Como o Congresso é parecido com uma pilha de areia
O que decisões tomadas por parlamentares numa casa legislativa têm em comum com avalanches numa pilha de areia? Ambas seguem o mesmo tipo de gráfico, chamado “Escadaria do Diabo”, no qual longos patamares de inação de repente dão lugar a grandes saltos (de areia caindo, ou de deputados aderindo em massa a uma nova ideia).
A modelagem foi feita por dois caras da UCLA.
O problema das pilhas de areia é um velho conhecido de quem se interessa por questões como criticalidade, propriedades emergentes, caos e coisas assim: conforme se derrama mais areia sobre o topo da pilha, ela em princípio cresce, ate que se chega a um ponto crítico, no qual ocorre uma avalanche, o que reequilibra as forças e permite que a pilha volte a crescer… mas a partir de um patamar inferior.
No caso de uma casa legislativa (o modelo usado pelo povo da UCLA foi, obviamente, o Congresso americano), os grãos de areia, bem como as forças que atuam sobre os eles (atrito, gravidade) foram substituídos por unidades de pressão política.
Uma “avalanche” seria a decisão de um grupo de deputados de passar a apoiar uma determinada peça legislativa, o que levaria a uma redução momentânea dessa pressão.
No modelo, os “grãos” de pressão têm duas fontes: os colegas congressistas e os eleitores. Uma diferença básica entre a pilha de pressão política e a pilha de areia é que um deputado não pode “entrar na avalanche” (isto é, passar a apoiar a proposta) mais de uma vez, enquanto que um mesmo grão de areia podem se envolver em inúmeras avalanches.
O modelo gerou um gráfico de apoio ao longo do tempo muito parecido com o que descreve o número de assinaturas dadas a uma proposta real (HR 1207, pedindo uma auditoria no Banco Central americano, o Fed). E produziu duas peculiaridades em que as pessoas deveriam pensar, principalmente neste ano eleitoral:
Todos os deputados são iguais: O modelo funciona sem que seja preciso dar pesos diferentes a cada deputado — na hora da avalanche, tanto faz se o cara é líder de bancada ou baixo clero.
Alguém poderia imaginar, diz o paper, que os degraus mais altos na escadaria são causados pela adesão de um congressista muito influente, que traz consigo muitos novos apoiadores, que ele influenciou. Em nosso modelo, os degraus altos são resultado da evolução do Congresso para uma espécie de estado crítico, onde qualquer congressista pode desencadear uma avalanche de apoios.
A pressão popular é um fator decisivo: Diz o texto: Nem todas as resoluções apresentadas ao Congresso obtêm o mesmo nível de apoio. A diferença entre resoluções entra em nosso modelo por meio do parâmetro de pressão pública, lambda. Se for próximo de zero, a resolução não obterá apoio considerável num tempo razoável.
Os autores reconhecem que ainda falta modelar outro tipo de força — por exemplo, a desaprovação popular da medida.
Ainda assim, são resultados curiosos e que tiram um pouco do gás dos velhos mitos dos caciques políticos que resolvem tudo na base do conchavo e do descolamento entre parlamento e população (que talvez só exista quando o eleitorado se omite).
Como os estudos estatísticos que provaram que não existe “mão quente” no basquete, e que foram duramente contestados por técnicos, fãs e jogadores, o resultado da UCLA poderá chocar muitos especialistas em política — de políticos profissionais a analistas e jornalistas. E, claro, não há garantias de que um modelo que funcionou bem em um único caso possa ser generalizado.
Mas uma visão da política que dá menos ênfase (e poder) aos caciques e põe mais peso (e responsabilidade) nos ombros do eleitor merece ser explorada. Ainda que, talvez, só como teoria.
SOS liberdade de expressão
Um espectro assombra o país: o espectro da relativização da liberdade de expressão e informação. Não se trata, no entanto, de um espírito novo, mas de uma assombração antiga, quase um membro da família, o nosso fantasma de Canterville particular.
