aí, afinal. São evidentes.
Por que Deus não é?
Uma questão correlata é o papel da mídia “mainstream” (onde IstoÉ, supõe-se, está ou quer estar) na divulgação de asneiras como a suposta “prova” atribuída a Keller, ou terapias de vidas passadas.
Isso parece ser um reflexo do que chamo de isonomia preguiçosa: para se libertar do velho vício de engolir pataquadas católicas com linha, anzol e tudo, ao mesmo tempo em que submetia outros sistemas mitológicos a escrutínio racional, o jornalismo brasileiro decidiu suspender de vez o escrutínio racional em todas as áreas.
Fica mais justo assim. E dá menos trabalho.
Ressurreição
Como o Natal, a Páscoa é apenas mais uma festa pagã seqüestrada pelo cristianismo – no caso, o festival de fertilidade da primavera – no velho espírito de, e não pode vencê-los, coopte-os. Uma boa sátira à evolução desses rituais aparece no excelente romance de Philip José Farmer, Flesh, que recomendo a todos.
Mas, se me perdoam um pouco de reminiscência autobiográfica, foi esse papo de ressurreição de Cristo que causou alguns dos primeiros abalos no meu catolicismo hereditário-congênito. Foi durante um sermão no qual o padre citou a Primeira Carta de São Paulo aos Coríntios (cap 15, v 14): “se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação, e também é vã a vossa fé.”
Peraí, pensei eu, do alto de minha sapiência de 12 anos de idade. Então, se um cara que tivesse dito ‘sacaneai-vos uns aos outros’ tivesse ressuscitado, sacanear seria o certo?
Na época eu não tinha o vocabulário ou a instrução filosófica necessária para reconhecer exatamente o que estava acontecendo, mas foi graças a 1Cor. que me deparei com o velho paradoxo de Platão: os deuses amam as coisas que são corretas porque são corretas ou as coisas são corretas porque os deuses as amam?
A idéia de religião como uma forma abjeta de puxassaquismo metafísico começava a tomar forma em minha mente juvenil.
Décadas mais tarde, descobri que o mais antigo dos Evangelhos e o mais próximo às fontes históricas originais, o de Marcos, embora fale em ressurreição, não cita nenhum feito ou aparição do Cristo ressucitado. O texto original de Marcos termina no versículo 8 do capítulo 16, com as mulheres fugindo da tumba vazia: “Elas saíram do sepulcro e fugiram trêmulas e amedrontadas. E a ninguém disseram coisa alguma por causa do medo.”
Adeus ao Monolito
Foi-se Asimov, agora parte Clarke. Os dois grandes racionalistas da ficção científica do século 20 já não estão mais entre nós.
Ao contrário de Isaac Asimov, cuja obra de não-ficção é amplamente conhecida, os ensaios de Clarke não são muito famosos (com exceção, claro, do clássico “paper” em que ele sugere o uso de satélites geoestacionários para ajudar nas comunicações). O que é uma pena: seus artigos, por exemplo os reunidos em Greetings, Carbon-Based Bipeds, têm um sabor próprio.
Como escritor, Sir Arthur era criticado por não dar muita profundidade psicológica, social ou emocional aos personagens. Longe de ser um defeito, porém, essa característica dá aos pontos altos de sua obra, como Encontro com Rama, uma pureza fantástica — o verdadeiro protagonista da obra de Clarke é o universo, suas leis, seus mistérios.
Desta vez, Templeton acerta…
A Fundação Templeton, que dá um prêmio generoso em dinheiro para cientistas que digam coisas bonitinhas sobre religião, finalmente acertou no alvo: premiou um cosmólogo que também é padre.
Não tenho credenciais para discutir a impotância da obra científica do padre Michael Heller, mas a faceta dessa obra que chamou a atenção do prêmio diz respeito à busca de uma “causa primeira” para o universo.
Mesmo imaginando por um instante que faça sentido falar em termos de uma “causa não causada”, sempre fico espantado em ver como as pessoas saltam rapidamente desse ponto para a conclusão de que a tal “causa” quer que as pessoas se reúnam todos os domingos para comer biscoito e evitem gozar quando estão procriando, mas que jamais evitem procriar quando estão gozando.
Enfim…
Uma curiosidade nesse caso é lembrar que, até algumas décadas atrás, não era de todo implausível esperar que sacerdotes católicos prestassem bons serviços às ciências. Em que pese a fulminante crítica de Peter Medawar à obra filosófica de Teilhard de Chardin (“há um argumento nela, só não consigo descobrir qual”), o jesuíta colheu alguns merecidos louros como paleontólogo.
(Certo, ele também esteve envolvido no caso do Homem de Piltdown, eu sei…).
Padres-cientistas já foram quase que um lugar-comum, por exemplo, na ficção científica. Dois casos clássicos são os do conto “A Estrela”, de Arthur C. Clarke, e “Um Caso de Consciência”, de James Blish.