Está presente, por exemplo, na criminalização da “apologia do crime”; aparece nas leis e propostas de lei, supostamente bem-intencionadas, proibindo expressões de “preconceito”, “ofensa” e “discriminação” contra grupos, reais ou imaginados, dentro da sociedade; consubstancia-se na decisão recente do STF que mantém aberta a possibilidade de censura prévia à imprensa; e ganha corpo no novo Plano Nacional de Direitos Humanos, em cujo capítulo sobre liberdade de expressão, numa manobra de novilíngua digna de Orwell, o verbo “coibir” aparece quatro vezes, e onde se pede a adoção de medidas judiciais contra a defesa da pena de morte — como se discutir a legislação penal de repente virasse crime.
Estamos, como sociedade, embarcados num processo trágico onde quem se sente ofendido ou contrariado por uma opinião ou informação não adota mais as saídas clássicas que existem desde tempos imemoriais — ofender de volta, contra-argumentar — mas prefere chamar o advogado e a polícia.
A sociedade brasileira parece ter se esquecido de que, do mesmo modo que pornografia e mau gosto são o preço da liberdade artística, opiniões repugnantes são o preço da livre circulação de ideias, que deveria ser um valor fundamental. Se não pelo fato de que a livre expressão é um direito básico, pelo simples fato de que a luz do dia é, sempre, o melhor desinfetante.
Claro, liberdade de expressão não é o mesmo que liberdade de ação. Até mesmo a lei brasileira reconhece uma distinção entre apologia do crime e o crime em si. Liberdade de expressão também não é liberdade de incitação: uma coisa é (a) escrever um artigo dizendo que os blogueiros de ciência são uma raça inferior e parasitas da sociedade, outra é (b) montar um comício para juntar uma turba e sair à caça deles para linchá-los.
Alguém poderia argumentar que “b” é consequência lógica de “a”, logo se “b” é proibido, “a” também deveria ser. Mas isso não é verdade: se quem acredita em “a” não tiver meios de ventilar suas ideias, a noção de que os blogueiros são uma praga para a sociedade não será contestada publicamente e crescerá às escondidas, o que só torna a ocorrência de “b” ainda mais provável.
Repassando os quatro argumentos de John Stuart Mill em defesa da liberdade de expressão, que continuam tão válidos hoje quanto duzentos anos atrás:
1. Uma opinião proibida pode acabar se mostrando verdadeira; afinal, ninguém é infalível;
2. Mesmo errada, a opinião proibida pode conter uma verdade parcial, e é apenas pela colisão entre a opinião consensual da sociedade — que raramente está de todo correta — e alternativas a ela é que a verdade mais completa tem alguma chance de surgir;
3. Mesmo se a opinião consensual da sociedade for a verdade mais perfeita e completa, a menos que seja duramente atacada e defendida, será sustentada apenas como mais um preconceito, com pouca compreensão de sua base racional;
4. O próprio significado da verdade corre o risco de se perder quando ela, protegida de todo tipo de contestação, se transforma em dogma.
Pôquer: quanto mais se ganha, mais se perde
A maioria dos jogos de azar tem aquilo que se chama de “vantagem da casa”, uma pequena distorção no que seria a proporção justa entre probabilidade de vencer e prêmio pago, que é o que garante que mesmo cassinos honestos deem lucro.
Na roleta, por exemplo: teoricamente são 36 números, metade vermelha, metade preta. A chance de ganhar apostando no vermelho é 50%, e o pagamento é 1:1 (ganhando, você recebe o seu dinheiro apostado de volta, mais uma quantia igual). Parece justo. Mas…
Mas, as roletas têm uma (ou duas, dependendo das regras do cassino) casa verde, o zero e/ou duplo-zero. Assim, a chance de ganhar apostando no vermelho não é 18/36, mas 18/37 – 48% – ou 18/38 – 47%. Parece pouco, mas no longo prazo faz uma bela diferença.
Um bom jeito de avaliar apostas é usar a equação conhecida como “Critério de Kelly”:
Onde “f*” é a proporção do seu capital a apostar; “b” é a proporção prêmio/aposta (no caso de uma aposta de preto-vermelho na roleta, b = 1, por exemplo); “p” é a probabilidade de vencer; e “q” é a probabilidade de perder, ou 1-p.
No caso da aposta no vermelho em uma roleta com apenas um zero, b=1, p=0,48, q=0,52. Isso dá f* = -0,04. Um valor negativo significa que o jogador deve apostar contra a posição analisada. Ou seja, o racional nesse caso seria apostar 4% de seu capital na opção “vai sair preto ou verde”. Como o cassino dificilmente aceitará essa proposta, o melhor é não apostar.
A fórmula de Kelly permite definir algo chamado “a vantagem” (the edge). A vantagem é zero se b = q/p; e negativa se b < q/p. Uma situação de vantagem zero geralmente é uma onde o mais sábio é abster-se de apostar. Já uma vantagem negativa significa que (como no caso da roleta) o melhor é apostar contra a opção analisada, se possível. Num cassino, todos os jogos têm vantagem negativa, e a posição contrária é sempre, claro, a da casa.
Jogos como pôquer, onde o jogador não enfrenta a casa, mas outros apostadores “pessoa física”, são considerados mais seguros por conta dessa ausência de uma vantagem negativa pré-programada nas regras. Mas isso não é necessariamente verdade: um estudo sobre pôquer online, realizado pela Universidade Cornell, mostrou que quanto mais partidas um jogador principiante ganha, mais dinheiro ele tende a perder.
O motivo é psicológico: o grande número de vitórias geralmente envolve pequenas quantias, mas deixa o jogador autoconfiante; e ele continua a jogar até sofrer uma derrota que leva embora mais dinheiro que todos os ganhos somados. Há algo skinneriano nisso, acho.
O trabalho está publicado onine no site do Journal of Gambling Studies.
Sherlock Holmes e as artes marciais
Todo mundo anda falando de Avatar, e Sherlock Holmes, uma joia de filme, acaba passando quase despercebido, o que é uma pena. O que eu queria comentar a respeito é uma certa dissonância que tenho visto nas (poucas) resenhas do filme que encontrei na imprensa, e que se referem ao filme como uma espécie de “releitura” do personagem, como se Holmes tivesse sido recriado como “super-herói” ou “herói de ação”.
Dissonância que mostra que os críticos talvez estejam familiarizados com os filmes anteriores do grande detetive, mas certamente não com os livros.
Porque o personagem de Conan Doyle era, afinal, um herói de ação: em O Signo dos Quatro, por exemplo, Holmes não só protagoniza uma excitante perseguição de lancha pelo Tâmisa à noite, como ainda é reconhecido por um ex-pugilista profissional, que se lembra de ter sido nocauteado por ele numa luta.
Além disso, em A Aventura da Casa Vazia, o detetive revela ser um mestre de “baritsu”, uma arte marcial japonesa cujo correspondente no mundo real é um certo mistério — a palavra parece ter sido cunhada por Conan Doyle ou a partir de “bartitsu” — uma versão de jiu-jitsu introduzida na Inglaterra em 1899 por um sujeito chamado Barton-Wright (“Barton”… “bartitsu”… sacou?) — ou de bujitsu, um termo genérico para artes marciais.
Holmes também é descrito por Watson como um exímio lutador com bastão, uma habilidade que salva a vida do detetive quando um bando de malandros de rua tenta atacá-lo em O Cliente Ilustre.
Além disso, é importante lembrar que o detetive, após travar luta corporal com o professor Moriarty em O Problema Final, escala as escarpas suíças com as mãos nuas, e se envolve numa peregrinação que o leva ao Tibete.