Ambas as histórias, no entanto, lidam com o tema da tensão entre verdade e fé em escala cósmica; no mundo real, a tensão simplesmente se tornou grande demais e a ruptura veio, mas não por causa de descobertas na escala de estrelas e planetas, e sim em células e gametas.
Tentativa de homicídio?
Mais uma diretamente da coluna semanal de James Randi, a SWIFT: um feiticsiro indiano tentou usar seus poderes de magia negra para matar um cético na TV, ao vivo… E nada aconteceu.
Informes dão conta de que o “desafio” foi um estouro de audiência na Índia. Eis parte da descrição do show:
Neste momento, o tantrik (feiticeiro) escreveu o nome de Sanal (o cético) em um pedaço de papel, rasgou-o em pedacinhos, mergulhou-os num porte de manteiga fervente e arremessou-os, dramaticamente, nas chamas. Nada aconteceu.
Uma vela na escuridão
Não vi resenhas na grande imprensa (o que é curioso, já que a Cia das Letras é amiguinha da tchurma), mas eis que saiu no Brasil Variedades da Experiência Científica (queria fazer o link pra Livraria Cultura, mas o site deles tá uma lerdeza só hoje), de Carl Sagan. O livro é a transcrição de uma conferência de Sagan sobre ciência e religião e é, pra usar uma palavra só, brilhante.
O título é uma brincadeira com Variedades da Experiência Religiosa do filósofo e psicólogo americano William James. James esteve no pólo oposto a outro filósofo (e matemático), William Clifford, num debate sobre a ética da crença — Clifford argumentava que acreditar em algo sem ter evidências é eticamente — moralmente — errado, porque toda ação humana nasce de uma crença, e se você acrdita em bobagem, vai acabar fazendo merda. Homens-bomba, alguém?
James, por seu lado, defendia o direito à crença, mesmo a crença em bobagens, como uma dimensão da liberdade humana e uma espécie de fenômeno estético.
A conferência de Sagan faz um belo trabalho de síntese entre esses pólos, apresentando com elegância a ciência como uma fonte de prazer estético e reflexão fisolófica muito superior à religião, ao mesmo tempo em que demole os argumentos mais freqüentes em defesa da existência Deus. Ele o faz com mais elegância (ou talvez fosse melhor dizer, paciência), mas não menos eficiência que Richard Dawkins em Deus, um Delírio.
Enfim. Carl Sagan morreu, Joseph Ratzinger continua firme e saudável. Quem sabe? Vai ver Deus existe, mesmo.
Criar pecados para vender perdões
Não sei se a mídia não andou fazendo uma certa confusão nessa história ne “novos pecados capitais”, confundindo “capital” com “mortal“, mas esse papo de inventar culpa pra vender absolvição é bem velho.
Trata-se, ao que tudo indica, de mais uma adaptação de truques antigos aos tempos modernos.
‘Vida’ versus ‘pessoa’
A melhor coisa no voto do ministro Carlos Ayres Britto no julgamento das células-tronco, na última quarta-feira, foi o modo minucioso com que ele desfez a desonesta confusão retórica criada pelos obscurantistas entre “pessoa humana” e “ser humano”.
Uma “pessoa” tem direitos; um “ser” pode tê-los ou não.
Para ser mais claro: imagine uma máquina detectora de humanidade, uma caixa preta que realize testes biológicos e genéticos em qualquer coisa colocada em seu interior e acende uma luz verde quando a “coisa” é humana, e vermelha, quando não.
Coisas que farão a luz verde acender: gotas de saliva, fios de cabelo, flocos de caspa, aparas de unha.
Podese argumentar que o embrião humano é diferente dessas “coisas” porque ele tem o potencial do desenvolvimento pleno em uma pessoa humana.
Trata-se de um ponto discutível sob vários ângulos — por exemplo, ser um brasileiro nato e maior de 35 anos, logo um presidente da República em potencial, não me dá o direito à proteção da Polícia Federal, como presidente de facto tem; e ainda: com o avanço da tecnologia, logo toda célula do corpo humano passará a ser um embrião em potencial — mas um ponto que nem vem ao caso no debate que se trava no STF, já que os embriões em discussão lá são os congelados e abandonados pelos genitores.
Um bom modo de pensar sobre o assunto é conceber criaturas não-humanas mas que tenham direito à vida. Inteligências alienígenas, computadores conscientes, coisas assim. Ou criaturas humanas sem esse direito: a placenta, que é um clone do feto; ou um cadáver com morte cerebral. O simples fato de que é possível pensar nessas entidades hipotéticas mostra que a identidade biológica humana não é necessária ou suficiente para gerar direitos.
Requer-se algo além. Talvez seja, como diz o filósofo Peter Singer, a capacidade de sofrer. Talvez seja a capacidade de criar. Mas só ter os cromossomos certos obviamente não basta.