No cinema, no entanto, o personagem sempre havia sido interpretado por atores mais velhos — como Peter Cushing — e as limitações de orçamento e efeitos especiais impediam que esse lado de Holmes florescesse nas telas.
Ah, sim: o Sherlock do novo filme não “aposentou” a capa e xadrez e o chapéu de caçador: ele simplesmente nunca os usou (i.e., nunca foi descrito por Conan Doyle envergando esse tipo de traje). A capa inverness e o chapéu deerstalker são adições feitas pelo ilustrador original das histórias, Sidney Paget.
Por fim, Watson: ao contrário dos retratos cinematográficos anteriores, o doutor John H. Watson dos livros nunca foi um velhote paspalho. Ele entra na vida de Holmes ainda relativamente jovem, recém-dispensado do exército por ter se ferido na guerra. É não só um soldado treinado e homem de ação, como faz sucesso com as mulheres (Jude Law está bem no personagem quanto a isso!) e gosta de apostar em cavalos. Como no filme.
O filme em si trapaceia um bocado com o espectador — não é um mistério “fair play”, daqueles em que todas as pistas estão ao alcance do leitor/espectador mais atento — mas o enredo tem coerência, o que é mais do que se pode dizer de muito blockbuster por aí.
Enfim: foi necessário esperar que se passasse uma década inteira do século 21 para que o herói mais emblemático do 19 aparecesse por inteiro na tela.
(Antes que me perguntem o que raios este post está fazendo no SbB: a sherlockologia também é uma ciência. Se não acredita, visite a Sherlockian Net)
Apurando a previsão
Os leitores mais fiéis vão se lembrar que comecei a semana passada pedindo que se tentasse determinar, de duas previsões astrológicas, qual se referia a 2010 e qual a 2009. Obtive, ao todo, sete respostas, das quais três adivinharam corretamente (primeira previsão, 2010; segunda, 2009), três consideraram que as previsões eram indistinguíveis/irrelevantes e uma errou.
Infelizmente, o número de respostas obtido foi insuficiente para que o resultado fosse estatisticamente significativo. Por puro acaso, a chance de três acertos em sete tentativas, com três alternativas possíveis (9/10; 10/9; tanto faz) é de de 48% — mais exatamente, p= 0,4801 — bem fora do nível de significância. Na verdade, mesmo cinco respostas corretas em sete teriam uma probabilidade de 11% de ocorrer, um p bem acima do nível tradicional de 0,05.
A distribuição obtida — dois grupos de três resultados iguais e um resultado solitário — é muito provável no arremesso de sete dados de três faces (que dá para simular jogado sete dados de seis faces e dividindo o resultado por dois), segundo o Wolfram Alpha.
Se mais alguém quiser lançar um desafio semelhante, poderemos tentar uma meta-análise daqui a alguns meses… (mas sinceramente não consigo imaginar um motivo para isso).
Por que terapias fajutas parecem funcionar?
Minha postagem sobre os gastos do governo com terapias placebentas (homeopatia, acupuntura, etc) atraiu críticas, como eu esperava — se bem que em menor quantidade do que estava esperando. O que pode, até, ser um bom sinal.
Eu vinha já preparando uma resposta para as objeções que certamente surgiriam, mas eis que o Comitê de Investigação Cética resolveu disponibilizar online um artigo clássico sobre o assunto. O texto, de um importante cientista da área de psicologia e comportamento humano, diz tudo que eu gostaria de dizer, e melhor — portanto, ofereço o link aqui.
A única coisa contra o texto é que ele está em inglês, então ofereço aqui um pequeno resumo de dois de seus pontos principais:
1. Correlação não é causação: esta frase deveria ser gravada em mármore no frontispício de toda instituição de ensino da galáxia. Para dar um exemplo simples: suponha que eu diga que existe um comportamento que é compartilhado por 100% de todas as pessoas que morrem de câncer. Suponha que, depois de um intervalo adequado para gerar suspense, eu esclareça que esse comportamento é beber pelo menos um copo de água ao dia…
Sempre que surge a suspeita de uma correlação entre os fenômenos A e B, é preciso olhar para as quatro possibilidades: em que proporção dos casos A e B ocorrem juntos? E A sem B? E B sem A? E nem A e nem B?
2. Relatos anedóticos sugerem, mas não provam nada: o caso clássico é o de um médico americano que, durante uma epidemia de febre amarela no sul do país no século 19, convenceu-se de que pílulas à base de mercúrio (um metal altamente tóxico) eram a cura, porque tinha dado o tal comprimido a um ou dois pacientes e eles tinham sarado…
Como eu disse, estes parágrafos apenas resumem dois pontos de uma argumentação muito maior. Vale a pena ler a íntegra — nem que seja com o dicionário do lado.
Um sonho de liberdade: pi a 2,7 trilhões de dígitos
Um programador de computadores francês, Fabrice Bellard, alega ter calculado o valor de pi com uma precisão de 2,7 trilhões de dígitos. Isso é cerca de 10 vezes o número de estrelas na Via-Láctea, ou mais de 20 vezes o número de seres humanos que já pisaram na Terra.
Pi, a razão entre o comprimento e o raio diâmetro de uma circunferência, é um número irracional e transcedental. Irracional, porque não existe uma fração, formada por dois números inteiros, capaz de expressá-lo (embora haja boas aproximações, como 355/113, precisa até a sétima casa decimal).
E transcedental não porque os autores da Bíblia o desconhecessem, mas porque não existe uma equação em números racionais capaz de produzi-lo — ao contrário do que ocorre com outro famoso número irracional, raiz quadrada de 2, que (obviamente) é a solução da equação x2=2.
A determinação do valor de pi até 2,7 trilhões de casas tem pouco valor prático (cerca de 40 casas bastam para calcular praticamente qualquer coisa com toda a precisão necessária para qualquer finalidade prática imaginável), mas é útil para testar computadores e novas técnicas matemáticas. Que mais? Ah, sim: é também uma ótima oportunidade para relembrar a implicação filosófica desse número.
Pi é um daqueles números quebrados com infinitas casas decimais. Até aí, nada demais: 1/3 é 0,333333333333333333…, por exemplo. A questão, no entanto, é que os números racionais que geram as chamadas dízimas periódicas (expressão que me faz pensar em um massacre que se repete de tempos em tempos) são, como o nome diz, periódicas: o período pode ser bem longo — a fração 1/83 tem um período de 41 dígitos, por exemplo — mas, cedo ou tarde, a expansão decimal começa a se repetir. É previsível.
Pi, não. Até hoje, ninguém foi capaz de achar um padrão nos dígitos desse número, nem mesmo algo do tipo, “depois do segundo 3 sempre aparece um 8”. Nada. Niente. Zilt. Zero. Bulhufas. A sequência de dígitos de pi é aleatória.
Mas, peraí. Como assim, aleatória? Pi é um número perfeitamente bem definido: a razão entre o comprimento e o raio diâmetro de uma circunferência. Além disso, há procedimentos para calculá-lo: algoritmos capazes de gerar a sequência (são algoritmos infintos, que têm de ser reexecutados indefinidamente, mas essa é outra história).
Então, resumindo: temos uma sequência de números que obedece a uma definição simples e clara, que é gerada por algoritmos determinísticos e que… é aleatória. A busca por um padrão em pi é antiga e até hoje não obteve sucesso.Talvez haja ciclos que se repetem a cada 10 trilhões de dígitos? Quem sabe?
Para mim, ao menos, esta é apenas mais uma prova de que processos determinísticos gerados por mecanismos simples podem produzir resultados imprevisíveis, como o quadrilionésimo dígito de pi. De algum modo, é verdade que o “n”-ésimo dígito já está codificado, implícito, no algoritmo. Mas, da mesma forma, é verdade que o único jeito de conhecer esse dígito é fazer todas as contas e chegar até ele. Não há como prevê-lo sem despender o esforço de obtê-lo. Mas aí, claro, já não se trata mais de previsão.
Nesse aspecto, pi talvez seja até mais “livre” que a maioria das pessoas.
SUS torra R$ 7 milhões em placebo
Ou, para ser exato, R$ 6.998.249,00. Esse é o valor aplicado pelo Sistema Único de Saúde, em 2008, em homeopatia, acupuntura e moxabustão (que eu não sabia, mas é o aquecimento dos pontos de acupuntura). E ei, isto não é uma denúncia exclusiva: o Ministério da Saúde é que está alardeando os números, com indisfarçado orgulho.
Tá, R$ 7 milhões não é tanto assim (só consertar a lambança do Enem custou pelo menos cinco vezes isso), mas com esse dinheiro dava para comprar 27 milhões de seringas descartáveis para aplicação de insulina.
Só para lembrar, em meados de 2009, um posto de saúde de Vitória (ES) passou a recomendar aos diabéticos que reutilizassem suas seringas, porque o material estava em falta.
Imagino que o gasto de dinheiro público nessa placebagem toda tenha algum efeito positivo (além do efeito placebo propriamente dito) na medida em que ela mantém as pessoas visitando o médico, evitando carne vermelha, comendo verduras, fazendo atividade física e evitado estresse excessivo.
Mas a desonestidade intelectual embutida nesse negócio de “Práticas Integrativas e Complementares” (isso é “Medicina Alternativa” em burocratês) é algo que clama aos céus.
Jornalista precia saber física?
Nestes dias está rolando a segunda fase da Fuvest, que agora retornou ao esquema de obrigar todo mundo a fazer prova de todas as matérias nesta etapa, em vez de apenas as disciplinas geralmente consideradas mais afeitas a cada curso específico.
Quando eu prestei vestibular pra USP, picossegundos após o Big Bang, o esquema era parecido: na segunda fase, todo mundo fazia prova de tudo, mas o peso das notas variava de acordo com a carreira escolhida — se bem me lembro, jornalismo tinha concentração em português, geografia e história.
Naquela época a gente fazia duas provas ao dia. Lembro-me bem da dobradinha geografia/matemática, se não por outro motivo, porque naquele dia eu estava péssimo — não de saúde, mas psicologicamente — e essas duas provas foram as piores do meu vestibular. Saí da sala do exame sabendo que tinha feito merda e, talvez, perdido ali a minha vaga.
O que em salvou, garantindo-me o inenarrável prazer de frequentar a Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo por quatro anos e meio? A prova de física, na qual acertei tudo. Sério.
Claro, tive notas muito boas em história, português e redação, mas até aí todo mundo também tinha tido, certo? Afinal, a disputa era por jornalismo. Minha nota de geografia era um peso me puxando para baixo, sem dúvida, mas a de matemática era quase irrelevante — porque, assim como todo mundo, na média, tinha ido muito bem na redação, todo mundo, na média, também tinha metido os pés pelas mãos em matemática. Mas até aí, todo mundo, na média, também tinha metido os pés pelas mãos em física. Mas eu não. Bom, resumindo: entrei. Em penúltimo, mas entrei.
É provável que, com o novo esquema da segunda fase, esse tipo de situação volte a ocorrer: a nota de uma disciplina considerada “de fora” da área do curso servir como uma espécie de critério de desempate: se todos os, digamos, 40 primeiros candidatos são uniformemente bons escritores, os 30 melhores físicos (ou químicos, ou biólogos, ou matemáticos) entre eles levam a vaga.
Uma questão: esse tipo de desempate é justo? Afinal, jornalista precisa saber balística? Historiador precisa saber o que é o ciclo de Krebs? E para que diabos um publicitário precisaria saber somar e multiplicar matrizes?
Diga-me, quantas vezes depois do vestibular você precisou aplicar a fórmula de Báscara?
As questões acima trazem embutidas duas premissas: a primeira é uma visão instrumentalizada do conhecimento: se eu não vou pregar pregos, não preciso de um martelo; se eu não vou construir motores, não preciso estudar termodinâmica.
A segunda, é uma visão conteudista da ciência: estudar biologia é decorar uma lista de organelas; estudar matemática é aprender a mecânica de certos tipo de operação; e assim por diante.
Atuando em conjunto, as duas premissas levam ao resultado conhecido: se matemática é decorar como somar senos e cossenos, e se minha profissão não requer o uso intensivo de trigonometria, então eu não preciso estudar matemática.
Mas matemática é muito mais do que isso (assim como física, biologia, química, etc, são muito mais que as aplicações “tecnológicas” cobradas no vestibular).
Voltando à pergunta que dá título à postagem: jornalista precisa, sim, saber física, do mesmo jeito de engenheiro precisa saber história, por exemplo. Mas provavelmente não precisa de todo o conteúdo que se lhe é transmitido no ensino médio, cobrado no vestibular e esquecido logo depois.
Do jeito que as coisas estão hoje, temos adolescentes que estudam química a ponto de aprender a distribuir corretamente elétrons em níveis quânticos dentro do átomo, mas que não são capazes de desconfiar que pode haver algo errado no uso da homeopatia.
Back in business!
Depois de uma longa ausência (alguém aí ainda lembra que muito tempo atrás, numa galáxia muito distante, havia um blog chamado Ideias Cretinas?) ditada por questões profissionais, volto a postar.
Eu tinha um professor na faculdade que insistia que o primeiro ingrediente da credibilidade é a periodicidade — se o leitor não pode acreditar nem que o seu jornal vai sair todo dia, como ele vai acreditar no que você escreve? — então, temo ter queimado de vez minha chance de ser levado a sério (que já não era muita, dado o nome do blog e seu caráter anônimo). Ainda assim, escrevo para ver se ainda tem alguém aí. Câmbio?
Bom, queria começar o ano entrando um pouco na onda de previsões — no caso, previsões astrológicas. Vou colar aqui embaixo o parágrafo de abertura de duas previsões para um mesmo signo, capricórnio, uma para 2009 e outra para 2010, ambas retiradas da mesma fonte. Só vou eliminar de ambas todas as referências ao ano a que se referem. Confira:
Previsão 1
Este é o ano das transformações radicais para o signo de Capricórnio, principalmente para os nascidos no primeiro decanato, ou seja, entre 20 de 29 de dezembro (aproximadamente). O velho eu se desintegra, a fim de que uma nova vida possa surgir. Goste-se disso ou não, os apegos precisarão ser trabalhados, e será preciso aprender a contar consigo mesmo. Temores podem surgir, naturais em qualquer momento altamente transformador. É preciso se reunir com pessoas que sejam genuinamente amigas, a fim de criar uma estrutura sólida de afeto e apoio. Para os capricornianos de todos os decanatos, o ano representa um ano de tomadas importantes de consciência que conduzem a um derradeiro amadurecimento.
Previsão 2
Absolutamente tudo está começando a mudar em sua vida. Se você entrar em harmonia com essa mudança, poderá se transformar em uma pessoa cada vez mais especial, poderá constatar que você pode fazer diferença no mundo. É gradativa e suave a mudança, terá momentos mais intensos e outros que parecerá que nada está acontecendo. A você só resta aceitar e compreender que, como uma lagarta saindo do casulo, você está se transformando em borboleta. Não é o fim do mundo, é o fim “daquele” mundo.
O desafio para os leitores é determinar a qual ano se refere qual previsão. Se eu receber um número grande de respostas e a taxa de acerto for significativamente superior a 50%, isso pode virar “paper”. Se você achar que os dois parágrafos são perfeitamente intercambiáveis, eu o convido a ler este verbete sobre o Efeito Forer.